"Vacinas e controle da Covid", artigo do biólogo Fernando Reinach publicado pelo Estadão:
Todos concordam que a saída para a pandemia é vacinar
o mais rápido possível o maior número de pessoas, usando as melhores
vacinas. E no início da vacinação a melhor vacina é aquela que chega no
seu braço.
Mas
isso não tem impedido epidemiologistas teóricos de estudar qual deve
ser o objetivo final dos programas de vacinação. Todos concordam que o
objetivo inicial deve ser diminuir o número de internações e mortes. É
por esse motivo que se vacina antes os grupos de maior risco, como
idosos e pessoas com comorbidades. Caso tenhamos sucesso, vamos conviver
com o SARS-CoV-2 infectando um grupo grande de pessoas anos a fio, mas com um número reduzido de internações e mortes.
É o que ocorre hoje com a gripe,
uma vez que a baixa eficácia das vacinas e a alta taxa de mutação do
vírus não permitem que o número de casos despenque brutalmente. Mas
existem programas com resultados muito melhores. No caso do sarampo, os programas de imunização conseguiram reduzir a quase zero a transmissão do vírus, tornando a doença relativamente rara.
A
novidade é um trabalho científico coordenado por Adam Kusharski, autor
do melhor livro para leigos sobre a disseminação de doenças infecciosas
(The Rules of Contagion). Nesse estudo, os cientistas delimitam o que
seria necessário para, usando vacinas, atingir e manter o nível de
imunidade da população acima do limite da imunidade de rebanho. Atingido
esse limite, o SARS-CoV-2 não desapareceria do planeta, mas teríamos
uma situação semelhante àquela que vivemos com o sarampo.
O
nível de vacinação necessário para atingir a imunidade de rebanho
(quando o vírus não consegue se propagar por falta de hospedeiros
suscetíveis) depende de quatro fatores. O primeiro é a capacidade do
vírus de infectar uma pessoa (o famoso R0). O segundo é efetividade da
vacina usada em reduzir a transmissão (é a eficácia medida em condições
normais de vacinação). O terceiro é a fração da população que é possível
imunizar, e o quarto o formato da pirâmide demográfica (quanto da
população é composta por jovens de menos de 15 anos).
Os
autores criaram modelos que simulam o resultado da vacinação de uma
população usando os dados já obtidos no programa de vacinação da
Inglaterra: o R0 do vírus original é de 2,7 e 4,5 para a variante
inglesa (não se sabe ainda o R0 para a variante indiana). A efetividade
medida da vacina (Pfizer)
após duas doses é de 86% no bloqueio da transmissão. E a pirâmide
populacional usada foi a inglesa. Nessas condições, se toda a população
for vacinada (crianças inclusive), existe 99% de chance de que é
possível superar o nível de imunidade, bloqueando a transmissão. Essa
certeza baixa para 94% se considerarmos a variante inglesa. Vários
outros cenários, usando dados de diversos países, também foram
considerados.
Os
pesquisadores chegaram a uma conclusão importante. Caso as variantes
com alta transmissibilidade se tornem dominantes em países onde parte da
população já foi imunizada pela infecção natural (como no Brasil), ou
onde existem muitas crianças (como no Brasil), só vai ser possível
conter o espalhamento da doença sem utilizar medidas de distanciamento
social se toda a população for vacinada com vacinas cuja efetividade for
maior que 80%.
Isto
quer dizer que, se desejamos deixar de conviver com o distanciamento
social e muitos casos de covid-19, os programas nacionais de vacinação
terão de incluir toda a população e utilizar vacinas de alta
efetividade, similares às de mRNA. Portanto, a volta à normalidade é
possível, mas os programas de imunização terão de ser reorganizados
tanto na abrangência quanto no tipo de vacina utilizado.
Se
você acha essa é uma visão alarmista ou pessimista, lembre que foram
epidemiologistas teóricos ingleses que previram, em março de 2020,
quando a covid-19 havia matado somente 136 brasileiros, que no Brasil
teríamos cerca de 580 mil mortos nos 18 meses seguintes ("Ignorar, Mitigar ou Suprimir", Estadão, 29 de março de 2020). Na época, eles foram considerados loucos e eu, irresponsável, por divulgar a previsão.
Mais informações: The Potential For Vaccination-Induced Herd Immunity Against The Sars-CoV-2 B.1.1.7 Variant
*É
BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E
AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS,
ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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