A nossa condição imitativa é a dos espectadores que ambicionam macaquear nos mínimos detalhes o que vêem no palco, confundindo sistematicamente a tragédia com a comédia e a comédia com a tragédia. Coluna do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Como
toda a gente, fiquei surpreendidíssimo com a vitória de Carlos Moedas e
da coligação PSD/CDS em Lisboa e com a derrota de Medina e da coligação
PS/PRR. E, como muita boa gente, fiquei contentíssimo. E contentíssimo
também fiquei quando soube quais as boas cabeças que aconselharam
Moedas, que também tem uma boa cabeça, na sua campanha. A coisa torna-se
assim um bocadinho mais explicável.
Infelizmente,
esta óptima surpresa não chega para convencer uma pessoa das maravilhas
fatais do Portugal da nossa idade. Da nossa idade e de várias outras
idades passadas. Pelo contrário. Mais se olha para as coisas de trás com
olhos de ver e mais assustado e deprimido se fica. Algumas vezes por
razões óbvias, outras por obscuros sinais nos quais um espírito dedicado
à interpretação não pode senão detectar o anúncio de uma verdade
simples e ameaçadora: Portugal faz mal.
Tomemos
o exemplo, razoavelmente excêntrico, da ópera. Que eu saiba – mas pode
ser ignorância minha -, há apenas duas óperas de compositores célebres
que tomam Portugal por objecto: o Dom Sébastien, Roi de Portugal de
Donizetti (estreada em 1843) e a L’Africaine de Meyerbeer (estreada em
1865), que tem como personagem principal Vasco da Gama. Nunca ouvi,
confesso, a primeira (a bíblia destas coisas, o New Grove, refere a
opinião corrente à época segundo a qual se trataria de “um funeral em
cinco actos”, e li noutro lugar que Camões ali morre tentando salvar D.
Sebastião e a sua amada, a princesa africana Zaida, perseguidos pela
Inquisição). Mas ouvi a segunda, da qual tenho, de resto, um DVD, no
qual Plácido Domingo (a quem na altura ainda deixavam cantar) interpreta
o nosso grande Vasco.
Além
de Portugal, estas duas óperas têm algo em comum: foram as últimas
óperas dos dois ilustres compositores. E aí é que os tais sinais
ameaçadores se manifestam. Durante os ensaios de Dom Sébastien,
Donizetti começou a agir estranhamente, dizendo coisas incompreensíveis e
comportando-se de modo errático, a tal ponto que, pouco depois, tendo
caído numa loucura que nunca o viria mais a abandonar, um sobrinho teve
de o ir buscar e internar num sanatório. Meyerbeer não teve melhor
sorte: no dia seguinte a acabar a composição de L’Africaine, morreu
subitamente. Uma mente detectivesca poria a culpa destas duas
desventuras no mordomo, isto é, no libretista de ambas as óperas, Eugène
Scribe (na segunda, inspirando-se muito vagamente nos Lusíadas). Mas
Scribe é, com Metastasio, um dos mais prolíficos libretistas de todos os
tempos, e vários compositores resistiram saudavelmente à sua
colaboração. Verdi, por exemplo, sobreviveu-lhe por fartos anos.
Descontando a sífilis de que sofria Donizetti, resta apenas uma hipótese
verosímil para explicar esta comum desgraça: Portugal. Portugal, como
disse, faz mal.
Pessoalmente,
é com alguma apreensão que penso nisto. Não que esteja a compor alguma
ópera sobre a pátria, é claro. Mas, por razões académicas, estou
obrigado, durante este semestre lectivo, a estudar o movimento de ideias
da chamada “geração de 70”, sobretudo as ideias de Eça, Oliveira
Martins e Antero de Quental, coisa que tenho feito disciplinadamente e
com interesse, ordenando o que já antes tinha pensado e tentando pensar,
com a ajuda de pilhas de livros, algumas coisas novas. Em consequência,
a prudente distância que até agora tinha mantido face às coisas
portuguesas, com infidelidades pelo meio, transformou-se numa
proximidade comprometedora e quase íntima. Olhar de perto é diferente de
olhar de longe e é declaradamente mais perigoso.
Particularmente,
ando às voltas com a admiração daquela geração pela Comuna de Paris
(1871) e com a sua patriótica revolta contra o ultimatum inglês (1890),
quer dizer, sensivelmente com o período que vai das Conferências do
Casino às reuniões do grupo dos Vencidos da Vida. Não vou aqui falar das
posições (às vezes complexas e contraditórias) dos vários autores sobre
os dois acontecimentos. Em contrapartida, quero notar uma coisa óbvia.
No espaço da minha vida, testemunhei inúmeras vezes atitudes colectivas
muito semelhantes às daquela geração. Quer se trate da admiração
entusiástica por revoluções sortidas por esse mundo fora; quer se trate
de manifestações destemperadas e recorrentes de anglofobia, a propósito
dos mais variados acontecimentos, que nada ficam a dever à imagem dos
lordes cortados às postas a boiarem no Tamisa de Guerra Junqueiro.
Isto
só pode querer dizer algo de significativo sobre nós. E, tristemente,
nada de bom. Sem entrar em explicações muito sofisticadas, diz algo
sobre a nossa condição imitativa e sobre o nosso complexo de
inferioridade (é, creio, a expressão justa). A nossa condição imitativa é
a dos espectadores que ambicionam macaquear nos mínimos detalhes o que
vêem no palco, confundindo sistematicamente a tragédia com a comédia e a
comédia com a tragédia. O resultado é, como não podia deixar de ser,
grotesco. E o nosso complexo de inferioridade manifesta-se usualmente
através do uso e abuso da bravata indignada. Não há fanfarronice que
falhe quando exprimimos a nossa superioridade moral sobre a pérfida
Albion. Só gente que se acha, no íntimo inconfessável, inferior, pode
agir desta maneira, imaginando castigos justiceiros e vinganças
exemplares.
Se
uma pessoa começar a pensar a sério nisto, é difícil evitar cair numa
espécie de abismo de melancolia. Porque estas duas atitudes – que, volto
a dizer, se repetem com uma regularidade impressionante, seja quais
forem os objectos e casos particulares – contaminam o todo da sociedade,
mergulhando-a numa atmosfera de irrealidade militante. Como é fácil de
observar, essa irrealidade impede, à partida, que se pense politicamente
de modo eficaz e que se tomem as decisões necessárias para melhorar a
nossa situação. E mais do que isso. A criação da atmosfera de
irrealidade – que o Governo de António Costa, de resto, à sua maneira
elevou à condição de suprema arte política – só pode contribuir para que
a nossa situação piore e continue a piorar, sem termo à vista. Viver
isto de perto – viver no meio disto – não afaga propriamente a alma com
doces carícias. Em pessoas sensíveis, fere-a.
Pelo
que acabei de dizer, se me virem, à semelhança dos dois homens ilustres
acima referidos, desaparecer de um dia para o outro, sem aviso, desta
coluna do Observador e do universo em geral, ou se me apanharem a
elogiar encomiasticamente António Costa, apelidando-o de “o nosso maior
estadista desde D. Afonso Henriques” e de “preclaro espírito que alumia o
nosso destino e nos incute a força que nos conduzirá ao topo do saber
europeu”, já sabem de quem é a culpa. E não, não é de Scribe nem da
sífilis. Sim, é do que estão muito bem a pensar: desta ditosa pátria
muito nossa amada.
Entretanto,
Vasco da Gama, que passa (também ele!) pelos calabouços da Inquisição, é
amado por duas mulheres: Inês, a sua noiva, e Selika, uma rainha
indiana (os portugueses, para Scribe, são felizmente dados ao
multiculturalismo amoroso; em L’Africaine, é verdade, só no Acto IV e
com a ajuda do velho truque do “filtro de amor”) que havia trazido a
Lisboa como escrava na sua última viagem. Selika, por sua vez, é amada
por Nelusko, outro escravo que Vasco da Gama trouxera consigo. No final,
e já na Índia, Selika sacrifica-se pela felicidade de Vasco e Inês,
suicidando-se. Nelusko, de coração partido, ao vê-la morta, suicida-se
também, enquanto um navio, já só um pequeno ponto no horizonte
(imagina-se), transporta Plácido Domingo e Ruth Ann Swenson de volta a
Lisboa, para longe dos cadáveres de Shirley Verrett e de Justino Díaz.
Isto sim, isto eleva a alma – e torna, pelo menos por momentos,
inverosímeis as duas hipóteses avançadas no parágrafo anterior.
P.S.:
Alexandre Franco de Sá acaba de publicar um importante livro sobre o
populismo, cuja leitura evitaria a muita gente dizer os costumeiros
disparates sobre o assunto: Ideias sem centro. Esquerda e direita no
populismo contemporâneo (D. Quixote). Tenciono escrever sobre ele nas
próximas semanas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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