O que está se vendo é o divórcio entre o grosso das populações nacionais e suas elites política, econômica e, sobretudo, intelectual. Artigo do historiador Jean Marcel Carvalho França para a Gazeta do Povo:
Bizarro
mundo este em que vivemos. Tínhamos como certo, há menos de uma década,
que opinião pública, imprensa e “formadores de opinião” (os
bem-pensantes) eram coisas inseparáveis, condenadas a viverem e a
permanecerem juntas até o fim dos tempos. Inesperadamente, no entanto, a
opinião pública tornou-se um campo de batalha, a imprensa tradicional
entrou em colapso e os formadores de opinião, os indefectíveis
“especialistas”, foram lançados num quase ostracismo. Tais seres,
inclusive, que se tinham e eram tidos socialmente em alta conta, foram
condenados a falar praticamente uns para os outros e, o que é pior, se
viram, num passe de mágica, substituídos por uma personagem inusitada
que, embora prevista na trama das sociedades democráticas, tardou a ter
mais voz no espetáculo: o cidadão comum.
Lançando
mão das facilidades comunicacionais propiciadas pelas novas tecnologias
da informação, donas e donos de casa dos mais variados cantos
atiraram-se numa aventura de tons “iluministas”: usaram de sua razão, de
seu “bom senso”, esclareceram-se, saíram da “menoridade” e resolveram
marcar presença no debate público. Uma vez aí instalados, descobriram
similares e seguidores, muitos similares e muitos seguidores; e isso sem
nunca recorrerem à autoridade dos títulos acadêmicos ou à chancela dos
bem pensantes; ao contrário, a legitimidade do que dizem é retirada da
adesão dos tais similares e seguidores, da gente que compartilha de um
mesmo universo de valores – cristãos, familiares e patrióticos –,
valores comumente julgados desprezíveis e grosseiros pelos que se querem
progressistas e esclarecidos.
A
emergência dessas novas personagens no debate público e a tal guerra de
narrativas que se instalou no espaço virtual é, no entanto, somente um
dos sintomas de um mal de enormes proporções que há tempos, e num
crescendo, vem comprometendo a estabilidade das sociedades ocidentais: o
divórcio entre o grosso das populações nacionais e suas elites
política, econômica e, sobretudo, intelectual. Para se ter uma ideia do
tamanho do embrolho e de como o mesmo evoluiu rápido e numa direção
inusitada, vale uma breve comparação. Em 1994, poucos dias antes de
morrer, o historiador americano Christopher Lasch finalizou o seu
premonitório A revolta das elites e a traição da democracia. A obra,
tida por muitos como o testamento intelectual de Lash, propõe uma ampla
reflexão sobre o futuro da democracia ocidental, melhor, sobre as
soluções democráticas para um impasse inédito vivido pelas sociedades
ocidentais: o crescente distanciamento entre as elites e os extratos
médios e baixos da população, entre os que ocupam o topo da pirâmide
social e as ditas maiorias silenciosas.
Lasch
parte de uma constatação curiosa: a outrora temida revolta das massas,
tidas como mesquinhas, ignorantes, imediatistas e descompromissadas com
os interesses nacionais, deu lugar, no ocaso do século XX, a uma outra
revolta, a das elites, elites igualmente desterrorializadas, afastadas
dos interesses da res publica e avessas aos ditos valores nacionais.
Essa revolta das elites globalizadas e o seu crescente descompromisso
com o bem comum deixou as sociedades ocidentais acéfalas e cindidas: de
um lado, as massas, apegadas a valores familiares e nacionais, ciosa de
sua moral e ansiosa por vê-la defendida por aqueles que ocupam o topo da
hierarquia social e que, aos seus olhos, deveriam ser os guardiões do
modo de vida tradicional; de outro, elites hedonistas, que cultuam as
formas marginais e alternativas de vida e que enxergam os antigos
valores familiares e nacionais como coisa retrógrada, defendida por
gente rústica e politicamente incorreta. Diante de tão radical ruptura,
decisiva para os destinos das sociedades ocidentais, Lasch pergunta-se: é
possível sair do impasse, preservando os valores que norteiam as
democracias? Que caminho podemos tomar?
Um
quarto de século mais tarde, em 2020, ou seja, depois da emergência da
“democracia iliberal” de Orbán, do Brexit, do sucesso de Trump – que
ainda ecoa na América –, da Polônia católica de Jaroslaw Kaczynski, da
barulhenta revolta dos “coletes amarelos” e de tantos outros fenômenos
sociais aparentados – como a eleição de Bolsonaro –, Christophe Guilluy,
o geógrafo da “França periférica”, retornou ao tema no seu “O tempo da
gente comum” (“Le temps des gens ordinaire”, sem tradução para o
português), e o que encontrou, se não responde inteiramente às
inquietações de Lash, não deixa de ser esclarecedor sobre os rumos que
as coisas tomaram desde 1990. O divórcio que se anunciava, de fato,
consumou-se: as elites se distanciaram mais e mais das tradições e
valores do senso comum e do bem público; a gente de baixo, todavia, não
aceitou passivamente o desamparo material e cultural em que quiseram
lançá-la – o desprezo sistemático pelo seu modo de vida –, ao contrário,
ela rebelou-se, ganhou autonomia, ascendeu ao debate público, fez ouvir
a sua voz e, o que mais tem afligido a gente do topo, encontrou
mecanismos eficientes para levar ao poder líderes que expressam as suas
pautas – líderes que menos controlam os seus seguidores do que são
controlados por eles, salienta Guilluy.
O
topo, ainda que de uma maneira atabalhoada e um pouco tardia, reagiu:
das ridículas “agências de checagem dos fatos” – os caçadores de “fake
news” – à efetiva censura de perfis e temas nas redes sociais, ele tem
tentado de tudo para retomar o controle da narrativa – até mesmo
explorar o medo da morte das populações, em tempos de pandemia –, mas
nada parece estar dando muito resultado. A gente comum persiste: burla a
censura velada e a não velada, une-se, encontra porta-vozes variados e,
sobretudo, legitima-se mutuamente, enfim, age com a certeza de que o
seu tempo chegou, e não é hora de ceder ou retroceder. Quem vai levar a
melhor neste verdadeiro cabo de guerra? Difícil saber, o jogo ainda está
sendo jogado.
*Jean
Marcel Carvalho França é professor Titular de História do Brasil da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre
outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro
Oitocentista (Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1999), “Visões do Rio
de Janeiro Colonial” (José Olympio, 2000), “Mulheres Viajantes no
Brasil” (José Olympio, 2008), “Andanças pelo Brasil colonial” (Editora
da UNESP, 2009), “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos
séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/Editora da UNESP, 2012),
“Piratas no Brasil“ (Editora Globo, 2016) e “Ilustres Ordinários do
Brasil” (Editora da UNESP, 2018).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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