Como líbios famélicos rumo à Europa, argentinos têm enfrentado travessias perigosas para tentar a vida num paraíso improvável: o Brasil. Bruna Frascolla via Gazeta do Povo:
O
recém falecido professor Antonio Paim era muito gentil e cortês com
jovens que o procurassem. O Instituto Mises acabou legando uma espécie
de resumo autobiográfico num podcast em que ele conta, dentre outras
coisas, que aprontou uma confusão dos diabos na União Soviética durante
os seus tempos de bolchevique. Tudo porque se apaixonara pela tradutora
russa e queria trazê-la para o Brasil, como de fato trouxe.
Tive
ocasião de perguntar a ele, por telefone, por que isso deixara o
Partido tão bravo com ele. Explicou-me os comunistas se empenhavam ao
máximo em evitar que, atrás da Cortina de Ferro, o povo soubesse como
era o mundo livre. Era preciso que o povo acreditasse que a União
Soviética era o melhor lugar do mundo e que não havia salvação fora do
comunismo.
Quando
ele contou isso, lembrei-me do depoimento de um sul-coreano com
cidadania norte-americana que passou um tempo preso na Coreia do Norte. O
guarda correu o risco de conversar com ele e queria saber como eram os
Estados Unidos. O prisioneiro respondeu, mas não houve jeito: o guarda
ficou perplexo e incrédulo; não queria acreditar que nos Estados Unidos o
povo não passava fome.
E
eu me lembrei dessas duas histórias quando conheci o canal de Silvia e
Marcelo Taormina, os argentinos que orientam os seus compatriotas a
fugirem da argentina e se estabelecerem no Brasil dentro da legalidade.
Direito de ir e vir se perdeu
Como
o casal residente em Itanhaém, na Baixada Santista, e faz caridade com a
ajuda de brasileiros, eles na certa são gente conhecida no local. O
canal faz vídeos com a história de famílias que estão tentando imigrar e
propagandeia as suas habilidades. A história do marceneiro Alejandro e
seus cinco filhos foi a que mais comoveu o público do canal e fez com
que o casal aparecesse na rádio Jovem Pan, que tem alcance nacional.
A
história de Alejandro (contada neste vídeo) é a seguinte: a família
saiu ilegalmente da Argentina pela Bolívia atravessando um rio caudaloso
numa balsa precária de madeira e pneus. Segundo explica Alejandro,
desde dezembro os argentinos que querem fugir do país vão para a cidade
de Aguas Blancas, na província de Salta, atravessam o Rio Bermejo e
chegam à cidade de Bermejo, na Bolívia. Dezessete vidas já foram
perdidas na travessia, segundo a imprensa local. Por isso Alejandro
esperou uma época em que o rio estivesse mais baixo. De Bermejo, a
família de Alejandro foi para Assunção, no Paraguai, e entrou no Brasil
por Foz do Iguaçu.
Por
que dar essa volta toda? Por que não atravessar direto a fronteira da
Argentina com o Brasil por terra, sem se arriscar numa travessia
precária e letal? Marcelo, o argentino veterano, manda que Alejandro
explique, pois os brasileiros não entendem isso. A resposta: “Porque a
democracia já não existe mais e a última coisa que restava ao povo
argentino […] era o direito de ir e vir. Esse direito se perdeu quando
um policial ou um guarda de alfândega disse: ‘você não pode sair.’ Você
tem que escapar como um criminoso.”
No
Brasil, vimos por alto notícias de fechamento da fronteira argentina.
Mas não nos demos conta do drama social que isso acarretou. E, pensando
bem, é um drama bem previsível, já que, como frisou com muita clareza
Alejandro, na Argentina está sem trabalhar há mais de um ano. Enquanto
isso, o governo ainda aumentou os impostos. Ele acha que a pandemia foi
apenas um pretexto para acabar de vez com a democracia no país.
E
bom, com esse cenário, é perfeitamente compreensível que as pessoas
entrem num bote para escapar do país e ir a outro onde não sejam
proibidos de trabalhar.
Por que o Brasil?
As
imagens de Alejandro no bote mostram que havia muitas outras pessoas
fazendo a mesma travessia, mas não há alusão a elas. É possível que
tenham escolhido outros países para tentar a sorte – quem sabe já não há
uma comunidade de argentinos na Bolívia, ou quem sabe não vão de lá
para o Chile, que é uma economia farta.
Ao
que parece, o Brasil não é uma escolha óbvia para os Argentinos.
Alejandro só veio porque um dos filhos gostava muito do Brasil (a
família já viajara de férias para o Rio de Janeiro) e começou a
pesquisar no Youtube até encontrar os vídeos do casal Taormina. No
canal, podemos ver que o casal se empenha em desfazer ideias falsas que
os argentinos porventura tenham do Brasil. Por exemplo, explica que
aquela declaração do Papa, sobre muita cachaça e pouca oração, é sem pé
nem cabeça, pois o Brasil é muito, muito religioso. Explica que há uma
profusão de religiões convivendo por aqui, explica o que é cachaça (“a
bebida quente dos brasileiros”), que aqui se toma muita cerveja, que é
comum se embebedar na sexta-feira, mas que nas segunda todos estão
trabalhando.
Há
também um vídeo especialmente dedicado a desmentir a imprensa
argentina, que mostra imagens de manifestantes de verde-e-amarelo
dizendo que são brasileiros pedindo o impeachment de Bolsonaro. O
argentino veterano explica que no Brasil as manifestações pró Bolsonaro
usam verde-e-amarelo, que as contra usam vermelho, e resume as pautas
daquela manifestação que apareceu na TV argentina como pró-impeachment.
(Num dado momento ele fala que recusou convites de candidatura. Para que
o leitor mais prudente não veja aí um mentiroso, explico que Marcelo
Taormina nasceu no Brasil filho de pais argentinos e foi para a
Argentina criança. O que faz dele, tecnicamente, um brasileiro nato.)
Pelos
Taormina, aprendemos que a Argentina diz aos seus cidadãos-prisioneiros
que o Brasil está um caos, com filas e mais filas em cemitérios e que,
por isso, os brasileiros estão clamando pela expulsão de Bolsonaro do
governo. Aprendemos que também as redes sociais são usadas na Argentina
para fazer propaganda negativa do Brasil: pegaram a foto de uma
homenagem aos mortos da Covid no Rio de Janeiro, com cruzes fincadas na
praia, e disseram que faltava espaço no Brasil para enterrar tantos
mortos que até as praias viraram cemitério.
Os
Taormina negam tudo isso e contam que no Brasil se trabalha; que,
embora haja decretos proibindo algumas coisas, os brasileiros
desobedecem e a economia do país tem crescido mesmo durante a pandemia.
Mandam os argentinos não confiarem na própria imprensa e, em vez disso,
usarem a internet para pesquisar notícias em outras línguas.
Por que trancar os argentinos?
Quando
um país passa fome, não faz sentido que queira se livrar de habitantes?
Afinal, se as ditaduras socialistas impedem as pessoas de trabalhar,
elas naturalmente se tornam bocas a alimentar.
Os
Taormina acham que a imprensa argentina mente por Fernández ser de
esquerda, enquanto Bolsonaro é de direita. Discordo. Imaginem que o
Brasil fosse, hoje, governado por Lula com Palocci, e vivesse a mesma
bonança do começo do governo Lula. Seria de interesse de Fernández que
os argentinos vissem o país vizinho na melhor? Penso que seria pior
ainda para a esquerda argentina, pois o Brasil seria exemplo de um
governo de esquerda próspero. Agora, todo o sucesso econômico do Brasil
pode ser atribuído ao fato de termos um presidente mau como um pica-pau:
um genocida. E aí cola aquela conversa de sacrificar a economia para
salvar vidas.
A
Argentina precisa trancar os seus moradores para que eles não tenham
contato com lugares melhores. Se eles virem o Brasil dando certo, verão
que a culpa da desgraça argentina não é do vírus, mas dos políticos.
Assim, é preciso trancá-los e bombardeá-los com propaganda e
desinformação.
Outro aspecto da segurança
Silvia
e Marcelo costumam causar controvérsia quando dizem que o Brasil é
seguro, frisando que o país é grande demais e nem tudo é o Rio de
Janeiro. De fato, a capilarização das facções narcotraficantes nos
impede de dizer que o Brasil é um país seguro em termos absolutos. Mas,
como este é hoje um problema das Américas, os termos relativos se tornam
mais importantes do que os absolutos.
É
possível que alguém saia de Buenos Aires e se sinta seguro em alguma
cidade do interior brasileiro, assim como eu saí da capital da Bahia
para o interior e não trombo mais com cracudo agressivo na rua. Como o
Brasil tem uma economia menos centralizada do que a Argentina, é
factível que ter uma vida interiorana de classe média, sem a violência
das capitais, seja mais fácil por aqui. Ainda mais agora, com a difusão
do home office.
Mas
eu queria fechar voltando para Alejandro. Ele destaca a sensação de
segurança que a cultura brasileira passa. Isso é algo valioso que não
costumamos apreciar – pelo contrário, a tradição marxista costuma
deplorar nossa escassa propensão a convulsões sociais.
Vejam
a queima da estátua de Borba Gato. No dia 18 de julho, algum vagabundo
fez o primeiro tuíte da conta da Revolução Periférica. Na mesma semana,
um caminhãozinho fretado deixa os mesmos vagabundos na frente da
estátua, todos paramentados, com os fotógrafos já a postos. Nenhum
observador se envolve. A coisa não cresce. Foi assim com o caso do
Carrefour também. Tentaram criar um George Floyid brasileiro, mas deu
nada. Antes, em junho de 2020 já tinham tentado emplacar um Black Lives
Matter com a Gaviões da Fiel, mas deu em nada. Mesmo com o apoio das
corporações, político e imprensa, nada.
Ingerências externas tentam lançar nossa sociedade em chamas, mas não conseguem. Isto é segurança.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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