Censurar a palavra 'mulher' é um regresso a uma estreita definição biológica que objetifica. João Pereira Coutinho para a FSP:
A
revista “Lancet”, respeitadíssima publicação médica, colocou a
expressão na sua capa e recebeu cartas furiosas dos leitores. “Corpos
com vaginas”, segundo parece, é uma forma de não discriminar as mulheres trans que se sentem mulheres apesar de não terem a clássica genitália feminina.
Antes
de analisar o caso propriamente dito, confesso certo desconforto com a
expressão. E imagino, em jantares ou encontros sociais, o embaraço que
vou sentir se a palavra “mulher” for substituída por “corpo com vagina”.
Eu: “Boa noite. Deixe-me apresentar C., o meu corpo com vagina".
Anfitrião: “Muito prazer, C. O seu corpo com testículos já me tinha falado de você”.
O
problema é que ninguém usa a expressão “corpo com testículos”, certo? A
revista Economist, que dedica um editorial ao tema, começa por
sublinhar essa sutil misoginia. Na limpeza linguística em curso, “homem”
continua no lugar, apesar de existiram homens trans que, apesar da
ausência de testículos, se sentem homens na mesma.
Só a palavra “mulher” tem sido alterada por variantes meramente biológicas, como “pessoas que menstruam”.
Imagino que o correspondente masculino seria “pessoas que urinam de
pé”, embora seja possível imaginar que homens também o possam fazer
sentados.
Ponto
prévio: minha indiferença liberal se estende a questões de género. Se
um homem (biologicamente falando) se identifica como mulher (ou
vice-versa), viver e deixar viver continua sendo o meu lema.
Mais:
se um vizinho meu, “corpo com testículos”, me informasse que gostaria
de ser tratado por “senhorita”, não haveria hesitação ou drama. Ao
contrário do que pensam os histéricos das guerras culturais, a fluidez de género sempre fez parte da experiência histórica registrada –dos antigos romanos à belle époque, do Renascimento aos romances de Evelyn Waugh.
E
não estou falando de casos de “disforia de género”, que muitas vezes
implicam terapia hormonal e cirurgia de reatribuição de sexo. Não. Estou
falando de “fluidez” mesmo, sem precisarmos de entrar no bloco
cirúrgico.
Acontece
que a censura de certas palavras, começando pela palavra “mulher”, e a
substituição por “corpos com vaginas” constitui uma regressão quase
neolítica do estatuto das próprias mulheres.
Durante séculos, os movimentos de emancipação feminina
(e os movimentos feministas; não são a mesma coisa) tiveram como
objetivo elevar a mulher acima da sua condição biológica, ou seja, acima
da sua função sexual e reprodutiva.
Os
homens “objetificavam” as mulheres, reduzindo-as a meros “corpos com
vaginas” (para gratificação dos homens, claro). As principais conquistas
sociais das mulheres fizeram-se contra esse reducionismo desumanizante, para o qual as mulheres não passavam de um pedaço de carne.
A
ambição contemporânea de riscar a palavra “mulher”, regressando a uma
estreita definição biológica (“corpos com vaginas”, “pessoas que
menstruam”, talvez “criaturas com úteros”) é o tipo de definição que só
os homens mais boçais seriam capazes de imaginar.
Aliás, se essa mudança de linguagem
triunfar, já imagino os meus netos, na maior das inocências, comentando
com os amigos quais são os corpos com vaginas que eles, homens com
direito à palavra “homem”, gostariam de convidar para jantar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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