domingo, 1 de agosto de 2021

Como viver juntos: a democracia tem seu preço.

 



A democracia é uma grande invenção, mas cobra um preço. O maior deles é a renúncia da violência em favor da persuasão. Fernando Schüler para a revista Veja:


Atacar estátuas virou moda de uns anos pra cá. Os alvos principais, nos Estados Unidos, foram os heróis confederados. Logo depois, a coisa cresceu. George Washington e Abraham Lincoln caíram em Portland; o genocida Cristovão Colombo perdeu a cabeça em Boston. Até Mahatma Gandhi, acusado de racismo, dançou. Decapitado, foi parar em um depósito. Só restaram os pés, com aquelas sandálias, no pedestal de um parque de Davis, na Califórnia.

Tudo isso é parte da hiperpolitização da vida atual. O passado entrou na roda. Velhos fantasmas se tornam atores políticos e voltam a assombrar. Há quem veja isso como natural. Erin Thompson, historiadora americana, deu de ombros: “Monumentos são derrubados desde sempre”. Há 2 600 anos, em estátuas assírias já se liam maldições do tipo “Quem derrubar a minha estátua sofrerá por toda a eternidade”. A reforma e a Revolução Francesa assistiram, por razões distintas, a surtos de iconoclastia. Todos se lembram das imagens do Talibã explodindo os Budas de Bamiyan e, mais recentemente, a barbárie do Estado Islâmico na cidade de Palmira, na Síria

Há mesmo quem veja a vandalização como um tipo de arte. Monumentos vandalizados receberiam um novo significado, e poderiam até melhorar por causa disso. Um bom amigo foi nessa linha, no recente episódio da queima do Borba Gato. “A estátua deve ficar lá, chamuscada”, ele me disse. Ela contará a história do bandeirante e também do “genocídio” bandeirante. A obra se torna coletiva. O vândalo surge como o artista e encontra sua dignidade.

O argumento não é estranho à história da arte. Alguém poderia dar um beijo com batom vermelho em um quadro de Andy Warhol (como de fato aconteceu), ou quem sabe entrar no Museu do Prado e passar uma gilete no pescoço de uma das meninas, de Velásquez. Aquilo não expressa, afinal, a monstruosidade do império espanhol? O artista tem lá suas razões. Eu me lembrei de Tom Wolfe: “Toda arte demanda uma teoria que a sustente”.

Há um lado poético aí, mas também um problemão. Algo que de alguma forma explica o passado serviria também de norma para o futuro? Estamos mesmo dispostos a admitir a legitimidade dos novos artistas? O fogo parece ser seu instrumento de trabalho preferido, mas não se deve ter preconceito aí. A história está aí para ser escrita e reescrita infinitamente, não é mesmo? Em Bristol, a turma decidiu retirar a estátua do traficante de escravos Edward Colston do mar, onde havia sido jogada, e deixar a dita-cuja exposta, devidamente vandalizada, e deitada, nunca de pé, em um museu. Para alguns, a obra perdeu potência. O fundo do mar seria seu lugar perfeito. Uma consulta pública foi aberta. Seu destino é incerto.

A intervenção, na arte, é um tipo de apropriação. Você vai lá e redefine um objeto ou espaço qualquer a partir de seus próprios critérios. Supõe um risco. Se você for genial e as pessoas acreditarem nisso, o.k. Você dá um jeito de pintar um bigode na Mona Lisa, no Louvre, e entra para a história da arte. Se não colar, vai em cana. Quem define essas coisas? Nossas sociedades democráticas definiram que as escolhas sobre a arte e os espaços públicos devem seguir certas regras, respeitar a autoria e a decisão por meio de instituições. Disse isso dias atrás e alguém retrucou que soava meio “insípido”. Era uma crítica, mas concordei. As regras da democracia são mesmo insípidas. E lentas. E em geral chatas pra caramba.

Este é o debate em torno da fogueira do Borba Gato. Não se trata de uma discussão sobre se ele merecia ou não aquele destino. Se a obra do escultor Júlio Guerra foi escolhida em uma seleção pública (como de fato foi), se era arte popular, kitsch ou apenas um “bonecão”, como as crianças da minha época se referiam àquela figura gigante. Seria o mesmo se o debate fosse sobre o Duque de Caxias, dom Pedro II ou Getúlio Vargas, para citar alguns dos tipos mais homenageados por aí. Caxias não comandou uma guerra genocida no Paraguai? Dom Pedro não reinou meio século sobre um império escravocrata? Getúlio não fechou o Congresso durante quase uma década e mandou Olga Benário morrer em um campo de concentração? Mesmo assim, há quem argumente, legitimamente, que monumentos associados a essas pessoas são cicatrizes que devem ficar por aí, de modo a nos fazer lembrar e pensar criticamente sobre o passado.

Pode-se concordar ou não. Meu ponto é outro. É a respeito de como deve ser tomada uma decisão sobre a cidade. Analogias com a derrubada de estátuas de Hitler, no fim da guerra, ou a tomada da Bastilha, em 1789, são falácias de colégio. Não estamos em guerra ou em uma monarquia absolutista. Vivemos em uma democracia. Ela é cheia de defeitos, mas é o método que escolhemos para tomar decisões coletivas. Método erguido a duras penas, quando fizemos a transição dos anos 80, a Constituição, as legislações inclusivas que temos hoje, como a política de cotas, o Prouni, o BPC, a Lei Maria da Penha.

A democracia é uma grande invenção, mas cobra um preço. O maior deles é a renúncia da violência em favor da persuasão. Você terá de convencer os outros se quiser fazer valer sua ideia. Terá de argumentar, escrever, propor uma lei, se quiser meter a mão no espaço público ao qual os outros (por terrível que pareça) têm o mesmo direito. A pergunta incômoda é a seguinte: os grupos que se autoproclamam no direito de queimar ou fazer sumir alguma coisa da vida do bairro, da praça ou da história estão dispostos a conceder o mesmo direito aos que pensam de maneira oposta?

O debate é sobre uma antiga questão. Sobre como nós, que fazemos parte (e nos orgulhamos disso) de uma sociedade plural, marcada por uma fratura incurável nos mundos da ética e da estética, podemos viver juntos. Viver em um pacto onde cada um abre mão de ser o juiz do que pode ou não pertencer ao espaço comum. Há inúmeros exemplos nessa direção. Agora mesmo, em Nova York, decide-se retirar a estátua icônica do presidente Theodore Roosevelt ladeado por um homem negro e um indígena da entrada do Museu de História Natural. Muitos foram contra, outros a favor. Não importa. Houve debate e persuasão, não pneus queimando.

No fundo, esta é a escolha. Como costuma dizer um velho amigo, a democracia foi inventada para que as pessoas não fiquem quebrando as coisas ou se matando por aí. É uma boa maneira de viver, mas exige alguma renúncia de cada um, além de dar um trabalho danado.

Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749
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sábado, 31 de julho de 2021

A luz e as chamas


Coluna de Carlos Brickmann, publicada nos jornais de domingo, 01 de agosto:


Lembra-se de Fahrenheit 451, filme de enorme sucesso, provavelmente o mais famoso do diretor François Truffaut? Tratava de uma ditadura que mandava queimar todos os livros. O título se refere à temperatura, 451 graus Fahrenheit (em graus Celsius, a medida que usamos no Brasil, seriam 233 graus), em que o papel pega fogo. Para filmes, como os pegaram fogo neste incêndio da Cinemateca, não é preciso uma temperatura tão alta – basta haver incompetência. Mas essa história será contada um pouco depois. É melhor começar com um bom exemplo – um exemplo do Governo de Brasília.

A Secretaria da Cultura do Governo Federal, dirigida por Mário Frias, iria desfazer-se de um bom acervo de livros. O secretário de Cultura de Brasília, jornalista Bartolomeu Rodrigues, pediu uma audiência a Frias. Diplomático, disse que soube que Frias teria que se desfazer do acervo por falta de espaço, e se ofereceu para alojá-lo na Biblioteca Nacional (um dos ativos culturais que vem recuperando com êxito). Frias concordou e os livros foram salvos.

Isto é governar pensando na população: o secretário brasiliense estava bem informado, sabia o que precisava ser feito, pediu audiência, levou suas propostas e todos ganharam. Não estava pensando em eleições ou em ganho político: sua área é a Cultura e seu trabalho na Secretaria brasiliense é voltado esta área – a começar pela recuperação de espaços culturais, que culminou com a salvação de livros que seriam perdidos. Briga política é outra coisa.

Fogo nos filmes

O caso da Cinemateca paulista, que pegou fogo, é o exemplo contrário: ali se jogou fora parte da memória brasileira por puro e simples descaso. Há a incompetência, mas há também o desprezo por manifestações artísticas, as ideias de que cinema é coisa de comunista ou de gente afrescalhada, que não merece atenção, embora precise ser vigiada. Em 2019 acabou o contrato de gestão da Cinemateca pela Acerp, Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto.

E aí, nada. Não se falou em renovação de contrato ou troca de gestão; aliás, o Governo nem respondeu às mensagens da Acerp. O tempo correu, houve conversas em que o Governo ficou indefinido, o Ministério Público pediu providências e, enfim, há um mês, houve audiência pública para cuidar da gestão da Cinemateca. Era tarde: o fogo chegou primeiro. Mas os ministros preferem discutir se nazismo é de esquerda ou direita.

Espera, Namoradinha!

A prova de que ninguém lá de cima se preocupa com a Cultura está no caso de Regina Duarte: quando a Namoradinha do Brasil foi mandada de volta a São Paulo, Bolsonaro prometeu-lhe um bom lugar na Cinemateca. Ela continua esperando. E ela lá sabia que a Cinemateca não é dirigida diretamente pelo Governo, mas por uma Organização Social, e ele não pode nomear ninguém? Não poderia nem se a Namoradinha vestisse farda.

A história completa

A petição inicial da ação civil pública proposta pelo MP Federal está em http://www.mpf.mp.br/sp/sala-de-imprensa/noticias-sp/mpf-posiciona-se-sobre-incendio-na-cinemateca-brasileira.

Brasília, boa notícia

O governador de Brasília, Ibaneis Rocha, do PMDB, criou nesta semana a Universidade do Distrito Federal, que inicia imediatamente as atividades. Em agosto há concurso para as 3.500 vagas na Universidade. A reitora já foi nomeada: a professora Simone Benck, graduada em Ciências Econômicas e Matemática, doutora em Educação, de ótimo trânsito na área educacional. A nova Universidade recebe um imóvel para começar a funcionar, e também o projeto para a construção de um prédio no Parque Tecnológico. As verbas para os próximos quatro anos serão de R$ 200 milhões.

Brasília, má notícia

A geada vai custar caro, sim. Mas, mais que a geada, dois outros fatores devem responder pelo aumento do preço dos alimentos: os custos maiores dos exportadores e a grande alta nas exportações. As carnes devem subir mais, quase o triplo da inflação prevista para o ano: de l2 a 17%, tanto boi quanto frango e porco. Os ovos também devem superar a inflação prevista, chegando a algo entre 7 e 8%. E isso se a inflação se mantiver tranquila: caso vençam, no governo, os ministros favoráveis a furar o teto de gasto público, a tendência da inflação será subir, desgastando ainda mais os salários.

O triste passado

O deputado bolsonarista Roberto Jefferson, cacique do PTB, abriu o partido para os integralistas. Os líderes da Frente Integralista Brasileira se filiaram ao PTB e se disseram dispostos a disputar eleições. O integralismo, chefiado por Plínio Salgado, foi a vertente brasileira do fascismo italiano, contra o qual o Brasil lutou na Itália. Jefferson os recebeu lembrando que em sua família, em Petrópolis, sempre houve integralistas. O lema integralista já apareceu em comícios bolsonaristas: “Deus, Pátria, Família”.
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Acostumados a querer "melhorar o mundo", esquecemos de elogiar o que é digno.


Se você parar para ver, vai notar a seu redor muitos seres humanos dignos de elogios os mais variados. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff:


A gente elogia pouco. Muito pouco. O que é compreensível. Afinal, somos educados a exercermos sempre o espírito crítico e a desconfiarmos de tudo e todos neste mundo que seria sempre cruel. Tão empenhados estamos em “melhorar o mundo”, porém, nos esquecemos de admirar e incentivar as infinitas pequenas coisas que dão certo, às vezes até muito certo.

Por “mundo”, me refiro não ao governo, às instituições, às celebridades – a essas coisas minúsculas que, por uma distorção do olhar, parecem gigantescas e importantíssimas. Penso, aqui, nas pessoas simples, quase todas anônimas, e suas boas intenções. E até nas tentativas que, muitas vezes, resultam em fracassos interessantíssimos que ensinam a todos.

Não estou falando do elogio que é bajulação. Muito menos do elogio-que-não-é-elogio, aquele feito com artimanha e planejamento para se traduzir em promoção no trabalho, em venda, em voto ou até em cama. Penso no elogio-elogio. Elogio com “e” maiúsculo e trabalhado. Aquela coisa simples e sincera, mas jamais suficientemente rotineira.

No elogio verdadeiro, há muito mais trabalho do que na crítica, por mais construtiva que ela seja ou pretenda ser. É preciso ser extraordinariamente generoso a fim de reconhecer: um ser humano que não eu ou você fez isso e aquilo bem, muito bem, melhor do que eu fiz hoje e possivelmente melhor do que eu jamais faria. E, por isso, é digno de um elogio.

E, se você parar para ver, vai notar a seu redor muitos seres humanos dignos de elogios os mais variados. O gari que está varrendo a rua às 6h da manhã, e sob um frio de quatro graus negativos, por exemplo. O motorista que, a despeito das buzinadas atrás dele, parou para deixar o pedestre passar. O vendedor que o atendeu bem, mesmo você tendo experimentado 50 pares de sapato e dando vários sinais de que não levaria nenhum para casa.

Em se elogiando, claro que há sempre a possibilidade de o outro se deixar envaidecer, tropeçando na banana da autocondescendência, quando não da displicência. Daí porque se ouve com alguma frequência o famoso “não se pode elogiar mesmo”. Mas esse arrependimento pelo elogio não faz sentido. O elogio geralmente tem um objeto definido e está restrito a um tempo muito específico. Ele não é, pois, garantia de infalibilidade alguma. E nem pretende ser.

Elogiar é, para evocar aqui a filosofia sartreana que fez minha cabeça no tempo em que ainda tinha cabelos, reconhecer o lugar do outro no mundo. É dar momentaneamente um sentido à existência abençoadamente pequena de todos nós. É perceber no outro uma centelha em meio a esse incêndio avassalador que é a vida.

Elogiemos sem medo, pois, tudo o que nos rodeia e nos encanta: os esforços próprios e alheios, as esperanças de sucesso que sempre ignoram a probabilidade maior do fracasso, aquelas ideias ou opiniões tão tolas, coitadas, mas que, ditas com entusiasmo, quase nos permitem ver a alma de quem diz. E também, claro, as realizações de fato bem-sucedidas, provas do quanto a Humanidade, mesmo parecendo vulgar, comum, repetitiva e trivial, consegue às vezes se mostrar divina.
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As verdadeiras lições olímpicas


Simone Biles é o reflexo da atual sociedade, que enaltece quem chora mais, quem se vitimiza e quem se ofende por tudo. Ana Paula Henkel para a revista Oeste:


Entramos em mais uma Olimpíada. De quatro em quatro anos vivemos, através das lentes dos fotógrafos e das telas de TV, acontecimentos que mexem emocionalmente com milhões de famílias pelo mundo. A torcida por seu país, histórias de superação, derrotas inesperadas, vitórias extraordinárias. Se o mundo dos esportes é fascinante, o dos esportes olímpicos é hipnotizante.

Todo atleta olímpico tem sua história, e ela é única. Caminhos parecidos entre atletas podem até se esbarrar, mas jamais serão iguais. Família, treinamentos, técnicos, escola, relacionamentos, contusões, traumas, tudo tem um peso diferente para cada atleta. É difícil estabelecer certezas nas muitas vias que cada um percorre até chegar a uma Olimpíada, mas é exatamente nas poucas e profundas similaridades entre nós que percebemos que existe algo em comum entre todos os que estão ali.

Como ex-atleta olímpica pelo Brasil em quatro edições dos Jogos, não tenho resposta para as centenas de perguntas que chegam até mim nesta época. Como mencionei, cada história é única, mas creio que posso afirmar uma ou duas coisas sobre esse mundo. Às vezes, assistindo aos Jogos com a família, os filhos perguntam “Como você sabia que isso ia acontecer, que ele erraria?”, “Como você sabia que ela recuperaria?”. A resposta é: não sei. Talvez algo no olhar, na linguagem corporal, alguma intuição por já ter estado lá e saber, na pele, o que pode estar passando naquele momento na cabeça daquele atleta. Todos nós ali já vivemos um turbilhão de emoções: medo, alívio, dor, alegria, decepção, dúvida, entorpecimento pela glória, humilhação pela queda.

Meu primeiro contato com os Jogos Olímpicos, e as emoções que eles podem trazer, foi em 1980, na Olímpiada de Moscou. No interior de Minas, em Lavras, lá estava a menina de 8 anos, aos prantos, assistindo à cerimônia de despedida daqueles Jogos com o inesquecível ursinho Misha, que também derramava uma lágrima numa coreografia feita pelo próprio público nas arquibancadas. Ali foi apenas o começo de um longo namoro e casamento com o esporte. Eu mal podia esperar pela próxima edição, e logo veio a Olimpíada de Los Angeles, em 1984, que nos deu a geração de prata no vôlei masculino num jogo inesquecível contra os donos da casa. Mas aquela Olimpíada me deu muito mais do que o amor necessário para querer defender o Brasil jogando vôlei. Ela me deu Gabriela Andersen. E eu nunca mais fui a mesma.

Assim como as reuniões de família nesta semana para assistir aos eventos esportivos de Tóquio, em 1984 estávamos todos em casa diante da TV para acompanhar a chegada da maratona feminina. Foi quando Gabriela Andersen, da Suíça, entrou no Coliseu de Los Angeles e mudou para sempre minha alma de atleta. Ninguém se lembra quem foi ouro, prata ou bronze naquela prova, mas todos se lembram de Gabriela Andersen.

Os 30 graus centígrados de calor e umidade de agosto em Los Angeles estavam insuportáveis e longe das condições ideais para uma maratona. Além disso, Gabriela, de alguma forma, havia perdido a estação de água no caminho. Muito desidratada, a maratonista entrou no estádio olímpico quase tropeçando nas próprias pernas. Ela se inclinava desajeitadamente para a esquerda e para a direita, cambaleando através das raias da pista. Foi uma visão desesperadora para os espectadores nas arquibancadas e para os espectadores em todo o mundo que seguiam a prova pela TV. Milhares de pessoas assistiam atônitas àquela cena e torciam para que ela não desabasse. Diante daquela imagem emocionante e agonizante, o estádio inteiro, agora de pé, começou a incentivar Gabriela a completar a prova.

Seu marido, Dick Andersen, acompanhava angustiado das arquibancadas, enquanto os oficiais e médicos caminhavam ao lado dela perguntando sobre sua condição. Em entrevistas, Gabriela lembra que essa era a primeira maratona feminina em Olimpíadas e recorda o que dizia a si mesma: “’Tente continuar correndo’. ‘Tente ficar ereta’. Mas meus músculos simplesmente não respondiam e tudo se deteriorou nos últimos 400 metros. Nesse ponto, apenas pensei: ‘Estou na Olimpíada, não pare!’.”

Enquanto ela cambaleava, os gritos de incentivo de milhares de espectadores ficavam cada vez mais altos. “Lembro-me claramente dos aplausos e do barulho. Foi simplesmente incrível. Estava muito alto. Não esperava algo assim. Isso provavelmente me manteve de pé também!” No dia 23 de agosto de 1984, em Los Angeles, depois de 2 horas, 24 minutos e 52 segundos, Gabriela Andersen finalmente alcançou a linha de chegada, caindo nos braços de três médicos que a carregaram para fora da pista.

No mesmo 23 de agosto de 1984, em Minas Gerais, uma menina de 12 anos está quase sem conseguir respirar diante da TV, com os olhos cheios de lágrimas e hipnotizada por aquele momento. Uma única coisa passava pela minha cabeça: “Agora eu entendi”. Eu havia sido engolida pelo verdadeiro espírito olímpico.

Como em toda Olimpíada, um drama marcou Tóquio nesta semana. A superestrela da ginástica e atual campeã olímpica Simone Biles desistiu da competição individual geral dos Jogos para se concentrar em seu “bem-estar mental”. A decisão veio um dia depois que Simone se retirou da final de equipe após uma apresentação bem abaixo do esperado no salto. Ao falar para a imprensa, ela citou sua saúde mental como o motivo. Ao comunicar a saída de sua maior estrela, a federação norte-americana de ginástica disse em um trecho da nota oficial: “Após uma avaliação médica adicional, Simone Biles retirou-se da competição individual geral final. Apoiamos de todo o coração a decisão de Simone e aplaudimos sua bravura em priorizar seu bem-estar. Sua coragem mostra, mais uma vez, por que ela é um modelo para tantos”.

Posso até entender a decisão de Simone. Dramas psicológicos no mundo esportivo, principalmente no universo da alta performance, não são raros. As pressões são muitas, eu sei. Não conheço as condições psicológicas da atleta e o que, de fato, a levou a tomar essa decisão. Posso tranquilamente me solidarizar com suas possíveis batalhas internas, e espero que ela saia desse redemoinho mental que, muitas vezes, pode ser perigoso. Dito isso, meu problema com essa situação é outro.

O primeiro é o fato de que Simone não competia sozinha. Ela fazia parte de uma equipe que dependia dela, que se preparou e treinou durante anos para este momento. Com sua decisão, a atleta não prejudicou apenas o seu caminho. Respeitaria muito mais as suas palavras se elas fossem suportadas com o ônus de uma decisão individual. Simone não fez isso. Depois da performance com notas baixas na qualificação, ela desistiu. A melhor ginasta do elenco dos EUA, uma das atletas olímpicas norte-americanas mais festejadas de todos os tempos, optou por abandonar seu time no meio da final. Suas companheiras de equipe perderam o ouro e terminaram em segundo, atrás da lendária rival na ginástica, a arqui-inimiga Rússia. Medo do fracasso?

Na coletiva, com as companheiras tentando mostrar algum apoio, mas ainda com os olhos arregalados e um pouco perdidos, Simone Biles reclamou que a Olimpíada não foi “divertida” neste ano: “Estes Jogos Olímpicos, eu queria que fossem para mim mesma quando entrei e eu senti que ainda estava fazendo tudo isso para outras pessoas”. Mais tarde, ela disse que é importante “colocar a saúde mental em primeiro lugar” porque, se não o fizer, “você não vai gostar do seu esporte” e reclamou da “pressão” que está sofrendo.

Sinceramente? Não há nada de terrivelmente surpreendente nas razões que ela apresentou. A pressão a que está submetida uma atleta mundialmente famosa em um palco global é bastante pesada, tanto no nível emocional quanto no físico. Não é um crime desistir sob pressão, mas quando isso se tornou algo para ser admirado com profunda reverência? Esse é meu segundo problema em todo esse evento.

Se Simone Biles tivesse desistido da competição em equipe e se desculpado após o fato, com um pouco mais de humildade, talvez o público reagisse de outra maneira e o assunto seria encerrado. É difícil competir em Olimpíadas. Todos nós temos, uma vez ou outra, vontade de desistir de tudo. É por isso que, quando alguém desiste, normalmente balançamos a cabeça e dizemos: “Que pena, sinto muito”, e seguimos em frente com nossa vida.

O problema é que agora somos exortados a não apenas entender por que alguém desiste de algo. Temos de aplaudi-lo por isso. O que torna a história de Simone Biles preocupante não é que a equipe de ginástica feminina teve de se contentar com uma medalha de prata — o que me incomoda é o fato de que a atual mídia e partes da sociedade querem que celebremos a covardia de um soldado ao abandonar seus companheiros no campo de batalha. Poderíamos tranquilamente dizer: “Simone Biles desistiu da Olimpíada, ela está com problemas. Que pena”. Mas o que querem é que digamos: “Simone Biles desistiu. Não estará mais com o time porque ela precisa pensar nela. Que ato corajoso!”.

Não, não, não é corajoso. Pode ser humano, mas é o oposto de coragem. Ter coragem é colocar o time acima de suas dores, físicas ou emocionais, quando você já está comprometida com ele. Simone Biles poderia ter se inspirado na ginasta Kerri Strug, também norte-americana, que competiu na Olimpíada de 1996, em Atlanta. Na disputa por equipes, um evento dominado pelos soviéticos por décadas e nunca vencido pelos Estados Unidos, os norte-americanos competiriam com as seleções da Rússia, Romênia e Ucrânia. Depois de um salto, Kerri aterrissou bruscamente e lesionou dois ligamentos no tornozelo. Ela era a última peça do time que poderia trazer o ouro para as norte-americanas. Diante da importante lesão, a ginasta poderia ter desistido, mas se negou a abandonar a competição. A equipe médica tentou estabilizar o tornozelo com esparadrapos, e Kerri, com dois ligamentos comprometidos, saltou… Sim, o final é esse mesmo que você está pensando. As norte-americanas venceram, e Kerri foi carregada até o pódio para receber o tão sonhado ouro olímpico em equipes para a ginástica dos EUA.


Entre muitos esportes olímpicos, talvez a ginástica seja um dos mais cruéis com seus atletas. Além da pressão física, há casos de supressões hormonais (para que as atletas não cresçam) e até de assédio e abusos sexuais. Não sabemos o que sucedeu na mente de Simone Biles, e ela não é uma vilã por ter desistido, mas também não é uma heroína. Simone é o reflexo da atual sociedade, que enaltece quem chora mais, quem se vitimiza e quem se ofende por tudo. Em uma sociedade com balaios coletivistas, divididos em categorias “negros”, “mulheres”, “gays” etc., é interessante ver que aplausos, elogios e contratos de publicidade são dados àqueles que colocam exatamente as suas necessidades e desejos pessoais em primeiro plano.

Gabriela Andersen, hoje com 76 anos, em uma entrevista para o canal oficial dos Jogos Olímpicos, disse que o que a surpreendeu foi a compaixão e a reação dos espectadores e dos atletas. Ela relata que estava com muita vergonha pela performance ruim (Andersen chegou em 37º lugar, quase último) e que se sentia culpada. Ela achava que não merecia tanta atenção. “Na época eu teria trocado por qualquer coisa entre o 10º e o 15º lugar para não ter aquilo que considerei apenas um espetáculo”, disse. “Mas agora, olhando para trás, posso ver que as pessoas se identificaram por causa da luta. Se você realmente se dedicar, poderá superar muitos obstáculos. Há lição em tudo.”

Vitória não é apenas vencer os adversários e abraçar a glória, muitas vezes entorpecente e traiçoeira. É superar os próprios limites e, como Gabriela Andersen, inspirar milhões a não desistir, mesmo chegando em último lugar, mesmo com o ego ferido.

O espírito olímpico é justamente o da superação e do sacrifício, mesmo que isso não lhe traga nenhum esplendor. E essa lição não fica restrita ao esporte, ela o acompanha por toda a vida. Salve, Gabriela Andersen!
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Como a esquerda deturpou o sentido da palavra "liberalismo"


Desde os anos 70, o brasileiro estava acostumado a ver o liberalismo retratado como vilão. Quem frequentou a escola nos anos 90 e 00, como eu, terá visto o liberalismo como vilão desde a época escolar, pelo menos com um professor de história. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:


A palavra “liberalismo” passa, no Brasil, por um processo análogo ao que a palavra “democracia” passou nos anos 70. No começo os comunistas honestos diziam abertamente que a democracia era um regime burguês, portanto capitalista, portanto fadado a perecer na Revolução. A Revolução acabaria com a democracia para instaurar a ditadura do proletariado. Mas lá pelos anos 70 começaram a pipocar as “democracias populares”, que seriam verdadeiras democracias, enquanto que as “democracias burguesas” seriam democracias falsas. Alemanha Oriental era a República Democrática Alemã; a Coreia do Norte e a China são a República Popular Democrática da Coreia e a República Popular da China. Enquanto isso, a Alemanha Ocidental era a República Federal da Alemanha; a Coreia do Sul e Taiwan são República da Coreia e República da China. O termo “popular” é escolhido por causa do demos de democracia.

É a homenagem involuntária que o totalitarismo presta à democracia: é tão boa, que precisam tomar suas roupas emprestadas, passar a mesma maquiagem, imitar os trejeitos e tentar enganar os incautos fazendo passar-se por ela. Ir à rua gritar “comunismo” nunca será tão frutífero quanto gritar “democracia”.

Desde os anos 70, o brasileiro estava acostumado a ver o liberalismo retratado como vilão. Quem frequentou a escola nos anos 90 e 00, como eu, terá visto o liberalismo como vilão desde a época escolar, pelo menos com um professor de história. No imaginário brasileiro, o liberalismo era um sinônimo menos usado de neoliberalismo, que a seu turno é o capeta em pessoa. Rouba dos pobres para dar aos banqueiros. Se não fossem os social-democratas ou a esquerda, o neoliberalismo nos transportaria para dentro do filme “Tempos Modernos”, de Chaplin.

Desde o impeachment de Dilma Rousseff temos visto no Brasil a palavra “neoliberalismo” tomar chá de sumiço e de repente, não mais que de repente, o liberalismo ser convertido em mocinho.

Dilma põe a Unicamp em desgraça

Creio que o principal motivo para isso tenha sido o reconhecimento inequívoco de que as políticas intervencionistas de Dilma Rousseff foram um fracasso. Gente leiga em economia, como eu, via economista falando de economia do mesmo jeito que poderia ver bioquímicos discutindo bioquímica. Mas a queda de Dilma levou consigo toda a prestigiosa escola da Unicamp. (Já dizia Roberto Campos que ou o Brasil acaba com os economistas da Unicamp, ou os economistas da Unicamp acabam com o Brasil. Podemos dizer que, depois de eles enfim quase acabarem com o Brasil, o Brasil os atirou à “lata de lixo da História”, como diziam os marxistas d’antanho.) De repente, passou a haver economistas que um leigo consegue identificar como charlatães. A Unicamp teve um professor de economia como presidente do BNDES na gestão Dilma (o professor titular Luciano Coutinho). Esse poder veio junto com o próprio descrédito.

A queda da Unicamp acarretou a ascensão, no debate público, da figura de Marcos Lisboa: um economista liberal que participou dos anos dourados da presidência de Lula e sempre esteve às turras com os economistas petistas. Marcos Lisboa é um excelente orador, tem carisma e logo atraiu um enxame de jovens (que logo passaram a defendê-lo fervorosamente na internet, como se fosse um líder de banda). Abriu terreno para que ganhassem atenção outros críticos da Escola da Unicamp. Esta caiu em desgraça e o seu lugar foi ocupado por uma plêiade de instituições de elite privadas: o Insper, a PUC-Rio e a GV. Enquanto isso, tudo o que a USP tinha a oferecer era Laura Carvalho. Essa mudança acadêmica na Economia fez estilhaçar a crença na superioridade das universidades públicas sobre as privadas.

Em 1993, o sucesso do Plano Real, de economistas da PUC-Rio, se deu sob as barbas de um marxista teórico da dependência, e não serviu para enterrar a Unicamp. Isto só aconteceu em 2016, com o fracasso retumbante de um governo todo ao gosto de economistas da Unicamp.

Assim, desmoronou-se todo um cenário intelectual que parecia inamovível a quem nasceu até a década de 90. Ouvíamos desde a escola que Celso Furtado era o economista mais genial do mundo, tão injustiçado quanto Carlos Chagas por não ter recebido um Nobel. (Se eu fosse escolher um brasileiro injustiçado por não receber Nobel, seria Rondon, que Einstein queria que recebesse o da paz por integrar os índios. Mas Rondon era militar, então tem que ser esquecido.)

A captura do termo

Expostos os fatos acima, não creio que tenha havido um plano deliberado da esquerda para capturar o termo. Dilma Rousseff foi, sem querer, a maior força em prol da aceitação do liberalismo no Brasil. Fez tudo o que a elite acadêmica da economia queria e deu tudo errado – pior para a elite.

Mas dois fatos internos favoreceram no Brasil o mimetismo da esquerda dos EUA, país em que os liberals são a esquerda. O primeiro fator é que o liberalismo chegou a nós como uma doutrina econômica, quando na verdade é, antes de tudo, uma doutrina de garantias contra o poder absoluto.

O liberalismo surgiu na Revolução Gloriosa, em 1688, na Inglaterra, quando as casas legislativas conquistaram garantias contra o poder do Rei. O filósofo que expressou o ideário do liberalismo é John Locke, que defende a separação entre os poderes Executivo e Legislativo e o fim do Absolutismo. A igualdade perante a lei torna-se então um diferencial do mundo anglo-saxônico. Entre nós, os ibéricos, a tradição é de códigos legislativos que estipulam privilégios, com crimes sendo punidos com severidade variável conforme o status do súdito.

Outro fator que ajudou a captura do termo pela esquerda é a de Marcos Lisboa ter trabalhado no governo Lula. Assim, o seu sucesso pode ser colocado sob as barbas da social-democracia, do mesmo jeito que o sucesso de um Gustavo Franco foi com FHC. O petismo pode brincar de bad cop com Guido Mantega e good cop com Marcos Lisboa. Fica fácil fazer a “autocrítica” da esquerda e dizer que tudo dará certo daqui para a frente. Uma pitada de Bobbio (com o conceito de esquerda liberal) ajuda a operação.

O “liberalismo” comunista chinês da pandemia

A ignorância da história do liberalismo fez com que a desigualdade perante a lei fosse defendida por autodeclarados liberais. Se a tradição ibérica d’antanho exigia pureza de sangue para ocupar uma cátedra na universidade, verificando se candidato era cristão velho de quatro costados, o “liberal” de hoje defende um tribunal racial constituído pelo Estado para julgar o sangue dos candidatos.

O liberalismo é uma doutrina contra o arbítrio do Estado, mas o pseudoliberal brasileiro que leu uns livrinhos da fase mais socializante de Mill quer dar poder ao Estado para criar estamentos de privilegiados e tratar os cidadãos de maneira desigual. O Estado torna-se o juiz do que é uma injustiça social e o retificador de injustiças históricas. Haja poder!

O mais novo passo dos pseudoliberais brasileiros é, fechando os olhos para o caráter experimental das vacinas e para as vítimas letais dos efeitos colaterais, dizer que a vacina da covid tem que ser obrigatória. Mais ainda: o cidadão não pode ser “sommelier de vacinas”; isto é, não pode escolher se toma uma vacina cujos efeitos colaterais são coágulos ou miocardite. Tudo em nome do bem-estar coletivo. Aliás, em nome do bem-estar coletivo, deve-se também evitar falar de efeitos colaterais, para que todos tomem as vacinas.

Em última instância, é exigir que as pessoas sacrifiquem a própria vida em nome do coletivo. E esse sacrifício deve ser destituído de qualquer valor moral, já que, além de compulsório, é feito em estado de ignorância. Que controle esses “liberais” entregam ao Estado, não é mesmo?

Indivíduo ganha respeito no presídio

É interessante como agora, no debate brasileiro, coexistem um individualismo solipsista e um coletivismo totalitário, os quais às vezes estão até na boca da mesma pessoa. Quando se trata de crimes violentos, o – cof, cof, – reeducando merece todo o respeito.

Os presídios não existem mais para preservar a coletividade, que não quer conviver com estupradores e assassinos. Em vez disso, o presídio vira uma instituição educacional e a Justiça deve pensar no pobre coitado que estava aí assaltando. Para que ele fique bem, é preciso soltá-lo na sociedade. A sociedade que se vire. Que se vire com os reeducados e com os cracudos, que exercem o seu inalienável direito de fumar crack no meio da rua e puxar a faca para os passantes.

Assim sendo, proponho que se criminalize a não-vacinação de uma vez. Assim, quem sabe, as garantias individuais não ganham um apigreide, quando o cidadão conquistar os mesmos direitos dos bandidos.
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Sobre Galileu e os negadores da ciência


Ensaio de Rogério Passos Severo e Ricardo Doninelli Mendes, publicado pelo Estado da Arte:


Na história de uma cultura, alguns episódios parecem cristalizar o espírito de uma época. Para a nossa cultura moderna e científica, as descobertas do astrônomo Galileu e sua posterior condenação pelo tribunal do Santo Ofício, em 1633, estão nessa categoria. Essa sequência de eventos e o ânimo com que Galileu os viveu exibem de modo límpido tanto o brilho e o potencial do pensamento científico quanto a infâmia intelectual e a mesquinharia moral que seguidamente os aguarda. Como vivemos hoje tempos de renovadas infâmias e mesquinharias, revisitar a biografia de Galileu é quase um imperativo, sobretudo para as novas gerações, que poderão então se reconhecer como filhos e filhas que somos todos da liberdade e da torpeza.

O livro recém publicado de Mario Livio, Galileu e os negadores da ciência (editora Record), é uma biografia atualizada do grande astrônomo. Apresenta de modo acessível suas principais contribuições à ciência moderna e alguns meandros do seu julgamento e condenação. O autor é um astrofísico respeitado e naturalmente o ponto forte do livro está na discussão das descobertas de Galileu à luz do que sabemos hoje. Mas, claro, há diversas outras boas biografias de Galileu já disponíveis. A peculiaridade desta reside não apenas na discussão atualizada dos feitos científicos de Galileu, mas também no contraponto recorrente ao longo do livro entre as reações negativas que as descobertas de Galileu suscitaram na igreja e as formas contemporâneas de negacionismo científico. Mencionam-se sobretudo o negacionismo climático contemporâneo, que rejeita o aquecimento global por causas antropogênicas, e o negacionismo biológico, que põe em dúvida a teoria darwinista da evolução. O livro foi originalmente publicado em inglês em 2020, portanto escrito provavelmente em 2019, antes da pandemia começar. Tivesse sido escrito mais recentemente, decerto incluiria também os casos surpreendentes de médicos cloroquineiros e outras fantasias destes nossos tempos pandêmicos.

Mario Livio claramente admira Galileu: “não apenas o fundador da astronomia e astrofísica modernas […] mas também um símbolo da luta pela liberdade intelectual” (p. 9). Galileu é apresentado como uma espécie de herói, que vive os seus estágios típicos. Primeiro resolve um conjunto de problemas (em astronomia) por meio de grandes feitos intelectuais, depois sofre a reação vil de personagens sombrios, é preso e tem seus livros proibidos, e ao final é redimido pela história da ciência. Galileu notabilizou-se como um defensor do modelo heliocêntrico em astronomia, apresentado inicialmente em 1543 pelo cônego polaco Nicolau Copérnico. Galileu nasceu em 1564, em Pisa, na Itália, época em que os modelos astronômicos predominantemente aceitos ainda eram geocêntricos, isto é, colocavam a Terra no centro do universo. O modelo copernicano tornou-se amplamente aceito apenas no final do século seguinte. Inicialmente a discussão e as disputas a esse respeito estavam restritas aos círculos mais fechados e técnicos da astronomia. Galileu contribuiu substancialmente para abrir esses debates por meio de argumentos contundentes e inovações técnicas. Em particular, notabilizou-se por ter sido o primeiro astrônomo importante a usar lunetas, posteriormente aperfeiçoadas por ele próprio e rebatizadas de “telescópios”. Lunetas já eram usadas há bastante tempo na Europa, mas sobretudo para fins recreativos. Galileu direcionou-os aos astros, onde descobriu as crateras da Lua, as fases de Vênus, quatro das luas de Júpiter (hoje conhecemos 79) e, por fim, as manchas solares. Todas essas descobertas contradiziam os modelos geocêntricos até então predominantes em astronomia. As crateras da Lua indicaram que sua superfície é imperfeita e nesse sentido parecida com a da Terra, diferente do que dizia a tradição, na qual a física dos astros seria bem diferente da física terrestre. As fases de Vênus — fenômeno em que Vênus aparece parcialmente iluminada pelo sol, como nas fases da nossa Lua — eram mais facilmente explicáveis pelo modelo copernicano e nesse sentido também contradiziam a tradição. As luas de Júpiter mostraram que nem tudo gira ao redor da Terra e as manchas solares indicavam (pelo seu movimento rotatório) que o Sol gira ao redor de si, o que era um indício indireto da tese copernicana, que previa o movimento rotatório da Terra.


Além dessas descobertas — todas muito impactantes na comunidade científica da época —, Galileu também formulou e colocou em prática alguns dos princípios básicos daquilo que hoje conhecemos como ciência moderna. Em particular, ele concebeu de modo explícito a tarefa do cientista como ancorada na experimentação e teste de hipóteses. A ciência antiga e medieval era, nesse sentido, bastante diferente do que passamos a chamar de ciência a partir da modernidade, uma vez que consistia basicamente num procedimento de sistematização de observações com base em princípios metafísicos. Com Galileu e outros “experimentadores” desse período moderno, as observações passaram a funcionar como um instrumento de teste de enunciados gerais e não apenas como instrumento de conhecimento de coisas particulares. Portanto, o estatuto e a função das observações no interior da ciência mudaram radicalmente. Além disso, Galileu foi um dos precursores da ideia de que as regularidades da natureza podem ser apreendidas por fórmulas matemáticas, algo que hoje é o beabá das ciências naturais. E por fim, Galileu formulou os rudimentos da ideia moderna de leis da natureza, descobertas empiricamente por meio da generalização de regularidades observadas. Um exemplo claro da aplicação dessas ideias todas foram os seus famosos experimentos com o plano inclinado, por meio dos quais calculou regras para a aceleração da queda de objetos — tópico mais tarde retomado por Isaac Newton.

Essas contribuições intelectuais e técnicas de Galileu foram inicialmente discutidas apenas em círculos mais restritos de cientistas e estudiosos. No século XVI, não houve reações religiosas significativas ao copernicanismo. No entanto, o contexto da Reforma protestante produziu uma caça às heresias no interior do catolicismo. E foi nesse contexto mais controvertido que funcionou o famoso tribunal da Inquisição que acabou por condenar Galileu 1633 à prisão domiciliar, obrigando-o a abjurar suas ideias para evitar punições mais severas. Seus livros, junto com o de Copérnico, foram incluídos no Índice de livros proibidos da igreja católica, lá permanecendo por mais de um século (mais de dois séculos, no caso de Copérnico). A heresia estaria na afirmação de que a Terra se move, contradizendo algumas passagens bíblicas interpretadas literalmente. Mas a esse respeito, mesmo o argumento teológico é fraco, uma vez que supõe que as teses teológicas relevantes incluem não apenas as que dizem respeito à salvação da alma mas abrangem igualmente a descrição do mundo físico, algo que autores clássicos da própria tradição cristã, como Santo Agostinho, já haviam criticado. A opção inicial de alguns religiosos para conciliar o copernicanismo com as leituras mais literais da Bíblia consistiu em interpretar os livros de Galileu e Copérnico como instrumentos matemáticos para o cálculo observações futuras e não como descrições de como as coisas realmente são. Nesse sentido, inauguram um tipo de leitura de textos científicos ainda comum até hoje na filosofia da ciência, onde os chamados autores “antirrealistas” — como, por exemplo, Bas Van Fraassen — sustentam que efetivamente não temos como saber se as partes mais abstratas e teóricas da ciência são descritivas da realidade ou apenas instrumentos úteis para a previsão de observações.

A sugestão de Livio é que o negacionismo científico não é novidade de nossos tempos, mas que acompanha a ciência moderna desde o seu nascimento. No entanto, fica ainda faltando no livro algum argumento mais substancial para mostrar que o negacionismo com que Galileu foi recebido e os negacionismos científicos contemporâneos são espécies de um mesmo gênero. Uma vez que os contextos sociais e culturais mudaram muito de lá para cá, está faltando a demonstração da continuidade dos dois fenômenos. Mas revisitar a obra e a trajetória de Galileu é sempre uma inspiração para os que prezam a inteligência e a coragem. A tradução para o português está muito bem feita, vale a pena essa leitura.


Rogério Passos Severo é professor do Dept. Filosofia da UFRGS.
Ricardo Doninelli Mendes é mestre e doutorando em Filosofia na UFRGS.
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O liberalismo é para Homens, o socialismo é para animais.

Em última análise, a escolha entre liberalismo e socialismo depende da visão que se tenha do Homem, de que tipo de bicho seja. Via Observador, o divertido texto de André Alvim e José Miguel Pinto dos Santos:


O que é o liberalismo? É o sistema político que defende que, sendo as pessoas responsáveis pelos seus atos e omissões, pensamentos e palavras, podem, e devem, fazer o que lhes parece bem. O que quer dizer ‘responsável’? Significa aceitar e sofrer as consequências e auferir os benefícios da sua conduta.

E o que é o socialismo? É o contrário do liberalismo: é o sistema segundo o qual as pessoas não são responsáveis pelos seus atos e omissões e, também, devem ser protegidas das consequências destas. Protegidas como? De três modos: protegidas de fazerem o que querem, protegidas das consequências de fazerem o que querem, e protegidas das consequências de não fazerem o que querem. Curiosamente, no socialismo as pessoas podem ser, e são, responsabilizadas pelos atos e omissões dos outros.

Assim, numa sociedade liberal, quem goste de comida bem salgada é livre de abusar do sal (1). É possível que familiares e amigos, e outras entidades públicas ou privadas, na sua filantropia (2), lhe deem informação & conselhos sobre os riscos que o consumo em excesso de sal tem para a saúde, mas ninguém lhe vai tirar o saleiro da mão (3).

Caso insista em salgar bem a sua comida, pode acontecer que venha a sofrer de hipertensão. Embora não tenha posto sal para ficar hipertenso, esta é uma patologia que pode surgir naturalmente a quem livremente escolhe ingerir muito sal (4). Para evitar as consequências deletérias da hipertensão, o amante do sal tem duas soluções: ou modera o seu consumo, ou paga o seu tratamento. Ou desenvolve o autocontrolo, ou paga o preço da sua imoderação.

Numa sociedade liberal, aquela em que as pessoas são responsáveis pelo seu próprio comportamento, não passará pela cabeça de ninguém exigir que os outros, seja a sociedade, seja o estado, assumam e paguem pelas consequências, desejadas ou não, da sua gulodice. Muito menos passará pela cabeça de alguém exigir privilégios, seja rendimentos sociais de reinserção para os hipertensos, atendimento preferencial nas repartições públicas para obesos ou outros privilégios especiais para ambos. Neste tipo de ordenamento político, a lei é igual para todos, e nele não cabem descriminações positivas ou negativas para nenhuma categoria de humanos, nem sequer para os gulosos.

E no socialismo? No socialismo o estado procura proteger as pessoas de ingerir sal. Como? Através de publicidade, quer a paga, quer a não paga pelo orçamento do estado, a alertar para os efeitos maléficos do consumo do sal, incluindo a obrigatoriedade de os pacotes de sal exibirem imagens chocantes ilustrando esses efeitos em 65% da sua superfície. Mas também cria impostos especiais sobre o consumo desta droga para desincentivar as pessoas de tocarem no saleiro. E, em fases mais avançadas no caminho para o socialismo, através do racionamento do sal e da proibição da sua venda (exceto para os funcionários do partido).

Procura, também, proteger aqueles que, apesar de tudo, ingerem sal em excesso, das consequências não pretendidas desse consumo imoderado. Como? Através do SNS, sistema que cobre, a taxas moderadoras muito moderadas, todo o tipo de tratamentos necessários para minorar e tratar todas as patologias associadas a este mau costume culinário.

No entanto, num estado socialista, as pessoas não são só protegidas das consequências deletérias das suas opções. Quem, pela irresponsabilidade das suas escolhas, as sofre, aufere de vantagens especiais sobre os outros cidadãos. Como por exemplo? Sendo permitido, e incentivando, que os hipertensos (5), possam saltar à frente dos outros cidadãos no processo de vacinação em curso contra o Covid-19.

E, neste caso, como é que no socialismo as pessoas são responsabilizadas pelas ações das outras? Pagando tudo isto, através dos seus impostos. (NB: noutras experiências com o socialismo real, em Cuba e na China, na Rússia e Roménia, o pagamento pelas ações dos outros era—e é—feito, não poucas vezes, com a própria vida—seja através de trabalhos forçados, seja através da execução)

Se o socialismo apenas desresponsabilizasse o abuso do sal, a coisa ainda ia que não ia. Mas o socialismo desresponsabiliza todos de tudo. Desresponsabiliza os preguiçosos da sua preguiça, pagando-lhes por não fazerem nada, e desresponsabiliza os trabalhadores conscienciosos do seu esforço, tributando-lhes o fruto do seu trabalho. De igual modo desresponsabiliza os violentos e os pacíficos, os honestos e os desonestos, debochados e os castos, os verazes e os mentirosos, os que dizem ao motorista para conduzir com prudência e os que lhe dizem que se despache…

Em última análise, a escolha entre liberalismo e socialismo depende da visão que se tenha do Homem, de que tipo de bicho seja. É um ser racional & responsável? Então um ordenamento liberal será o apropriado. É um ser não racional &, portanto, irresponsável? Então o socialismo é necessário.

Portanto a pergunta essencial, na escolha de regime político, é: será que existe alguma diferença entre homens e bestas?

Us avtores não segvem a graphya du nouo AcoRdo Ørtvgráphyco. Nein a do antygo. Escreuem coumu qveren & lhes apetece. #EncuantoNusDeixam

[1] Sal: discípulo de Cristo (Mt 5, 13), de onde se pode deduzir que a tributação adicional deste produto dietético não seja mais que uma medida jacobina de perseguição à Igreja, e se poderá argumentar que é inconstitucional (cf. CRP, art.º 13º, n. 2 e art.º 41º); elemento tão essencial à vida biológica como a água; elemento tão essencial à vida social como a paz (6) (cf. Mc 9, 50); aquilo que falta ao eng. Costa; o poder purificador e revigorante do sal era reconhecido pelos antigos que, depois de cortarem o cordão umbilical ao recém nascido, o lavavam em água e esfregavam com sal, como testemunha Ezequiel 16,4; produto usado por vários povos antigos, incluindo os romanos, para pagar o trabalho, de onde se pode inferir que a proposta de tributação especial para o sal cai no vício da dupla tributação, e se poderá inferir que o Estado consome sal a mais. Não será este mais um sinal de hipertensão estatal?

[2] Filantropia: filosofia de vida em que as pessoas deixam que a compaixão lhes vá à carteira; socialismo unipessoal; difere radicalmente do socialismo warxista, na medida que o agente, a motivação, o beneficiário e a voluntariedade são totalmente diferentes: na filantropia o agente é a compaixão, não a autoridade tributária, a motivação é o amor ao próximo, ao bom, belo e verdadeiro, não o medo à coima ou à prisão, o beneficiário é um nosso próximo que está de algum modo carenciado, não um rato alimentado do erário público (políticos, empresários-conectados, funcionários, tapes, e novos bancus), e a vontade é pessoal & livre, não externa & imposta.

[3] A não ser, talvez, a mãe ou a mulher. O que torna urgente a luta contra o matriarcado europeu branco que continua a dominar a vida e a restringir a liberdade a um vasto número de cidadãos na nossa repÚblica.

[4] Mas nem sempre: uma metade dos autores desta peça é hipotensa apesar de abusar no consumo de sal.

[5] Nos quais se incluem, a outra metade dos autores deste artigo.

[6] Paz: período de equívocos e enganos entre dois de pancada; um dos sete horrores sociais segundo warxismo dialético, sendo os outros a prosperidade, o matrimónio, os bebés, a felicidade, a harmonia e a alegria.
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Dois colossais equívocos


Parlamentarismo está fora de cogitação enquanto classe política acreditar em duendes. Bolívar Lamounier para o Estadão:


O peixe não vê a água” (ditado espanhol)

É deveras notável como nós, brasileiros, nos recusamos a refletir sobre dificuldades bem previsíveis que nos aguardam.

“Refletir” é dizer pouco: dezenas de milhares recusam-se a colaborar no combate à pandemia. Preferem uma “festinha” clandestina. E milhões parecem não perceber que mais uma década brincando de populismo – Lula x Bolsonaro – significará uma prolongada estagnação de nossa economia. Não percebem que megainvestidores – empresas ou fundos de pensão – não verão com bons olhos um país afundado numa polarização estéril, travejado por malquerenças dos mais variados tipos e que agora tem até insinuações militares contra o nosso principal ativo, que é a regularidade do processo eleitoral.

Dessa persistente obtusidade decorre um colossal equívoco. Tendemos a pensar que nossas várias mazelas permanecerão constantes durante anos e anos de estagnação econômica. Isso absolutamente não é verdade. O mais provável é um retrocesso ou deterioração cada vez mais difícil de reverter. A renda per capita brasileira equivale a um quarto da do Mississippi, o Estado mais pobre da Federação norte-americana. Tente o leitor imaginar este país daqui a 20 anos. É plausível supor que, em tal cenário, os níveis de violência que diariamente nos atormentam poderão ser reduzidos, ou sequer que permanecerão constantes? Que conseguiremos melhorar nossas condições educacionais e nosso nível de bem-estar, de um modo geral?

No quadro acima esboçado, uma classe política minimamente lúcida e destemida trataria de reforçar as instituições, se possível empreendendo uma reforma política séria. A nossa, infelizmente, dista muito desse padrão, o que a leva a persistir num segundo colossal equívoco. No que toca à organização constitucional, sabemos todos, ou deveríamos saber, que o busílis é o sistema presidencialista de governo, piorado, em nosso caso, por nossa fórmula de sistema eleitoral proporcional e uma legislação partidária estapafúrdia.

É curioso constatar o que uma classe política que se julga “pragmática” e “realista” sempre invoca, a fim de manter o sistema presidencialista, numa suposta fixação cultural de nosso povo na figura do “pai”, do “chefe”, daquele que manda. Sem um “governo forte”, dizem, não temos como assegurar a unidade do Executivo e a estabilidade política. Confundem a velha prática de distribuir migalhas aos milhões de miseráveis que não conseguem trabalho com as tortuosas elucubrações culturais que sempre deleitaram nossos literatos e historiadores.

Uma vista d’olhos sobre nossos 130 anos de República presidencial é suficiente para desnudar tais sandices, mas não precisamos ir tão longe. Basta observar que, mesmo nos 21 anos de governos militares (1964-1985), a sucessão presidencial, mesmo controlada pelo método indireto do colégio eleitoral, registrou diversos episódios tumultuários. A única exceção foi a sucessão do general Emílio Garrastazu Médici pelo general Ernesto Geisel, respaldado este por seu irmão Orlando Geisel, que à época ocupava a pasta da guerra. João Figueiredo, o último general-presidente, saiu do Planalto pela porta dos fundos para não cumprimentar o novo presidente.

Ao tratar da questão do sistema de governo em seu livro O Regime Semipresidencial (Editora Sumaré, 1992, pág. 27), o mestre Maurice Duverger não mede palavras. Observa que “o sistema presidencial (puro) é intrinsecamente propenso à instabilidade. Jamais funcionou a contento a não ser nos Estados Unidos. Noutros países, ele degradou-se em presidencialismo, vale dizer, em ditadura”. Cabe indagar se Duverger continuaria a tratar os Estados Unidos como exceção após a eleição de 2016, que levou Donald Trump à Casa Branca.

Uma reforma abrangente, que de fato instaure o sistema parlamentarista de governo, permanecerá fora de cogitações enquanto a classe política acreditar em duendes e no saci-pererê. Dado que, entre nós, o mito do “governo forte” é inseparável da eleição direta do chefe de Estado, o máximo que nossas elites se dispõem a considerar é o semipresidencialismo francês: presidente eleito pelo sufrágio universal e primeiro-ministro indicado por ele e aprovado pela Câmara dos Deputados. Pode ser que tal alternativa seja melhor que o atual sistema brasileiro, mas também pode ser um tiro pela culatra, a depender das circunstâncias e da exata formulação da engrenagem institucional.

Vale a pena lembrar que a consolidação do problemático modelo francês da “águia de duas cabeças” foi abençoada por 30 anos seguidos de crescimento econômico e por uma notável linhagem de bons presidentes, entre os quais, para começar, o marechal De Gaulle, depois Pompidou, Giscard d’Estaing e outros, chegando ao próprio François Mitterrand, que deixou de lado seu socialismo e trabalhou ativamente pela abertura da economia, melhorando a competitividade externa da França. Em seu discurso natalino de 1988, Mitterrand declarou: “A França é nossa pátria, mas a Europa é o nosso futuro”.

SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
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sexta-feira, 30 de julho de 2021

O beijo da morte


A pandemia provocou em muita gente um estado de letargia e pânico infantil, uma espécie de morte em vida. O amadurecimento aponta para outro lado. A morte passa a ser vista como uma amiga que tomamos cuidado para que permaneça a distância. Dagomir Marquezi para a Oeste:


“Eu sei que determinada rua pela qual eu já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos. Cada vez que me despeço de uma pessoa pode ser que ela esteja me vendo pela última vez. A morte, surda, caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela vai me beijar. Qual será a forma da minha morte? Um acidente de carro? O coração que se recusa a bater no próximo minuto? A anestesia mal aplicada? A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida? O câncer já espalhado e ainda escondido? Ou, até quem sabe, um escorregão idiota num dia de sol?”

Raul Seixas — Canto para minha Morte


Por este planeta já passaram aproximadamente 117 bilhões de seres humanos. Destes, 109 bilhões já morreram. O que significa que tivemos 109 bilhões de experiências únicas de morte. Algumas foram naturais, outras premeditadas ou acidentais. Houve mortes súbitas, lentas, indolores, sofridas. Mas ela sempre aparece.

Aprendemos a desenvolver — especialmente nas culturas ocidentais — um medo irracional da morte, a negação atávica de uma experiência à qual estamos todos destinados a passar. “Eu não tenho medo da morte”, disse um dia Woody Allen. “Só não quero estar presente quando acontecer.” Em parte, essa rejeição está ligada ao sofrimento pelo qual passamos com a partida de pessoas queridas. Lidar com a perda não é um sofrimento exclusivamente humano. Muitas outras espécies animais choram seus mortos e praticam algum tipo de cerimônia fúnebre. Para um elefante, é doloroso ver a morte de um membro de sua manada. Mas é um fato natural, como o nascimento.

Os humanos não se conformam e procuram vencer a morte de todas as formas possíveis. A Enciclopédia Britânica cita civilizações antigas como as de egípcios, zoroastristas e hindus, que desenvolveram complexos conceitos para descrever a vida após a falência dos sinais vitais. Para ateus em geral, a morte seria o ponto-final, a última página, um corpo que se desfaz em miasmas e é devorado por vermes. Segundo eles, toda religião é ilusória. Para os que acreditam em vida espiritual, os ateus não teriam entendido que o verdadeiro sentido de nossa passagem pela Terra é justamente a preparação para o que vem depois.

Mas a morte em si permanece para crentes e ateus como a maior de todas as angústias. Carregamos a ansiedade existencial de desconhecer as respostas para duas questões fundamentais: 1) quando eu vou morrer? e 2) como eu vou morrer?. Tudo o que temos em mente é que ela caminha junto a nós, silenciosa e invisível, por toda a nossa vida. E não sabemos em que esquina ela vai nos beijar. A morte beijou Raul Seixas aos 44 anos, durante uma madrugada de 1989. Foi representada por uma pancreatite fulminante, diabetes e uma longa estrada no alcoolismo desenfreado.

Todos nós continuamos brevemente vivos mesmo depois que um médico decreta nosso fim. Segundo a Britânica, um minieletrocardiograma pode ser registrado vários minutos após a parada cardíaca. Afinal, um coração bate cerca de 2,7 bilhões de vezes durante uma vida. E tenta uma última chance de bombear sangue quando tudo o mais parece ter acabado. Três horas depois do falecimento, nossas pupilas ainda reagem, e músculos se contraem quando tocados.

Sempre houve essa dificuldade de identificar quando um ser humano atingiu o tal ponto sem retorno. Gregos antigos mantinham seus cadáveres à vista três dias antes de ser enterrados. Os romanos esticavam esse prazo para até oito dias. A preocupação cresceu muito durante o século 19, com histórias (algumas reais) de pessoas catalépticas que despertavam de um aparente óbito presas num caixão debaixo da terra. Essas narrativas inspiraram grandes autores de ficção de terror, como Edgar Allan Poe.

A partir da segunda metade do século 20, a medicina se dedicou a enganar a morte por meio de aparelhos que mantêm o coração e os pulmões funcionando artificialmente, e da alimentação por via intravenosa quando o aparelho digestivo não funciona mais. Os avanços nesse adiamento da morte estão indo tão longe que já não nos espantamos tanto quando alguém chega a mais de 100 anos de idade.

E, no entanto, continuamos morrendo. E toda morte é individual, como toda vida. Esse fato é esquecido quando passamos a pensar a morte em termos coletivos. Como nos 45 milhões de chineses mortos durante o reinado de Mao Tsé-tung, ou o 1,5 milhão de armênios massacrados pelos turcos no tempo da 1ª Guerra, ou ainda os 20 milhões de cadáveres na conta de Josef Stalin.

O exemplo mais simbólico dessa coletivização são os “6 milhões de judeus” mortos durante o regime nazista. É uma tragédia monumental, mas hoje encaramos o desastre desencadeado pelo hitlerismo como um número redondo de sete algarismos. O horror se dissolve no número, por maior que seja.

Caminho oposto é seguido pelo Museu Auschwitz. Por meio de sua conta no Twitter, a instituição individualiza cada uma das aproximadamente 1.100.000 mortes ocorridas nesse campo de concentração nazista, localizado na Polônia. Vemos a foto de cada vítima e um resumo de sua vida, às vezes breve demais.



Joseph Bremmer, judeu holandês nascido em Roterdã em 28 de julho de 1940. Em setembro de 1943, foi deportado para Auschwitz e assassinado numa câmara de gás. Tinha 3 anos de idade.


Vera Frisch, judia nascida em Osijek, Iugoslávia, em 27 de julho de 1932. Foi morta na câmara de gás de Auschwitz aos 11 ou 12 anos.


Jan Kolaczkowski, polonês de Krakow, pedreiro de profissão, nascido em 27 de julho de 1904. Foi transformado no prisioneiro 35709 de Auschwitz, onde faleceu em 17 de agosto de 1942, aos 38 anos.


Adolfina Mutz, operária polonesa nascida em Chandziówka em 27 de julho de 1910. Prisioneira número 11994 em Auschwitz a partir de 27 de julho de 1942, morreu em 2 de novembro, aos 32 anos.


Ilona Raabová, judia checa nascida em Praga em 15 de julho de 1934. Deportada para Auschwitz em 23 de outubro de 1944, morreu na câmara de gás aos 10 anos.

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Ervin David, húngaro judeu nascido em 18 de julho de 1938. Assassinado numa câmara de gás de Auschwitz em junho de 1944, antes de completar 6 anos.

Pronto. Dos 6 milhões de mortos, seis deixaram de ser um número. São nomes, rostos, histórias, trajetórias individuais. Coletivizar mortos em números arredondados é como matá-los pela segunda vez. O nome de cada uma das 2.983 vítimas do atentado de 2001 ao World Trade Center foi registrado em 152 placas de bronze, hoje expostas no Museu e Memorial do 11 de Setembro, em Nova York.

O Brasil não teve o mesmo respeito pelas vítimas da covid-19. Elas viraram um número corrompido, em que é difícil confiar. “552 mil mortos” virou uma plaquinha de identificação para que um senador pratique sua sórdida demagogia. A palavra “genocida” foi usada de maneira tão vulgar e leviana que se esvaziou em seu trágico significado. Por conta de uma agenda política mesquinha, as outras formas de morrer no Brasil foram praticamente esquecidas por mais de um ano. (Das dez principais causas de morte, metade delas se refere a doenças do aparelho cardiorrespiratório. Outras: demência, violência interpessoal, diabetes, acidentes de trânsito, doença renal crônica. Dados de 2016.)

A pandemia provocou em muita gente um estado de letargia e pânico infantil, uma espécie de morte em vida. O amadurecimento aponta para outro lado. A morte passa a ser vista como uma amiga que tomamos cuidado para que permaneça a distância. Mas que aceitamos quando for a hora do encontro e respeitamos pelas lições que nos dá. A consciência da inevitabilidade da morte nos dá a razão definitiva para valorizar cada um dos dias de vida que nos restam. Para fazer o que não foi feito, curtir o que foi adiado, focar o presente, aprender com o passado. Enquanto há tempo.

“Covardes morrem muitas vezes antes de sua morte”, escreveu William Shakespeare na sua peça Júlio César. “O valente só morre uma vez. De todas as coisas que já ouvi, a mais estranha é saber que os homens a temem, visto que a morte, um fim necessário, virá quando tiver de vir.” “O medo da morte se segue ao medo da vida”, completa Mark Twain. “Alguém que vive em sua plenitude está pronto a morrer a qualquer momento.”
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