O ativismo "woke" não consiste numa qualquer libertação, mas na mais audaciosa proposta de aumento do poder do Estado no Ocidente desde os totalitarismos dos anos 1930. Rui Ramos para o Observador:
O Tribunal Constitucional,
por maioria, considerou que a propaganda nas escolas da ideologia
associada à “autodeterminação da identidade de género” não podia
resultar de uma mera medida administrativa. O facto de o governo ter
pensado o contrário revela o carácter autocrático do activismo “woke”
que inspira essas iniciativas. Muitos dos seus temas – a “construção
social dos sexos”, o “racismo sistémico”, o “patriarcado”, etc. —
surgiram na “contra-cultura” da década de 1960, mas este não é um
movimento vindo de baixo. Nas universidades, é conduzido pelos
professores; na economia, é apoiado pelas grandes multinacionais; na
sociedade, é popular entre as elites; na comunicação social, é promovido
pelos órgãos ditos “de referência”. É um movimento do poder
estabelecido, e tem como objectivo a intensificação do controle da
sociedade por esse poder.
Para
compreendermos o ”wokeism”, temos de começar por notar que não há hoje
qualquer divergência política significativa nos países ocidentais sobre a
liberdade e a igualdade no que diz respeito a opções sexuais, modos de
vida ou minorias étnicas. Todas as constituições proíbem discriminações
com base em tais pressupostos (sim, até a da Hungria). As sondagens de
opinião sugerem maiorias consistentes nesse sentido (por exemplo o Minorities Report 2017
da ILGA-RIWI Global Attitudes Survey). A discussão, portanto, não tem a
ver com direitos, mas com outra coisa: a visão do mundo em que, segundo
o activismo “woke”, devem estar fundados esses direitos, e o papel do
Estado na promoção dessa muito particular visão do mundo.
Para
a maioria das pessoas, esses direitos correspondem naturalmente à
igualdade e à tolerância que deve existir entre seres humanos pacíficos
numa sociedade decente. Para o movimento “woke”, não. Para um “woke”, as
minorias (sexuais ou étnicas) nunca serão verdadeiramente livres apenas
pela tolerância, ausência de discriminação legal ou igualdade de
direitos. Só serão livres quando a sociedade em que um dia sofreram
discriminação for desmantelada e as suas normas e tradições erradicadas.
Por exemplo, quando todas as identidades, mesmo as que parecem derivar
de dados biológicos, forem concebidas como “construções sociais” (como
pretende a “autodeterminação da identidade de género”); quando as
relações familiares estiverem deslegitimadas como meros exercícios de
violência; ou quando a memória histórica das nações tiver sido
devidamente apagada, e os países ocidentais forem reduzidos a uma
espécie de aeroportos internacionais, onde todos passam e a que ninguém
pertence.
Para
obter esse resultado, o movimento “woke” não conta com a opinião
pública, mas com a coerção do poder político. Para os “woke”, é ao
Estado que compete impor a “autoderminação da identidade de género”,
promover a deslegitimação da família, zelar pelo apagamento da memória
histórica, e vigiar a linguagem. Não estamos perante uma libertação, mas
perante a mais audaciosa proposta de aumento do poder do Estado no
Ocidente. A autonomia do indivíduo e da sociedade perante o poder
político dependeu sempre do facto de haver coisas que se supunha estarem
para além desse poder. Por exemplo, a natureza, isto é, aquilo que é
dado na experiência humana, ou a história, isto é, aquilo que foi
elaborado pelos seres humanos ao longo de muitas gerações. É
precisamente isso que agora se pretende suprimir a golpes de Diário da
República: tudo deve ser refeito pelo Estado, tanto a natureza como a
história. A este tipo de projectos, nos anos 1930, chamou-se muito
apropriadamente “totalitarismo” – no sentido de uma política que se
pretendia “total”, não deixando nada fora do seu alcance, na esfera
pública e na esfera privada.
A
primeira base do movimento está na extrema-esquerda, que desde 1989
procura ressuscitar a revolução. Por aí, não há novidade. O que é
inédito é o apoio que encontrou na esquerda moderada. Há umas décadas
que esta esquerda sente que, perante a evolução demográfica e a escalada
das dívidas públicas, não tem bons argumentos para defender os seus
modelos sociais. Podia ter arranjado outros. Preferiu constranger o
debate público, através da desqualificação e do “cancelamento” do
adversário. Rendeu-se deste modo à “guerra cultural” e fez da
extrema-esquerda a sua tropa de choque. É uma estratégia de poder.
Explora cinicamente a confusa mentalidade pós-cristã das classes médias,
a quem dá jeito acreditar que, para usufruírem as suas riquezas com boa
consciência, agora que o padre já não as absolve dos pecados, lhes
basta saberem usar os pronomes certos para se referirem a uma “pessoa
não binária”.
O
movimento “woke” tem dois aspectos de que vale a pena falar. O primeiro
é o de uma nova divisão social, entre a elite “woke” e aqueles a quem
Hillary Clinton chamou “os deploráveis”. As classes mais pobres e menos
qualificadas constituem o relicário dos costumes e das tradições que é
preciso eliminar. O “povinho” menos qualificado já perdeu o emprego com a
globalização. Agora, deve também perder as suas referências culturais.
No imaginário “woke”, a populaça está na situação dos “indígenas” das
antigas colónias, forçados a “assimilarem-se” à nova “civilização” no
caso de desejarem ser tratados como iguais. À resistência dos novos
“indígenas”, chama-se agora “populismo”.
O
segundo aspecto é propriamente político. Durante anos, esquerda e
direita discordaram sobre o tamanho do Estado, mas estavam geralmente de
acordo sobre coisas como por exemplo os direitos, liberdades e
garantias, ou a tradição histórica nacional. O PS promoveu a Expo-98, em
que a expansão portuguesa dos séculos XV e XVI foi comemorada, segundo
as modas da década de 1990 , como “intercâmbio” entre os povos. Foi há
apenas 20 anos. Entretanto, a história deixou de ser comum. Hoje, há deputados do mesmo PS
que gostariam de destruir o Padrão dos Descobrimentos ou que lamentam
que o 25 de Abril não tivesse muito “sangue” e muitos “mortos”. A
direita já não é “fascista” apenas para o PCP e o BE.
Os
pobres de espírito que, à direita, acreditam que a melhor estratégia é
renderem-se na “guerra cultural”, para depois ganharem a “guerra
económica”, não percebem o que se está a passar: o tipo de poder
político que está a tentar levantar-se através da guerra cultural não
vai ser mais “liberal” na economia. O consenso chegou ao fim. Por
enquanto, ainda nos mantemos ligados pelas regras do jogo: os governos
dependem de eleições, e a legislação tem de respeitar a ordem
constitucional. Vai ser preciso defender essas regras.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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