Reconheçamos que o planeta, em alguma medida, sempre foi insuportável. Luiz Felipe Pondé via FSP:
O
que faz alguém achar que vai salvar o mundo? Ou o que faz alguém
acreditar que uma geração salvará o mundo? A especialista em estudos
russos Aileen M. Kelly analisou a vida do anarquista Mikhail Bakunin (1814-1876) à luz do que ela chama em sua obra de psicologia da mente utópica.
A
obra, “Mikhail Bakunin, A Study in the Psychology and Politics of
Utopianism”, publicada pela Yale University Press em 1987, é um primor
de análise em que filosofia, história da filosofia, sociologia e
história da Rússia do século 19 se encontram pra desenhar o tipo
psicológico do intelectual de então, em que se lança a categoria de
revolucionário como modo de viver no mundo.
A Revolução Russa foi fruto dessa geração,
assim como quase todo o processo político que o mundo passou até o
século 20. Os efeitos dessa estrutura psicológica se fazem sentir até
hoje, inclusive, em grande parte, nas expectativas com relação ao papel
dos jovens no mundo.
Em meio aos anos 1970 e 1980, o anarquismo teve minha simpatia política.
Mantenho
uma costela anarquista até hoje: serve como um método de ódio à
burocracia e aos seus amantes, inclusive na sua nova encarnação, o marketing, a grande burocracia do século 21.
Mas,
evidentemente, não é possível um mundo sem alguma forma de organização
institucional. Nossa liberdade não merece tanta confiança assim.
O
utópico, nesse cenário histórico, é o aristocrata esmagado pela
autocracia de Nicolau 1º (1796-1855), o grande czar da opressão
política.
A formação intelectual desses homens, chamados pela literatura de então de supérfluos ou “Hamlets russos” —termos criados por Ivan Turguêniev (1818-1883)—
foi, inicialmente, na filosofia do idealismo alemão, criada por autores
como J.G. Fichte (1872-1814) e F.W.J. Von Schelling (1775-1854).
E o que isso significa no plano dos mortais?
O
idealismo alemão é uma grande viagem na maionese. Uma metafísica
reeditada, como se Kant nunca tivesse existido e não tivesse jogado a
metafísica na lata de lixo.
Grandes
sistemas em que a Ideia (uma espécie de Deus desidratado da literatura
bíblica e relido como um Ego gigantesco) em ação contínua, criando e
recriando um mundo em que, no final do dia, sobra ele, esse Ego, e ele
mesmo, alimentando mundos imaginários em que aqueles eleitos que seguem
essa seita se identificam como parte desse Ego em moto contínuo.
O
resultado disso, no plano político, foi uma mística política, e Bakunin
foi o maior desses místicos. Esta era sua busca pela plenitude
subjetiva.
Um
déficit de relação com a realidade, em seu caráter intratável a
qualquer ideia perfeita acerca desta mesma realidade, marca esses
sistemas delirantes, ainda que belos e criadores de conceitos essenciais
como o do inconsciente, mais tarde feito famoso pela psicanálise.
O
recurso a existir numa realidade paralela, mas sofisticada, deu a esses
homens, que viviam sobre uma repressão externa monstruosa do monarca
Nicolau 1º, a possibilidade romântica de criar um mundo que não existe,
onde eles seriam os agentes da beleza transformadora. Muita teoria, mas
incapaz de digerir um mundo que sempre resistiu às ideias que temos dele. O mundo concreto é o túmulo de toda utopia.
Essa
metafísica idealista —daí vem o termo “idealista” para utopias
políticas— tem um efeito psicológico maravilhoso para mentes que se
sentem reduzidas a nada no plano da ação, num mundo que as ignora. Esse
efeito se aproxima a uma viagem de ácido, como se dizia nos anos 1960 e
1970.
Segundo
Kelly, no plano da ação, esse delírio acabou por gerar o que ela chama
de “impulso de destruição” presente na proposta revolucionária.
Na
prática, o mundo perfeito em que todos os homens e mulheres seriam
plenos nunca existe, mas a destruição do que existe, sim, é possível, e
aconteceu na Rússia. A posterior geração niilista levou a cabo essa destruição.
O
idealismo foi, na Rússia, uma fuga para almas em agonia. Mas,
reconheçamos que o mundo, em alguma medida, sempre foi insuportável.
Daí, a vocação um tanto universal do apelo à mística da revolta.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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