Pior é que ela tem certa razão. Brincar com o STF se tornou perigoso até mesmo para um lambarizinho como eu. Via Gazeta do Povo, a crônica de Paulo Polzonoff:
Domingo,
minha mulher acordou sobressaltada. “Sonhei que você tinha sido preso”,
disse, se empanturrando de waffle. Fiquei quieto, esperando pelo pior.
Que não tardou. Pegando o celular, ela me mostrou as reações ao meu
texto fictício sobre Caetano Veloso ter sido alvo de operação de busca e
apreensão por propagar ideias antidemocráticas. “Olha só quanta gente
acreditou. Apesar do asterisco!”, disse ela, me acusando de não sei bem o
quê.
Pairou
sobre a mesa o silêncio. Lá fora, os sinos da igreja disputavam meus
ouvidos com uma maritaca. Mergulhado nessa cacofonia improvável, não
percebi que minha mulher falava, riscando o ar com o dedo indicador.
“Acho melhor você parar de escrever sobre o STF”, aconselhou ela,
naquele tom que não dá margem a interpretações: era uma ordem.
Mesmo
sabendo que era inútil, tentei argumentar. E, debilmente, disse que era
só uma crônica. Para quê?! Ela se levantou e, andando de um lado para o
outro com o celular na mão, foi citando todos os textos que já escrevi
com críticas ao STF. Ainda tentei dizer que não tinha o que temer,
porque nunca fui desrespeitoso. Mas não teve jeito. Estou proibido.
Estou censurado.
O
pior de tudo – o mais escandaloso! – é que ela tem certa dose de razão.
No Brasil de 2021, usar o esse, o tê e o efe juntos, mesmo que num
texto de humor, tornou-se inacreditavelmente perigoso. Mesmo para
lambarizinhos como eu. Afinal, hoje em dia tudo o que há entre a minha
liberdade (de ver a realidade pelo prisma intencionalmente ingênuo que
defendo) e uma dor de cabeça kafkiana é a consciência de um ente
político-jurídico: um ministro do Supremo.
Não
basta ou não deveria bastar. Tanto é assim que, ao longo da história,
criamos vários mecanismos para impedir justamente que a autoridade (às
vezes um rei, um presidente, um ditador ou um juiz) use sua consciência
(falha, pecaminosa) para perseguir o indivíduo. Mecanismos que, hoje,
estão ou enferrujados ou foram pulverizados por anos e anos de corrupção
moral daqueles que enchem a boca para falar “sou autoridade!”.
Crise do silêncio
Munido
de uma ousadia que não combina comigo àquela hora do dia, levanto-me.
“Tá pensando que vai aonde?!”, pergunta ela, e volto a me sentar. Me
imagino todo nelsonrodrigueano, dizendo que não vou deixar de escrever
sobre o STF coisa nenhuma. Afinal, sou um ex-covarde! Mas me amedronto
e, reduzido à minha insignificância, fico ali folheando um livro cuja
leitura interrompi há muitos e muitos meses. Nele, leio que “boas
decisões surgem com a experiência, mas você só tem experiência se tomar
decisões ruins”. Faz sentido.
Estou
prestes a quebrar o gelo anunciando a ideia de escrever um texto sem as
letras “s”, “t” e “f” quando ela bufa longamente, vidra uns olhos
insuportavelmente profundos em mim e diz: “Já vi tudo. Você está
pensando em escrever um texto inteiro sem as letras ‘s’, ‘t’ e ‘f’,
né?”. Respondo que sim, mas que tinha empacado já na primeira frase. Ela
reage com um tsc, tsc, tsc demorado. Como se deixasse claro que não
tenho conserto mesmo.
“Quer
saber de uma coisa?”, perguntou ela, perdendo a paciência. Sem saber se
respondia ou não à pergunta retórica, simplesmente arqueei as
sobrancelhas, num convite ao insulto. Que não veio. Pelo contrário.
“Tava aqui pensando”, disse minha mulher. “A crise político-judiciária é
sobretudo uma crise do silêncio”, afirmou. Diante da minha
impassividade, contudo, ela teve de apelar novamente às ordens. “Tá
esperando o quê? Pega uma caneta e anota o que estou dizendo!”, mandou.
“A.
Crise. Política. É. Uma. Crise. Do. Silêncio”, escrevo com minha
caligrafia insuportavelmente torta. “Sim”, diz ela. “E o pensamento
individual, com base em princípios éticos, só nasce no recolhimento. Em
silêncio. A cacofonia só beneficia o pensamento de grupo”, afirma,
naquele momento ironicamente disputando espaço com as maritacas e os
sinos da igreja. “O que explica muita coisa. Desde o sucesso das redes
sociais até o apelo dessa discussão aí sobre um grupo de pessoas que
deveria agir discretamente, em silêncio, de acordo apenas com seus
valores e princípios. Mas que cedeu à tentação das multidões”, continuou
ela.
Anotei
tudinho. “Posso usar isso no texto de amanhã?”, pergunto. Ela faz que
sim, como se não soubéssemos os dois que era o plano dela desde sempre.
Sentindo-me mais à vontade no campo minado daquele café matinal, me
arrisco a perguntar se a censura está revogada e se já posso voltar a
escrever sobre o STF. “De jeito nenhum!”, diz ela.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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