Uma
rede de televisão me ligou e perguntou se eu gostaria de participar de
um programa sobre exorcismo. “Por que eu?”, pensei. Theodore Dalrymple
via Oeste:
Desde
que pesquisei Allan Kardec na internet, os algoritmos acham que sou
espírita ou que tenho um forte interesse acadêmico no espiritismo
brasileiro. Sua oferta mais recente foi um longo artigo sobre as
atitudes dos psiquiatras brasileiros em relação ao espiritismo na
primeira metade do século 20 (não foram favoráveis). Quando o li, claro,
só confirmei a falsa impressão do algoritmo.
Meu
único outro contato com o mundo dos espíritos foi pela televisão. Um
dia, mais de 20 anos atrás, uma rede de televisão me ligou e perguntou
se eu gostaria de participar de um programa de debates sobre exorcismo.
“Por que eu?”, pensei, como alguém acometido por uma doença rara.
Relutei, mas acabei concordando em participar.
Na
época, eu não assistia à TV fazia mais de 30 anos (hoje faz mais de
50). Minha ideia de programas de debate vinha de lembranças vagas dos
anos 1950, quando figuras como Bertrand Russell e Aldous Huxley se
sentavam à volta de uma mesa e discutiam questões enviadas pela
audiência, como “A humanidade pode ser feliz?”
Assim,
fiquei um tanto surpreso ao encontrar uma plateia, recrutada de
fábricas locais e obviamente embebedada, sentada em um tipo de arena
provisória construída no estúdio. Logo me dei conta de que o esperado
era mais uma disputa de gladiadores do que uma discussão, com os
produtores torcendo por uma explosão dramática e possíveis brigas. Muito
diferente da década de 1950, mas, até aí, não se pode parar o
progresso.
Fui
conduzido ao meu lugar na arena, onde me sentei ao lado de um jovem. O
apresentador do show — porque aquilo era um show — foi até um rapaz e
lhe pediu para contar sua história. Ele tinha sido um soldado na Guerra
das Malvinas e, depois de deixar o Exército, se tornou um criminoso
violento. Mas então conheceu alguns exorcistas que exorcizaram o demônio
dentro dele. (O exorcismo foi filmado, e ele apareceu vomitando em um
balde, de acordo com o rapaz, uma pequena criatura verde que logo
desapareceu.) Depois do ritual, ele passou a dedicar a vida a ajudar os
mais velhos, fazendo suas compras, levando-os para fazer caminhadas etc.
A plateia aplaudiu.
O
apresentador então virou para mim e enfiou o microfone embaixo do meu
nariz. “O que o senhor tem a dizer, doutor?”, ele perguntou.
Deparei
com um dilema. Por um lado, não queria dar credibilidade a esse absurdo
sem sentido. Por outro, a plateia bêbada obviamente estava sendo
solidária ao homem e poderia reagir mal se eu parecesse desdenhoso ou
condescendente.
“Fico feliz que ele esteja se sentindo melhor”, respondi.
Foi um triunfo do homem (mulher) comum sobre a academia.
Aparentemente,
minha performance foi tão satisfatória que fui convidado a voltar ao
programa umas três semanas depois, desta vez para “debater” a questão de
assassinatos cometidos por esquizofrênicos. Nem é necessário dizer que
não quis voltar. Mas eu tinha um colega, um professor cuja companhia
apreciava socialmente, mas que considerava arrogante e desonesto: eu o
recomendei em meu lugar. Assim como eu, ele não entendia nada de
televisão e, por isso, aceitou.
Desta
vez, a ordem dos participantes foi invertida. Primeiro, foi pedido que
ele elucidasse a conexão entre esquizofrenia e assassinato, e o
professor fez um tratado acadêmico breve, porém coerente, apontando que a
maioria dos esquizofrênicos não cometia assassinatos, e que a maioria
dos assassinatos não era cometida por esquizofrênicos. Além disso, o
número de assassinatos cometidos por esquizofrênicos não tinha aumentado
na última década.
O
apresentador do programa então logo se virou para a mulher sentada ao
lado do meu colega e perguntou o que ela achava do que o professor tinha
dito. O marido dela havia sido assassinado por um esquizofrênico na
semana anterior. Não é uma surpresa que ela não tivesse pensado muito
sobre o que ele disse, ainda que sua opinião de forma alguma tivesse
refutado aquelas estatísticas. Mesmo assim, a mulher ganhou a
solidariedade da plateia contra o professor supostamente onisciente. Foi
um triunfo do homem (mulher) comum sobre a academia.
Dificilmente
haveria uma maneira pior de formar a opinião pública sobre qualquer
tema, quase uma propaganda política. A partir desses dois programas, o
público teria aprendido que: 1) pelo menos alguns criminosos violentos
são habitados por pequenos demônios verdes passíveis de exorcismo, e 2)
um grande número e uma alta proporção de assassinatos são cometidos por
esquizofrênicos. Tenho medo de pensar o que mais poderia ser apreendido
desses programas semanais que duraram anos.
Por
outro lado, a verdade no abstrato não é tudo. Se as pessoas acreditam
em exorcismo, ele vai conseguir “curar” o que não pode ser curado de
nenhuma outra forma. Não é como se a medicina científica dispusesse de
uma vasta gama de meios para transformar criminosos violentos, por
exemplo, em cidadãos honestos e produtivos. A doutrina dos Alcoólicos
Anônimos me parece ser intelectualmente incoerente e autocontraditória,
mas é muito mais importante que um alcoólico pare de beber do que tenha
uma teoria verdadeira e intrinsecamente consistente sobre a própria
doença. A verdade vos libertará, diz o Evangelho de São João, mas tenho a
impressão de que a relação entre a verdade e a liberdade é um pouco
mais complexa do que isso faz parecer. Então, talvez minha resposta, de
que estava feliz que o ex-soldado e criminoso estivesse melhor, tenha
sido a melhor que eu poderia dar no fim das contas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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