Um general do Exército toma vacina escondido porque sabe que, para o governo a que está ligado, isso é uma heresia. Fernando Gabeira para O Globo:
Tive
um avô que comia doce escondido, fugindo das prescrições médicas.
Lembrei-me dele quando o general Luiz Eduardo Ramos confessou que tomou
vacina escondido, para respeitar a medicina e a ciência:
— Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, quero viver, pô.
As
coisas mudaram no Brasil de hoje. Um general do Exército toma vacina
escondido porque sabe que, para o governo a que está ligado, isso é uma
heresia.
O
que o general esconde é para ele o impulso de qualquer ser humano. Se
for um pouco mais longe, perceberá que está presente em todos os seres
vivos.
O
belo documentário sobre os ensinamentos de um polvo mostra suas
estratégias de sobrevivência, ora caçando um camarão, ora escapando de
um tubarão, ou mesmo colocando seus ovos em lugar seguro. Além de
sobreviver, os seres vivos tendem a perpetuar sua espécie, general.
Na
mesma gravação em que confessa sua escapada para a vida, o general Luiz
Eduardo Ramos afirma que está na luta para convencer Bolsonaro a se
vacinar também:
— Não podemos perder o presidente para um vírus desses.
Mas,
de certa forma, o general e alguns eleitores de Bolsonaro já o perderam
para o vírus desde o momento em que o presidente decidiu negá-lo.
Bolsonaro não poderia combater o que não existe, o que não é mais do que
uma gripezinha.
Um
general sensato deveria parar para pensar um pouco na história. Num
passado recente, os adversários eram postos na clandestinidade. Mas hoje
é o próprio impulso vital que se torna clandestino no interior do
governo.
Indo
um pouco para trás, encontraremos presidente que se suicidou no auge de
uma crise, mas nunca houve presidente que escolhesse o suicídio como um
estilo de vida.
Depois
de comandar o Ministério da Saúde, o general Pazuello, investigado por
negligência nas mortes de Manaus, foi a um shopping center sem máscara.
Ele
manteve um nível de obediência total a Bolsonaro, mostrando-se o aliado
fiel, aquele que marcha com seu líder ainda que seja para a sepultura.
A
travessura do general Ramos é apenas uma das pequenas brechas em que a
vida consegue penetrar o fúnebre edifício do governo Bolsonaro. Mas sua
própria confissão indica como está enterrado nesse pântano cadavérico.
Ele
não tem vergonha de querer viver como os outros seres humanos. Mas
também não se orgulha disso nem celebra o ato vital de se vacinar. É
apenas uma contingência, pô.
Aliás
a expressão “pô” é uma forma simplificada porque achamos na imprensa
que, depois de tudo por que passaram os brasileiros, ainda não podem ler
certas palavras cruas.
De modo geral, não me interessam generais que se enterram ou mesmo os que põem rapidamente a cabeça de fora.
Eles
são apenas a guarnição militar de um projeto de morte que, desvelado
para a maioria do país, certamente não sobrevive depois de 22.
O
problema é que esse projeto domina hoje o país onde vivo e se espalha
além dos mais de 400 mil túmulos que cavou com a pandemia. Ele nos
retira o Censo para que não saibamos exatamente quantos somos e que
problemas concretos temos de enfrentar. Ele nos impõe e aprova um
Orçamento com verdadeiros cheques em branco para políticos.
Enfim,
não basta conduzir um projeto de morte, mas é necessário também romper
com os elementos de orientacão e planejamento coletivos.
É
como se tivéssemos que marchar de olhos fechados para o nosso próprio
cadafalso. É um plano meticuloso que se estende à escuridão, ao imposto
sobre os livros, para que se feche também essa janela para o mundo.
Houve
um pastor que levou seus fiéis ao abismo nas Guianas. Chamava-se Jim
Jones. Mesmo para alguém como eu, que não acredita em reencarnacão, as
coincidências são assustadoras.
Durante muito tempo se pensou em suicídio coletivo, mas o que prevaleceu foi a tese do assassinato em massa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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