Vejam que não critico aqui a ciência por detrás dos diagnósticos. Critico a maneira como nós, enquanto sociedade, lidamos com eles: enrolando em plástico bolha as pessoas, como se fossem frágeis, e impedindo que andem com as próprias pernas. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
A
ciência tem suas modas. Uma da minha época era a de tirar as amígdalas
das crianças. Me lembro de perguntar à minha mãe por que todo mundo
tirava amígdala menos eu. A resposta dela era que meu avô médico não
deixava. Perguntei para ele o porquê, e ele disse que essas inflamações
passam com a idade. De fato, passaram.
Hoje
eu leio que o NHS considera a retirada de amígdalas de crianças é
excessiva e prejudicial, e que seus médicos tiravam as amígdalas de
crianças que ficaram inflamadas uma vez só. Leio na mesma matéria os
Estados Unidos são os campeões dessa cirurgia, e que lá se fala em
“epidemia de retiradas de amígdalas”. Ter nascido em 90 faz de mim
alguém com grandes chances de não ter amígdalas, que não são inúteis e
têm a função de prevenir gripes.
A
matéria, redigida em tempos pré-covid, diz que “alguns estudos sugerem
que a retirada das amígdalas na infância pode ter consequências no longo
prazo, como aumento do risco de ataque cardíaco precoce e de doenças
respiratórias, como asma, pneumonia e gripe na vida adulta.” Não faço
ideia dos motivos da maioria das doenças, mas a gripe é fácil de
entender: “As amígdalas, localizadas próximo a base da língua,
desempenham um papel importante no sistema imunológico, ajudando a
proteger o organismo contra vírus e bactérias que entram pela boca ou
pelo nariz.” Este é o caso do influenza e do sars-cov-2.
Crianças como torradeiras quebradas
Ter
nascido em 90 na classe média também faz de mim alguém com grandes
chances de ter sido levada para um psicólogo na infância. De 90 pra cá,
eu diria que essas chances só aumentam. A pedagogia fez prosperar o
ideal romântico de que as crianças saem prontas das mãos da natureza e
que educação é repressão.
Esta
é uma belíssima notícia para pais preguiçosos que não querem educar os
filhos, porque isso significa que eles não precisam ter trabalho, já que
a natureza faz tudo sozinha. Quando o filho largado de mão se revela um
pestinha insuportável, os pais levam a criança para a psicóloga, como
se fosse uma torradeira quebrada, e dizem: “tá com defeito, ó”.
A
psicóloga paga pelos pais vai resolver o problema com um diagnóstico:
TDAH. Daí encaminha a criança com defeito para o psiquiatra, que passa
Ritalina pra criança. Aí o menino cresce dopado, sem dar trabalho a pais
e professores. O laboratório que vende Ritalina acha lindo e o povo não
se empenha em saber dos efeitos que o remédio tem sobre o
desenvolvimento das crianças.
Mas,
ao menos no Brasil, a moda do TDAH não pegou a minha geração. Eu peguei
a moda de mandar criança para psicóloga. E de fato eu fui arrastada
para psicóloga como uma torradeira quebrada. E fui arrastada para o balé
porque sim. Mas tanto o balé quanto a psicóloga me causavam aversão, e
minha mãe não conseguiu me obrigar por muito tempo. Fiquei livre de
ambas as coisas, então posso me considerar atípica, no meu grupo social
da minha idade, por ter escapado de psicóloga.
Para
avaliar certas coisas, é como se eu tivesse nascido em 80 ou 70 em vez
de 90. Devo dizer que a repulsa que psicólogos me causam até hoje tem a
ver com a ideia de autonomia e de privacidade. Acho uma afronta ter
diante de mim alguém que pretende me olhar de cima e gerir a minha vida
interior. Eu sou problema meu. Se eu tivesse esquizofrenia ou transtorno
bipolar, a coisa seria diferente. Mas não vejo sentido em considerar a
ida a psicólogos como algo protocolar e natural para todo mundo.
A enxurrada de autistas
No
texto de ontem, mencionei os amigos mais novos com diagnóstico de
autismo. Quando eu era criança, a concepção de autista vigente impedia
que pensássemos em alguém dissesse “oi, eu sou autista”. Autistas não
falavam e passavam o dia incomunicáveis viajando na maionese. Ter um
autista na família era um problema sério, porque demandava cuidados. Em
algum ponto, isso mudou. Começou com a Síndrome de Asperger, que logo
foi transformada em ícone pop pelo seriado “The Big Bang Theory”. Depois
o vocabulário mudou e começou a se falar em “espectro autista”.
Perguntei
aos amigos como eles receberam o diagnóstico e ambos relataram ter
recebido um questionário com tais e tais perguntas, depois sai uma
pontuação. Reconheci o teste de Baron-Cohen, . Eu conhecia esse teste
porque um outro amigo, esse virtual, tinha traduzido o teste e feito um
programinha que calcula na hora e faz um gráfico. Você pode ver aqui.
O
amigo virtual é Eli Vieira, com quem divido interesse por assuntos tabu
do politicamente correto. Simon Baron-Cohen (sim, ele é primo do Sacha
Baron-Cohen, o Borat) era originalmente um estudioso das diferenças
inatas entre o cérebro masculino e o cérebro feminino. Estudando a
maneira como bebês recém-nascidos de ambos os sexos reagiam à face
humana, ele acabou enveredando pelo estudo do autismo. Existem bebês
para os quais não faz diferença nenhuma ter ou não ter um rosto humano à
sua frente.
Para
Baron-Cohen, o autismo grave é um cego para mentes, uma pessoa que não
consegue diferenciar um outro ser humano de um objeto inanimado. Como
essa cegueira nem sempre é absoluta, Baron-Cohen fala em casos leves e
casos graves, sendo que os casos leves são caracterizados pela
dificuldade em decifrar as mentes de outras pessoas. Enquanto o normal
sabe exatamente o que está acontecendo ao olhar para a cara das pessoas,
o autista leve tem que queimar pestana para entender.
Um
grupo de amigos fez o teste. Eu fui a campeã do autismo, com quase 40
pontos. Como fizemos em grupo testando o site do amigo, pudemos comparar
os nossos resultados. Eu e o número 2 do pódio trocamos figurinhas.
Essa pessoa contou uma coisa bem ilustrativa de como funciona a nossa
cabeça: trabalhando numa delegacia, estabeleceu uma correlação entre ser
um encrencado contando lorotas e encostar a barriga no balcão. Uma
pessoa normal não vai tentar julgar as outras com base em um gesto
aleatório. Eu vivo fazendo minhas estatísticas informais — tanto que vim
acumulando essas anotações sobre psiquiatria com corte etário e social
enquanto observava os amigos.
O
teste de Baron-Cohen é apresentado pelo próprio como um mecanismo para
auxiliar no diagnóstico. Mas os meus amigos relatavam que eles faziam o
teste e puf, ganhavam o diagnóstico. E que serventia tem esse
diagnóstico para eles? Pelo menos um deles eu sabia ser dependente de
remédios psiquiátricos. E outro, embora tranquilo, achava que precisava
oferecer um caveat ao se apresentar a pessoas que ele conheceu na
internet.
Olhando em retrospecto
Olhando
em retrospecto, eu tentei imaginar como seria a minha vida se eu
tivesse tido um diagnóstico de autismo na infância. Hoje eu posso
digitar “autist runaway” ou “autism meltdown in school” no Youtube e ver
uma montanha de vídeos de criancinhas surtadas correndo da sala de
aula. Quando eu era criança, eu fazia isso também e ninguém conseguia
entender. Nem eu. Com o tempo, passou.
Eu
não queria estar no lugar dos pais zelosos que ficam filmando seus
filhos e dando dicas especializadas de como lidar com autistas. Eu não
gostaria de ter a escola inteira olhando para mim como a autista, e
muito menos de ter de lidar com psicólogas cheias de dedos. Eu fui a
menina malcriada e pude conviver com isso.
Também
me ocorreu que, se eu tivesse nascido até 70, talvez nem tivesse tido
esse tipo de problema na escola. Hoje eu sei que fico aflita quando há
gente de voz aguda gritando em sala sem janela: vira uma câmara de eco
infernal. Entendo que a junção de ar-condicionado com pedagogia moderna
formou esse ambiente que me deixava em pânico. Hoje, o pedagogo não acha
que tem que disciplinar a gritaria. E o psiquiatra acha que, se alguma
criança der trabalho demais, pode ser medicada. Se eu fosse criança
hoje, é bem possível que estivesse medicada para ficar em sala sem ter
nenhum “meltdown”. Mas isso é o de menos. No mundo rico, uma paciente
típica das infames “clínicas de gênero” é a adolescente do sexo feminino
que tem um diagnóstico de autismo leve. Eu seria rotulada como “gender
non conforming” e iria para sessões em que uma terapeuta tentaria me
convencer de que sou um menino preso no corpo de menina. Depois disso
vêm a castração química e os hormônios do sexo oposto.
De
resto, na vida adulta eu carregaria esse crachá de autista. Com esse
crachá eu teria de antemão licença para pisar na bola nas situações em
que autistas pisam na bola. A condescendência que acompanha esses
crachás anda na contramão do esforço para superação. Não creio que isso
me tornasse uma pessoa melhor.
Vejam
que não critico aqui a ciência por detrás dos diagnósticos. Critico a
maneira como nós, enquanto sociedade, lidamos com eles: enrolando em
plástico bolha as pessoas, como se fossem frágeis, e impedindo que andem
com as próprias pernas. Eu fico bem me considerando uma esquisitona,
sem precisar me preocupar com o porquê de ser uma esquisitona. Um
eventual autismo é uma curiosidade a meu respeito, não um crachá
definidor da minha personalidade. E a ideia do quão medicada eu poderia
estar hoje me faz temer muito pelos rumos que a medicina vem tomando.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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