O curioso é que a censura sempre foi repudiada como algo associado a ditaduras, particularmente ditaduras de direita. Mas, ultimamente, a censura vem sendo reabilitada e claramente defendida pelo campo dito progressista como uma arma de defesa da democracia. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:
Uma
controvérsia interessante está em curso. Começou em uma pequena cidade
na Itália, mas já tem repercussão internacional. No último domingo, foi
inaugurada em Sapri, com a presença de políticos locais e nacionais, a
estátua "La Spigolatrice di Sapri" (“A respigadora de Sapri”). Trata-se
de uma escultura do artista Emanuele Stifano que retrata, com um vestido
transparente e um braço cobrindo os seios, a personagem de um famoso
poema escrito por Luigi Mercantini em 1857.
As
reações foram imediatas. Uma deputada declarou que a estátua “é uma
ofensa às mulheres”: “Como as instituições podem aceitar a representação
das mulheres como um corpo sexualizado?”, perguntou. Um grupo feminista
foi além, exigindo a imediata destruição da escultura de bronze. O
argumento: “Mais uma vez, temos que sofrer a humilhação de nos ver
representadas sob a forma de um corpo sexualizado, sem alma e sem
qualquer conexão com as questões sociais e políticas da História." O
episódio é revelador de diferentes aspectos do nosso confuso Zeitgeist,
do estranho espírito do nosso tempo, do sufocante clima de guerra
cultural que estamos atravessando. Abordarei a seguir, de forma
aleatória e assistemática, alguns aspectos reveladores dessa polêmica,
todos eles entrelaçados – sempre partindo da premissa de que o debate é
legítimo.
Censura
Evidentemente,
a mobilização em curso contra a estátua subentende uma legitimação da
censura. A premissa é: se eu julgo que uma obra de arte ofende a mim ou
ao grupo a que pertenço, tenho o direito de exigir que ela seja
censurada e destruída. Em outras palavras: há situações em que a censura
é não somente aceitável, como também recomendável.
O
curioso é que a censura sempre foi repudiada como algo associado a
ditaduras, particularmente ditaduras de direita (ainda que, hoje, sejam
as ditaduras de esquerda as que mais censuram). Mas, ultimamente, a
censura vem sendo reabilitada e claramente defendida pelo campo dito
progressista como uma arma de defesa da democracia.
Muita
gente que se acha “do bem” sente um prazer quase sexual quando qualquer
manifestação (artística ou não) contrária às suas convicções é
censurada, inconsciente (ou não) de que a censura representa uma ameaça à
sua própria liberdade.
Moralismo
O
que foi dito acima remete ao fenômeno mais amplo que é a ascensão do
moralismo de esquerda. Outra estranha inversão acontece aqui: atitudes
moralistas eram invariavelmente associadas à direita e costumavam ser
interpretadas como estúpidas e reacionárias. Mas, hoje, o moralismo –
quando convém – é abraçado com entusiasmo pelo campo progressista.
Objetivamente,
a estátua em questão retrata uma mulher jovem e bonita usando um
vestido transparente, algo que só pode causar escândalo em moralistas. E
a melhor definição de moralismo que já li é: o moralismo é uma
patologia da moral: é a tentativa de imposição ao conjunto da sociedade
de valores e padrões morais e estéticos singulares, circunscritos a um
grupo ou ideologia.
Mas
o campo progressista acha que tem esse direito de impor sua visão de
mundo sobre os demais, porque acredita (ou finge acreditar) ser a
detentora do monopólio das boas intenções e da superioridade moral, que
dispensa qualquer autocrítica.
Belezafobia
Mas
o que incomoda na escultura em questão não é nem poderia ser a
(semi)nudez da mulher, desde sempre presente na História da arte: é a
opção do artista por representar a personagem de um poema como uma
mulher jovem, bonita e “sexualizada”.
A
beleza e o “sex appeal” são hoje inaceitáveis. Se vivemos em uma
sociedade que garante a todos o direito de apontar o dedo e se fazer de
vítima, uma sociedade onde tudo ofende, inclusive o mérito, eu tenho o
direito de ficar ofendido diante da representação artística de um corpo
sensual: só aceito representações assexuadas do ser humano, e quem
discordar de mim é fascista.
Nesse
contexto, está se tornando algo normal e aceitável censurar imagens de
jovens, para não ofender os idosos; censurar imagens de pessoas magras,
para não ofender as gordas; censurar imagens de pessoas saudáveis, para
não ofender às doentes; censurar imagens de pessoas bem-sucedidas, para
não ofender as fracassadas.
Em
2018 eu já escrevia sobre isso em um artigo sobre a proibição da FIFA
de exibir imagens de torcedoras bonitas nas transmissões dos jogos da
Copa do Mundo. De lá pra cá, a coisa só piorou:
“Em
qualquer lugar e em qualquer época a beleza sempre foi um fato da vida.
Um passeio pela História da Arte mostra que os padrões variam, mas
sempre haverá pessoas que se destacam – e despertam inveja - por serem
bonitas. Mas, se o belo sempre incomodou e até ofendeu, pela primeira
vez na História o ressentimento de quem não suporta a beleza alheia
ousou sair do armário.
Vocalizado
e amplificado pelas redes sociais, o ressentimento ganha ares de
virtude, e o “ódio do bem” prospera em um ambiente onde todos sentem
prazer em apontar o dedo para o outro. Vinicius de Moraes seria hoje
linchado em praça pública se pedisse desculpa às feias e afirmasse que a
beleza é fundamental. Porque, na nossa sociedade, são as bonitas que
devem se desculpar. Morte ao belo, morte a tudo que agrada aos sentidos:
serão estes os lemas da nossa época?”
Indignação seletiva
Este
é talvez o aspecto mais preocupante e doentio da nossa época: a dupla
moral, a capacidade que as pessoas demonstram, de cara lavada, de
escolher os objetos de sua indignação conforme conveniências políticas
do momento.
Periodicamente,
o campo progressista se une na defesa da liberdade artística, bastando
citar os casos recentes da performance que expôs uma menina de 6 anos ao
contato com o corpo de um homem adulto nu (para deleite de uma plateia
de adultos vestidos), e da exposição “Queermuseu”, que incluía, por
exemplo, uma pintura representando “crianças viadas” e “crianças
travestis”.
Na
época, quem se sentiu ofendido foi desqualificado pelo campo
progressista como reacionário ignorante, incapaz de compreender a
profundidade das obras. Ou seja, as pessoas têm o direito de se revoltar
contra a estátua de bronze de Sapri, mas não podem se sentir ofendidas
diante de obras de arte que tangenciam a pedofilia.
Continuo amanhã.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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