À primeira vista, parecia que o militar organizara uma viagem tripulada a Marte, e não a supervisão de uma rede de tendas entre Monção e a Fuzeta, onde enfermeiros cometiam injeções. A crônica semanal de Alberto Gonçalves para o Observador:
Quando
se anunciou a campanha de vacinação, liderada por um daqueles
matraquilhos que o PS vai buscar às profundezas, apostei com um
interlocutor indefinido que a coisa correria mal. Nas primeiras semanas,
“correr mal” foi eufemismo: as vacinas não chegavam, as que chegavam
eram imediatamente açambarcadas por caciques locais ou aparentados, os
grupos prioritários mudavam a cada dia ou a cada pressão do mais recente
grupo prioritário, etc. A fim de me estragar a aposta, o dr. Costa
despachou o matraquilho e, uma vez sem exemplo, recrutou um sujeito
exterior ao partido. E, até porque piorar seria impossível, a coisa
melhorou.
O
que aconteceu? Nada de especial. Ao invés do antecessor, que
aparentemente coordenava as operações a partir de casa, através de Zoom e
à frente de um retrato de “Che” Guevara, o novo responsável optou por
trabalhar. O vice-almirante Gouveia e Melo imitou o que acontecia nos
países em que o objectivo da campanha de vacinação era, imagine-se,
vacinar o povo e não alimentar propaganda. Apesar de se manter típicas
excentricidades de terceiro mundo, como a de privilegiar profissões em
detrimento da idade e da situação clínica, montou-se enfim a logística
necessária – e o nosso atávico pavor à exclusão encarregou-se do resto.
Em questão de meses, alcançou-se e de seguida superou-se a média
europeia na matéria. Mérito do vice-almirante? Com certeza, e só na
medida em que é meritório cumprir a função que se aceita desempenhar.
Por azar, como estamos em Portugal, não houve maneira de escapar à
hipérbole e ao espectáculo, quer na veneração do homem, quer no
comportamento do homem.
Começo
pela veneração. Não falo da urgência em atropelar a hierarquia para
subir o homem a um posto de chefia, um expediente matarruano habitual no
governo. Nem falo da condecoração atribuída pelo prof. Marcelo que,
havendo oportunidade, pendura uma medalha no quarto classificado do
Torneio Ibérico de Pesca à Linha. Falo do dia em que se encerrou a
famosa “task force” e em que uma extraordinária quantidade de criaturas
achou indispensável exibir nas “redes sociais” um comovido agradecimento
ao vice-almirante. À primeira vista, parecia que o militar organizara
uma viagem tripulada a Marte, e não a supervisão de uma rede de tendas
entre Monção e a Fuzeta, onde enfermeiros cometiam injecções. Há quem
ache o vice-almirante o principal motivo de orgulho das Forças Armadas
nas últimas décadas (a competição não é feroz). Há quem o garanta
invencível nas próximas eleições presidenciais (idem). E há quem o eleve
ao estatuto de maior vulto da História Contemporânea, ideal para
organizar tudo e liderar tudo (e há quem, principalmente à esquerda,
procure moderar tais delírios de modo a impedir a criação de um
potencial, e imprevisível, adversário político).
Antes
que proponham enfiá-lo em vida no Panteão, cabe perguntar o que leva
tantos cidadãos a tamanha devoção por um cidadão que apenas mostrou
competência. Proponho três respostas, que afinal são a mesma: 1) se
calhar esses cidadãos sabem-se incompetentes, logo ficam assombrados
perante os que não o são; 2) se calhar esses cidadãos são os que julgam
louvável a actuação das dras. Martinha e Gracinha, dois cataclismos que
por comparação fazem do vice-almirante o general Eisenhower; 3) se
calhar os padrões de exigência desses cidadãos para com o próximo são,
por experiência própria ou pela longa sujeição a bitolas socialistas, a
dar para o baixo. Em suma, o vice-almirante passa por óptimo por se
revelar acima da média num país em que a média é péssima.
Infelizmente,
fora da logística das vacinas o vice-almirante não se destacou da
maioria dos seus compatriotas. Pelo contrário. Mal percebeu o culto que
suscitava, adoptou o papel de guia espiritual. Enquanto jurava que não
queria protagonismo, concedeu entrevistas, palestras e depoimentos a uma
cadência quase diária, sempre empenhado em fingir modéstia e de facto a
escorrer soberba. De acordo com o vice-almirante, o vice-almirante é
fantástico no que toca às missões que assume, à autoridade que exerce e –
esperem lá – às mulheres, com as quais confessa ter tido “algum
sucesso”. Esta é a parte ligeira do discurso. A parte grave é o
vice-almirante exceder as tarefas que lhe confiaram e desatar a emitir
palpites acerca das vacinas e do direito das pessoas a recusá-las. Teria
sido útil ensinarem ao senhor que uma sociedade civil não se confunde
com a tropa: a omnipresença do uniforme camuflado também sugere a
confusão.
Porém,
confusa é igualmente a adoração colectiva. Seria engraçado apurar
quantos devotos do vice-almirante pertencem àquela gente que, cheiinha
de medo e virtude, continua a usar máscara na cara e gosma nas mãos.
Essa gente idolatra a figura que lhes proporcionou um serviço de cujos
benefícios duvidam e cuja eficácia menosprezam. No fundo, canonizaram o
vice-almirante sem saber porquê, e esta é das homenagens mais
insultuosas que se pode prestar a alguém.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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