terça-feira, 30 de novembro de 2021

DIVAGAÇÕES A RESPEITO DOS JOVENS

 


 

Gustavo Corção

 

        Modéstia à parte, tenho sido ultimamente entrevistado, mas permanece inevitavelmente a mesma indagação fundamental: o que penso eu da juventude. Ora, devo confessar que não penso absolutamente nada da juventude. Por mais que me esforce e que esmiúce a pergunta, por mais que analise os conceitos envolvidos no inquérito, só consigo pensar que a juventude é a juventude. Que outro juízo esperam os colegas de mim? Não consigo, sinceramente, descobrir nenhum predicado que convenha a todos os jovens, a não ser a própria juventude. O jovem é jovem, eis aí o pensamento profundo atual, avançado, audacioso, que ofereço a todos os jornais e revistas. E desde já lanço o repto: a quem me provar que o jovem não é jovem entregarei minha casa e meus livros.

Outro dia, entretanto, ouvi alguém dizer, aliás pela milésima vez, que o “jovem é autêntico”, e que o jovem, pelo fato de ser jovem, sofre a pressão ou a colisão das inautenticidades dos velhos. O que quererá dizer isto? Receio que o pressuposto de tal afirmação, se algum existe, é o de só existir, em toda a vida humana, uma estreita faixa etária, como diria o Dr. Alceu Amoroso Lima, em que o mísero bípede implume se encontra consigo mesmo. Eu poderia invocar a longa experiência de vida e contestar o fenômeno. Sim, posso assegurar que já encontrei muitos jovens com todas as características do canalhismo; e até poderia acrescentar, com robusta convicção, que essa peculiaridade da alma humana está equitativamente distribuída por todas as idades. Lembro-me por exemplo dos moços da extinta UNE, ou entidade máxima estudantil: quase todos os dirigentes que conheci eram canalhas e demonstraram uma virtuosidade capaz de causar inveja a um velho crápula aposentado. Por dois desses fui enrolado apesar de toda a experiência da vida de que me gabei pouco atrás. Mas talvez esteja enganado: os sagazes observadores da eclesialização do mundo ou da secularização da Igreja, e sobretudo os sociólogos dessa índole dirão que observei mal e que confundi canalhismo com atitudes de protesto. Os jovens que praticam atos de canalhice, segundo os padrões tradicionais, não são canalhas porque são jovens e não são canalhas porque estão apenas replicando à deixa da falida geração que só legou taras e misérias. Sim. Um dos postulados que parece presente na base de tudo o que se diz hoje dos jovens é o da total falência do mundo anterior. E aí temos um estranho conflito e até se duvidarem uma estranha revolta: a de um ente de razão contra outro ente de razão, a de um ser abstrato contra outro ser abstrato.

Outra coisa que ainda não logrei entender é a ideia de apresentar o jovem como um vanguardista. Como assim? Vanguardista sou eu. Nasci antes dele, provavelmente morrerei antes dele, e assim se vê que estou sempre na frente. Com meus setenta e um estou na ponta onde já são escassos os companheiros, e quanto mais viver e mais envelhecer, mais na frente e distanciado estarei. Quando esse moço desordeiro da França nasceu, eu já sabia trigonometria esférica, cálculo diferencial e outras coisas. Estava até começando a ficar grisalho, tal era a imensa dianteira que levava sobre esse retardatário. Já fazia a barba quando nasceu o pai do moço desordeiro. Fui autêntico algum dia? Ai de mim, no tempo em que atravessei a faixa etária da autenticidade não haviam nascido os sociólogos para fazerem a frase que me pusesse em estado de graça em relação a mim mesmo. Vivi sem essa absolvição, ou tive minha mísera e estreita autenticidade obscuramente vivida sem que dela se apercebessem a família, a cidade e o país. Minto. Um ou outro amigo certamente me estimou como se sentiu estimado, mas éramos modestos a respeito desses atributos fascinantes que cobrem hoje multidões. Fascinantes? Pensando bem creio perceber que não há nada mais melancólico do que esse efêmero esplendor que inventaram hoje para ainda mais estreitar a pobre vida humana. Já sabíamos, pela experiência e pela revelação, que o tempo é breve e que a vida é curta. Encurtaram-na ainda mais os que exaltam a supracitada faixa etária. Pobres moços! Têm missa especial no Largo do Machado, têm diversas outras regalias, mas estão condenados à inautenticidade dentro de três ou quatro anos. É só casarem-se e terem filhos e estarão definitivamente expulsos do paraíso etário, e desenganados em matéria de autenticidade. Ontem uma jovem jornalista que me entrevistava teve de repente um calafrio de terror.

− Estou ficando velha! Estou ficando velha!

Pensei que fosse mirrar à minha vista, como a velha das Minas de Salomão, mas vi que permanecia com os mesmos vinte e tantos. Ela então explicou-me:

− Estou ficando velha porque estou começando a concordar com o senhor. O que vai ser de mim lá na redação? Estou perdida!

Sim, a pobre moça estava perdida porque começava a pensar nos filhos que iam crescer, e que daqui a poucos dias estarão dizendo que são autênticos. Num momento de silêncio pesado estivemos a medir a imensa responsabilidade de sermos pessoas sem idade definida, sim, pessoas vivas e dadas em espetáculo do mundo...

*      Publicado originalmente em O Globo 6/6/68

**    Reproduzido do excelente site Permanencia https://permanencia.org.br/drupal/node/5997

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