POLITICA LIVRE
Instabilidade emocional, falta de controle, solidão, convivência extrema com si própria e o espelho, tempo demais nas redes sociais.
Esse cenário descreve bem a vida de muitos brasileiros há mais de um ano, mas para as pessoas que enfrentam transtornos alimentares essa é também a descrição de tudo aquilo que tira seu sono e pode disparar a doença_e torná-las ainda mais vulneráveis ao coronavírus.
A estudante baiana Maria Eduarda Rocha, Mia, 21, sentiu no corpo isso tudo: desde o começo da pandemia, passou de 70 kg para 41 kg, distribuídos em 1,64 m de altura.
O quadro de anorexia, que estava sob controle havia anos, voltou com tudo com o início da pandemia. E quando contraiu a Covid-19, a situação piorou. “Cheguei ao ponto de emagrecer religiosamente cerca de 2 kg por dia”, conta.
Enfraquecida, ela teve dificuldade para se recuperar da doença. Mesmo em repouso e tomando os remédios recomendados por cerca de 15 dias, sempre que parecia melhorar, os sintomas voltavam. Não conseguia ficar de pé, mas relata que “estava feliz internamente”, pois o corpo estava magro.
Mia é uma entre muitas. Um estudo da Clínica Schoen Roseneck, na Alemanha, com pacientes com transtornos alimentares que tiveram alta em 2019, mostrou que 41,5% tiveram piora nos sintomas. Já na Austrália, um estudo revelou um surto de anorexia nervosa entre crianças no início da pandemia.
No Brasil, não há estudos recentes sobre o tema, mas relatos como o de Mia mostram que o problema ocorre por aqui também. Outro indício é o aumento de outros transtornos mentais. Eles chegaram mais que dobrar com a crise de saúde, segundo pesquisa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Nesse cenário, as mulheres estão sendo as mais afetadas: 40,5% das mulheres ouvidas pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP relataram sintomas de depressão, 34,9% de ansiedade e 37,3% de estresse.
E quando o assunto são transtornos alimentares, mulheres também são as mais afetadas. São nove mulheres para cada homem com anorexia. Os motivos ainda estão sendo investigados pela ciência, mas a pressão dos padrões estéticos ligados a gênero está entre eles.
“A cultura do corpo perfeito pertence a uma representatividade de sucesso e competência. Tudo isso estimula a adoção de comportamentos alimentares inadequados, que podem contribuir para a instalação do quadro clínico dessas doenças”, explica a psicóloga Mireille Almeida, membro da Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (Astral).
Apesar das distorções de imagem, os distúrbios alimentares não estão associados somente a questões estéticas, mas a uma série de fatores psicológicos e biológicos, segundo especialistas.
As pessoas com transtornos alimentares sentem a necessidade de controlar algo quando tudo em volta está instável, o que torna o alimento a sua única forma de domínio sobre a realidade. Imagine como isso não fica na pandemia.
“Durante o isolamento foi muito complicado, só intensificou, principalmente, por não ter tantas atividades; minha cabeça se voltou para controlar e pensar 24 horas na comida”, relata a paulistana Marcella Brincaccio, 20, que havia acabado de passar na Unicamp e de terminar um relacionamento abusivo.
“Imagina a frustração de quem fez cursinho, passou e não pôde aproveitar a faculdade. Isso me fez perceber que não tinha controle de nada, exceto da minha alimentação e do corpo”.
A solidão e a falta de apoio aparecem também entre os motivos citados pelas entrevistadas para a volta dos transtornos. “Acho que conviver demais comigo mesma me fez voltar a ver o que eu via em mim antes. Muito tempo sozinha, mais tempo com o espelho, saí da terapia e essas coisas. Eu só voltei a comer depois que peguei Covid”, conta Mia.
O agravamento dos casos de saúde mental durante o isolamento também está relacionado com os transtornos alimentares, explica Cristiane Seixas, psicóloga e professora da Uerj. “Todo transtorno alimentar vem acompanhado de uma dificuldade para lidar com as emoções, as relações familiares e sociais que vêm tanto de antes dele quanto em sua decorrência.”
Ela também relata como consequência do problema um “empobrecimento maior da vida”, pois os pensamentos giram em torno da comida e do peso. “Imagine estar trancado em casa apenas com ideias como ‘o que vou comer?’ e ‘como evitar de engoli-lo?’, e com todas as mudanças que estavam ocorrendo ao redor dessas pessoas.”
Tratar um distúrbio alimentar no Brasil não é fácil. Caso a pessoa procure por internação, o Ambulim, no Hospital das Clínicas em São Paulo, programa especializado em transtornos alimentares e que oferece tratamento gratuito, enfrentará fila de espera.
“Por falta de opção, geralmente as pessoas se internam em clínicas gerais, que podem não ter profissionais especializados no tema”, conta a psicóloga Mireille Almeida.
Existem 20 lugares públicos e 27 privados para tratamento, segundo dados atualizados em setembro de 2020 pela Astral. São apenas 551 profissionais especializados no tema em todo o país, lembrando que o tratamento é multidisciplinar, envolvendo nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e outros.
“O tratamento pelo serviço privado é muito caro, porque precisa ter três profissionais (nutricionista, psicólogo e psiquiatra), e, como são quadros muitas vezes graves, os atendimentos precisam ser frequentes e muitas vezes não é possível fazer um atendimento por mês, por exemplo”, diz nutricionista e doutoranda da Uerj Carolina Coutinho.
Sem pesquisas de base populacional que mostrem a quantidade de pessoas afetadas por esse problema no país, não há políticas públicas para suprir demandas para tratamento, segundo Coutinho.
Com risco de contágio e isolamento social, a principal alternativa de tratamento tem sido o atendimento online. Apesar de morar hoje nos Estados Unidos, G.S., 20, estudante brasileira de psicologia na Universidade Comunitária de Triton College, optou por tratamento por videoconferência com um médico brasileiro.
Ela tem anorexia e bulimia desde os 12 anos, mas os distúrbios estavam sob controle até o início da pandemia. Com 70 kg em março de 2020, ela chegou em janeiro deste ano com 59 kg. A rápida perda de peso ocorreu pelo uso de um medicamento psiquiátrico.
No começo, experimentou o remédio das crianças em seu emprego de babá, o que acabou se tornando um vício. Além dele, passou também a fumar tabaco e maconha e a ingerir bebida alcoólica em um quadro de dependência química.
Com o tratamento, as coisas melhoraram. Ela conta que está há mais de seis meses sem se pesar e comendo de maneira mais saudável. “O triste é saber que isso não tem cura, sabe? Sempre terei que estar tomando cuidado com os possíveis gatilhos.”
Carina Gonçalves / Folha de São Paulo
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