Investimentos em setores estratégicos, lobby em Brasília, proselitismo em universidades: afora o discurso lunático da militância bolsonarista, como se dá e até onde vai a presença chinesa em território brasileiro. Duda Teixeira para a Crusoé:
A
China ganhou destaque no noticiário brasileiro dos últimos dias por
distintas razões. Na segunda-feira, 20, o temor de que a incorporadora
chinesa Evergrande desse um calote de 300 bilhões de dólares derrubou em
mais de 3% as ações de empresas nacionais como Vale, Usiminas, Gerdau,
Braskem e Petrobras — dias depois, um acordo com credores e mutuários
chineses sobre os juros da dívida afastou temporariamente o risco,
permitindo que as companhias brasileiras recuperassem parte do valor.
Nos atos antidemocráticos do Sete de Setembro, apoiadores do presidente
Jair Bolsonaro compartilharam mensagens e gritaram palavras de ordem
contra o país asiático — sem dizer exatamente por que motivo, eles
acusavam o Supremo Tribunal Federal de atuar para transformar o Brasil
em colônia chinesa. Na quinta-feira, 16, ainda na esteira da confusão,
houve um improvável atentado a bomba, até agora ainda não esclarecido,
na frente do Consulado da China no Rio de Janeiro. A Polícia Federal
investiga. Nessa sucessão alucinante de eventos, com teorias
conspiratórias de sobra, antes de firmar qualquer ponto de vista é
preciso buscar uma compreensão mais próxima possível da realidade a
partir de dados concretos: afinal, como se dá e até onde vai a presença
chinesa no Brasil?
Nas
últimas duas décadas, a relação entre a China e o Brasil mudou
substancialmente e hoje se dá em planos superpostos, que afetam toda a
sociedade. Alguns deles são imprescindíveis para a estabilidade e o
progresso nacional, enquanto outros podem e devem despertar atenção, por
questionar alguns de nossos princípios democráticos. No plano
econômico, a influência chinesa é incontornável. No ano passado, a China
foi o maior parceiro comercial do Brasil. As exportações, compostas
principalmente de minério de ferro, soja, carne e celulose, renderam um
superávit de 35 bilhões de dólares. A soma das exportações e importações
ultrapassou 100 bilhões de dólares — o dobro do que foi comercializado
com os Estados Unidos, por exemplo. Neste ano, as transações entre
Brasil e China seguem em velocidade duas vezes maior do que a registrada
com os americanos.
No
quadro de investimentos estrangeiros no Brasil, os Estados Unidos
também já não ocupam a liderança isolada. O ponto de inflexão ocorreu em
2010. “Nesse ano, por decisão interna, a China expandiu seus
investimentos pelo mundo todo e ampliou sua relação com o Brasil, que
passou a ir além da questão comercial”, diz Tulio Cariello, diretor de
conteúdo e pesquisa do Conselho Econômico Brasil-China, o CEBC, que
reúne empresas privadas brasileiras. Nos sete anos seguintes, China e
Estados Unidos passaram a se alternar na posição de maior investidor do
país. Desde 2007, o valor acumulado de investimentos chineses no Brasil
alcançou 66 bilhões de dólares, distribuídos em 176 empreendimentos.
Quase metade dessa cifra foi para o setor de energia elétrica. Gigantes
chineses como a State Grid e a China Three Gorges, a CTG, alavancaram a
sua presença por aqui, assumindo contratos de concessão. As demais áreas
em que os chineses mais investem são as de petróleo e gás, mineração e
indústria de manufatura. Eles também têm despejado dinheiro em obras de
infraestrutura.
A
agricultura responde por apenas 5% dos investimentos, mas é um dos
setores que mais despertam polêmica. A preocupação é com a compra de
grandes porções de terras por chineses. Jair Bolsonaro já disse, por
exemplo, que isso colocaria em risco a segurança alimentar do
brasileiro. Ele até ameaçou vetar um projeto em tramitação no Congresso
Nacional destinado a facilitar a aquisição de terras por estrangeiros.
Dados do Instituto Nacional de Reforma Agrária, o Incra, apontam que os
chineses estão em 14º lugar entre os estrangeiros que mais têm
propriedades no Brasil. Não é algo significativo. O maior projeto de uma
empresa chinesa nessa frente, até agora, foi da Chongqing Grain Group,
que anunciou em 2010 o plano de construir uma fábrica de esmagamento de
soja, um armazém de grãos e uma ferrovia no oeste da Bahia. A iniciativa
não foi adiante por vários motivos. Dos 100 mil hectares que estavam
sendo oferecidos aos chineses, 80% não prestavam para a agricultura.
Além disso, naquele mesmo ano, a Advocacia Geral da União, a AGU,
expediu um parecer que bloqueava as vendas de áreas para estrangeiros.
“Desde então, a China passou a agir adquirindo companhias de sementes,
de fertilizantes e empresas que negociam os grãos, as tradings”, diz o
engenheiro agrônomo Anderson Galvão, diretor da Céleres, uma consultoria
de agronegócio com sede em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. “Hoje,
cerca de 80% da soja brasileira tem a China como destino. É um indício
de que a estratégia está funcionando.”

Enquanto
isso, assuntos que poderiam causar comoção têm passado despercebidos. O
Brasil tem hoje dez unidades do Instituto Confúcio funcionando dentro
de universidades públicas e privadas. Criado em 2004, o instituto se
dedica principalmente a difundir o ensino do mandarim em 147 países. As
escolas, contudo, têm sido criticadas por seu vínculo com as burocracias
estatais do Partido Comunista, que recruta os professores e produz o
material didático. Temas que podem desagradar à ditadura de Pequim, como
a repressão ao movimento democrático em Hong Kong ou a invasão do
Tibete, por exemplo, não entram na grade de conteúdo. Por sua ligação
com o governo chinês, o Instituto Confúcio poderia até ser comparado a
outras instituições de ensino, como a Aliança Francesa, o Instituto
Cervantes, da Espanha, o British Council, o Instituto Italiano de
Cultura ou o Instituto Goethe, alemão. A diferença, porém, é que o
instituto chinês, com suas diretrizes obedientes ao regime, está
incrustrado dentro das universidades, que deveriam prezar pela liberdade
de pensamento.
Em
2019, a ONG de direitos humanos Human Rights Watch publicou um alerta
pedindo que instituições de ensino superior resistissem aos “esforços do
governo chinês de minar a liberdade acadêmica no exterior”. Após
realizar mais de 100 entrevistas com estudantes do Instituto Confúcio na
Austrália, Reino Unido, Canadá, França e Estados Unidos, a organização
identificou casos de pessoas que tinham suas participações em sala de
aula monitoradas remotamente. “As unidades do Instituto Confúcio são
extensões do governo chinês que censuram certos assuntos e pontos de
vista nos materiais didáticos com base na política, e usam práticas de
recrutamento que levam em consideração a lealdade partidária”, dizia o
alerta.
Diversas
universidades americanas já fecharam filiais do Instituto Confúcio por
violarem a liberdade acadêmica. Há um ano, o governo americano, então
comandado por Donald Trump, definiu o instituto como missão estrangeira
da China. “O Instituto Confúcio é financiado pelo governo da China e faz
parte do aparato de propaganda do Partido Comunista Chinês”, afirmava o
comunicado do Departamento de Estado. “Os Estados Unidos querem
garantir que os alunos tenham acesso a opções culturais livres da
manipulação do Partido Comunista Chinês.” Além dos Estados Unidos,
Canadá, Austrália e Suécia encerraram as atividades de unidades do
Instituto Confúcio.
No
Brasil, as filiais da entidade seguem funcionando praticamente sem
questionamentos. Em especial, dentro de universidades públicas. Na
Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, a ditadura chinesa arca
com os salários dos professores, enquanto os demais funcionários e os
custos ligados à estrutura são pagos pela instituição paulista. “A
fundação chinesa faz uma pré-seleção das pessoas que querem ser
professores no nosso Instituto Confúcio. Nós então recebemos as
candidaturas e realizamos as entrevistas pela internet. Temos, portanto,
alguma interferência no processo de recrutamento”, diz o professor
Bruno Martarello de Conti, diretor do Instituto Confúcio da Unicamp.
Caso os alunos façam alguma queixa em relação aos professores ou ao
diretor chinês, a Unicamp pode pedir que sejam trocados, segundo ele. Em
relação ao conteúdo acadêmico, Martarello afirma que a universidade
pode sugerir temas de palestras. “O propósito precípuo do Instituto
Confúcio é o ensino da língua, mas é claro que existe a possibilidade de
o instituto ajudar nas atividades de colaboração acadêmica com a China.
Então, algumas palestras e seminários podem ser apoiados por nós.”

Em
outra frente, o Partido Comunista tem buscado conquistar um público
mais amplo por meio da televisão. O Grupo Bandeirantes de Comunicação,
responsável pelo canal Band, assinou em 2019 um acordo de cooperação com
o China Media Group, que reúne 47 canais de televisão estatais. O
contrato permite a realização de produções conjuntas e o
compartilhamento de conteúdo. Na prática, o resultado foi que o
brasileiro pôde ligar a tevê e assistir à chinesa Jing Jing Yang
apresentando reportagens, com português carregado, em que os
entrevistados tecem elogios à ditadura de Pequim. As chamadas das
“reportagens” são o melhor resumo dos conteúdos compartilhados:
“Ministra chilena elogia esforços da China” e “Colômbia avalia postura
da China como positiva”. Um documentário sobre o Partido Comunista
chinês afirma, por exemplo, que “somente quando o pensamento está
unificado pode haver vontade, ação e progresso também unificados”. Na
ditadura chinesa, como é sabido, não há espaço para o contraditório. De
brinde, o telespectador desavisado ainda pode ganhar um pensamento
filosófico citado pelo ditador Xi Jinping: “Todas as criaturas crescem e
se desenvolvem cada qual em seus sistema e ordem, sem prejudicar o
outro, e a natureza segue o seu curso de maneira paralela e sem
conflitos”.
Na
última terça-feira, 21, foi a vez da TV Cultura, vinculada ao governo
de São Paulo, anunciar um acordo semelhante com a Xinhua, a agência
oficial chinesa de notícias. “Esse acordo permite que a TV Cultura vá se
informar na fonte primária, não na fonte alternativa ou secundária que
são as agências ocidentais de informação sobre a China. Nós temos
condições de, doravante, saber exatamente como pensam os chineses e o
que dizem os chineses“, afirmou José Roberto Maluf, presidente da
Fundação Padre Anchieta, mantenedora da Cultura. Tudo o que a Xinhua
divulga em suas páginas, porém, reproduz as versões do Partido Comunista
– não há a menor chance de a agência entrevistar muçulmanos uigures
presos na província de Xinjiang, monges tibetanos perseguidos ou
estudantes que pedem democracia em Hong Kong.
Outra
vertente do avanço chinês no Brasil se dá entre os think tanks.
Integrantes do Partido Comunista têm sido constantemente convidados para
palestras virtuais organizadas por esses institutos, que deveriam se
dedicar a produzir e a debater assuntos diversos, com o intuito de
ajudar na elaboração das políticas públicas. Um dos nomes mais
frequentes nessas apresentações é o do embaixador chinês Yang Wanming,
desafeto de Jair Bolsonaro. O Instituto para Reforma das Relações entre
Estado e Empresa, o Iree, é talvez a entidade brasileira que mais tenha
dado espaço para Wanming e outros representantes do partido. O
presidente do Iree é Walfrido Warde, advogado que já defendeu a
ex-presidente Dilma Rousseff e que tem Roberta Maria Rangel, mulher do
ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, como sócia.
Em
seu site, o Iree cita como parceiro o Center for Internacional Security
and Strategy, o CISS, da Universidade Tsinghua, em Pequim. Em seu
primeiro anuário, publicado em 2019, a diretora do instituto, Fu Ying,
descreve de maneira clara qual deve ser a utilidade de um think tan na
visão de Pequim: “O CISS tem explorado o estabelecimento de think tanks
em um esforço para alcançar a atual estratégia da China e as
necessidades de desenvolvimento da nação”. “Os think tanks devem aderir à
direção política de servir ao partido, ao país e ao povo, assim como
propor políticas. Enquanto o resto do mundo tem pedido mais vozes da
China nos últimos anos, informações enganosas e manipuladas ainda são
encontradas por todos os lados. Então, os think tanks da China devem
fazer mais e falar mais, e o CISS não poupará esforços para realizar
essa causa”, prossegue.

De
todos os planos desse intrincado jogo chinês, o da política tem um
papel central. A Embaixada da China mantém proximidade com uma porção
significativa do Congresso brasileiro. Uma das principais receitas que o
governo chinês usa para difundir seus interesses junto a políticos é a
realização de viagens para o país com todas as despesas pagas. Antes da
pandemia, em setembro de 2019, os senadores Chico Rodrigues, do DEM,
Esperidião Amin, do PP, Irajá Abreu, do PSD, e Rogério Carvalho, do PT,
estiveram entre os convidados. A despeito do discurso sinofóbico das
claques bolsonaristas, outro que participou do trem da alegria foi
ninguém menos que Flávio Bolsonaro, o filho 01 do presidente da
República, numa daquelas situações capazes de provocar tilt na cabeça
dos militantes mais empolgados, mas que ao mesmo tempo revela o quanto a
influência chinesa ultrapassa facilmente os limites da ideologia e das
colorações partidárias.
Chico Rodrigues, aquele mesmo que no ano passado foi flagrado pela polícia tentando esconder dinheiro entre as nádegas,
fez um pronunciamento no Senado logo após voltar de um tour por Pequim,
Xangai e Hangzhou. “A China investiu quase 2 trilhões de dólares no
mundo. A China investiu quase 2 trilhões de dólares no mundo! O Brasil
recebeu pouco mais de 3% desses investimentos, o que mostra que há muito
espaço para atrair investimentos chineses para a economia brasileira”,
disse o senador. “A China é tida como um país comunista. Que país
comunista é esse que tem um 1,4 bilhão de habitantes? (…) Eles são
comerciantes milenares e, cada vez mais, nesse mundo competitivo,
desenvolvem as suas atividades no comércio, mostrando a sua pujança e,
obviamente, nos dando exemplos de como concorrer neste mundo
competitivo”, emendou. Outro convidado, Irajá Abreu, filho da também
senadora e ex-ministra Kátia Abreu, é o autor de um projeto de lei
apresentado em 2019 que busca regulamentar a compra e o arrendamento de
terras por empresas estrangeiras. A expectativa do senador é atrair 50
bilhões de reais por ano em novos investimentos.
Uma
das principais batalhas políticas dos chineses no Brasil neste momento
envolve o leilão de tecnologia 5G, que permitirá uma velocidade de
tráfego de dados na internet 100 vezes maior que a oferecida pelas redes
atuais. O leilão, inicialmente marcado para 2020, foi adiado várias
vezes – em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, na terça-feira, 21,
Bolsonaro afirmou que o certame deverá ocorrer “nos próximos dias”. A
decisão deverá encerrar um duelo global. Os Estados Unidos têm
pressionado o Brasil a banir a gigante chinesa Huawei do processo, sob o
argumento de que a presença chinesa em uma área tão sensível põe em
risco a privacidade dos usuários e até o sigilo das comunicações
oficiais, podendo afetar, em última instância, a segurança nacional do
Brasil – pelas leis da China, todos os cidadãos do país, e isso inclui
evidentemente as empresas comandadas por eles, devem cooperar com os
trabalhos de inteligência do governo. Não é, porém, uma questão simples.
Há tempos, a Huawei fornece equipamentos para as grandes operadoras de
telecomunicações brasileiras. Os aparelhos são mais baratos que os
rivais europeus da Ericsson ou da Nokia, e permitiriam que as companhias
os atualizassem para o uso no 5G sem ter que fazer grandes
investimentos. Estima-se que esta possa ser a maior licitação da
história do país, capaz de movimentar 45 bilhões de reais. Setores do
agronegócio brasileiro apoiam a participação da China no leilão, com
medo de futuras retaliações – o lobby já contou até com a ajuda do
vice-presidente da República, Hamilton Mourão.
Além
de políticos com mandato atualmente, os chineses também acionaram o
ex-presidente Michel Temer. Em janeiro deste ano, veio a público a
notícia de que a Huawei o contratou como conselheiro. Crusoé perguntou à
empresa que cuida da assessoria de imprensa da gigante chinesa, a FSB,
se Temer continua prestando o serviço. A resposta foi a seguinte: “A
Huawei informa que o ex-presidente Michel Temer nunca atuou como
conselheiro ou exerceu qualquer outro cargo na empresa”. Apesar da
negativa, Temer sempre se orgulhou de seus laços com a Huawei e com os
chineses. Em entrevista para a agência Xinhua no dia 26 de abril deste
ano, ele falou de sua relação com a empresa. “Procurado pela Huawei, dei
um parecer jurídico revelando as possibilidades de a empresa participar
desta licitação (refere-se a leilão do 5G) sem nenhum impedimento.
Parece-me que nessa altura não há mais problemas no governo brasileiro.
Portanto, acho que ainda este ano será levada adiante a licitação“,
disse. Crusoé perguntou, então, para a FSB se ela própria contratava
Michel Temer. A resposta foi: “A FSB informa que contrata o escritório
Temer Advogados Associados para assessoria jurídica”. Resumindo, a
Huawei contrata a FSB, que contrata Michel Temer. Na ordem inversa:
Temer trabalha para a FSB, que trabalha para a Huawei. Vale lembrar que,
mesmo tendo deixado a cadeira presidencial há mais de dois anos e meio,
Temer voltou a ter influência no Palácio do Planalto. Foi ele, afinal, o
autor da declaração assinada por Jair Bolsonaro em que o presidente
baixou o tom de suas declarações contra o Supremo Tribunal Federal no
Sete de Setembro – mais um tilt na cabeça dos bolsonaristas. O Brasil
está longe de se transformar em uma colônia chinesa, como apregoam os
apoiadores mais exaltados do presidente, mas é verdade que Pequim – a
seu modo, e sem economizar – tem feito de tudo para avançar por aqui.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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