"Sapiens face a Sapiens", do reputado paleoantropólogo Pascal Picq, pretende desmontar ideias feitas sobre a humanidade, à luz das mais recentes descobertas científicas. Mas será que consegue? José Carlos Fernandes para o Observador:
As
tendências do mercado livreiro são imprevisíveis: tal como até ao
“fenómeno” Código Da Vinci os thrillers esotéricos sobre templários,
evangelhos apócrifos, cifras e conspirações de sociedades secretas para
dominar o mundo nunca extravasaram um círculo restrito de “iluminados”,
durante décadas, os livros de divulgação científica sobre a origem do
homem apenas suscitavam o interesse de um número restrito de leitores
com formação na área das ciências biológicas e eram quase completamente
ignorados pelas editoras portuguesas. Tudo mudou com o estrondoso êxito
de Sapiens: História breve da Humanidade, de Yuval Harari, surgido em
Portugal em 2015 (ver O macaco que se converteu em Deus)
e que chegou a um público bem mais vasto e conquistou, inclusive,
classes profissionais usualmente alheadas deste tema, como gestores,
economistas e políticos. Inevitavelmente, houve autores e editoras a
precipitar-se para este nicho de mercado e começaram a multiplicar-se os
livros que se propõem examinar a evolução humana e a forma como as
características biológicas condicionam a natureza humana e as sociedades
em que vivemos, explicar o nosso “sucesso” enquanto espécie e, no caso
de autores mais ousados, perspectivar possibilidades de evolução
civilizacional a partir do ponto em que nos encontramos.
Esta
vaga tem produzido livros instrutivos, como Encontros imediatos com a
humanidade: Uma nova visão sobre a evolução humana, de Sang-Hee Lee
& Shin-Young Yoon (ver Singularidades de um símio sem pêlo: Como evoluiu o Homo sapiens), ou Alteração primata: Como o mundo que criámos nos está a mudar, de Vybarr Cregan-Reid (ver A cadeira e outros grandes inimigos da humanidade),
livros com perspectivas estimulantes mas prejudicados por uma exposição
de ideias confusa e uma prosa inepta, como O livro dos humanos, de Adam
Rutherford (ver O que distingue o Homo sapiens das outras bestas?),
e obras de natureza especulativa ou até delirante, como Homo
biologicus: Como a biologia explica a natureza humana, de Pier Vincenzo
Piazza (ver Será a alma uma ideia obsoleta?) e as duas sequelas que Harari lançou na esteira do acolhimento entusiástico a Sapiens, Homo Deus (ver Quer tornar-se num deus? Pergunte-lhe como) e 21 lições para o século XXI (ver O que devemos ensinar aos nossos filhos? Há um guru que mostra o caminho).
Apesar
de o título Sapiens contra Sapiens: A trágica e esplêndida história da
humanidade (Edições 70) sugerir uma tentativa de colagem ao sucesso de
Sapiens, de Yuval Harari, o paleoantropólogo francês Pascal Picq não
pode ser acusado de oportunismo, uma vez que desde o início do século
XXI que publica regularmente livros sobre evolução humana e sobre a
forma como este caminho evolutivo tem moldado o nosso comportamento e a
nossa civilização.
Na
verdade, a sua bibliografia neste domínio é tão prolífica que pode
questionar-se a pertinência de somar mais um título à lista, mas também
esta reserva pode ser afastada pelo facto de os progressos recentes no
domínio da genética terem vindo a alterar rapidamente (e a baralhar) o
nosso conhecimento sobre a evolução humana. Em 2006, Picq já tinha dado
conta desses progressos em Nouvelle histoire de l’homme (editado em
Portugal três anos depois pela Temas & Debates), mas as descobertas
realizadas desde então tornaram “velha” a Nova história do homem,
justificando, na perspectiva de Picq, a publicação, em 2019 (é esta a
data da edição original), de um novo “ponto da situação” sobre a
evolução humana, que coloca especial ênfase no propósito de, à luz das
mais recentes descobertas científicas, desmontar ideias feitas sobre o
Homo sapiens e os seus “primos” do género Homo.
O
novo livro tem ainda a ambição – flagrantemente excessiva, sobretudo
quando dispõe apenas de 210 páginas com espaçamento de linhas arejado –
de analisar a evolução histórica de temas tão vastos e complexos como
mitologia, religião, filosofia, urbanismo, comércio e fluxos
migratórios, e de reflectir sobre os principais desafios que se põe ao
mundo presente em termos demográficos, sociais, tecnológicos e
ambientais.
Este
turbilhão de ideias, condimentado com referências a Karl Marx e Auguste
Comte, Teilhard de Chardin e Francis Fukuyama, Jean Piaget e Sigmund
Freud, desemboca, nas 14 páginas do capítulo “Conclusão: Uma revolução
antropológica”, onde Picq faz um diagnóstico sombrio da civilização do
século XXI: “enquanto uma parte crescente da Humanidade acede a estilos
de vida mais confortáveis, outra conhece a desqualificação”. Picq
identifica a raiz do problema no facto de o “modelo económico e social
do fim do século passado” ter induzido tão profundas mudanças que se
tornou desajustado à presente realidade. A fertilidade cai, “uma parte
da população vê a esperança de vida diminuir, ocorrendo o mesmo para o
QI e para a libido. As actividades físicas estão a reduzir-se como nunca
antes com o sedentarismo, a obesidade e o conforto. A estes aspectos
juntam-se todas as doenças civilizacionais, entre as quais as que estão
ligadas à poluição e aos estilos de vida citadinos”. Os Homo sapiens,
apurados por milhares de anos de pressões evolutivas para triunfar como
caçadores-recolectores em habitats tão diversos como a savana africana, a
floresta caducifólia europeia, a tundra siberiana, a floresta tropical
de Bornéu ou o deserto australiano, parecem encontrar-se “pouco
adaptados à ecologia urbana nos planos económico, social e de saúde,
simultaneamente” – e Picq conclui que “mais de metade da Humanidade”
entrou em “evolução negativa”.
Até
há bem pouco tempo, as maiores ameaças que o Homo sapiens enfrentou
eram de origem natural, hoje, escreve Picq, “passaram a ser de natureza
humana: doenças, indústrias, economias, urbanização, poluição”. Sem
citar fontes (como é regra ao longo de todo o livro), Picq lista, “por
ordem de preocupação decrescente”, as ameaças que impendem sobre a
Humanidade: “as consequências das alterações climáticas, as migrações
provocadas por estas e as catástrofes naturais; as fraudes maciças
relativas aos dados – os ciber-ataques e a inteligência artificial; as
catástrofes industriais; a destruição da biodiversidade; a dificuldade
no acesso à água; ou, ainda, as bolhas especulativas no campo das
finanças”. Em resumo: para Picq, o Homo sapiens é hoje a maior ameaça à
subsistência do Homo sapiens – o que explica o título do livro.
Uma das questões mais debatidas da evolução humana – e que, como seria inevitável, Picq aborda neste livro – é o que terá acontecido às outras espécies do género Homo que deambularam pelo planeta ao mesmo tempo que o Homo sapiens: o Homo neanderthalensis e o Homo denisova. Sobre os denisovianos sabe-se ainda pouco, dada a exiguidade dos vestígios encontrados, mas os neandertais estão bem documentados: eram criaturas robustas, com um volume craniano superior ao do moderno Homo sapiens e alguma sofisticação civilizacional. Picq faz questão de desmontar o estereótipo, que impregna a cultura popular, dos neandertais como uns brutamontes lerdos e obtusos e realça as suas inovações no fabrico de ferramentas, armas e adornos, as suas capacidades de expressão artística e o cuidado posto no sepultamento dos seus pares, e sugere que muitas destas prática terão sido adoptadas pelos Homo sapiens. Todavia, estes atributos, que permitiram aos neandertais multiplicar-se e espalhar-se da Europa Ocidental até à China, não impediram a sua extinção.
Esta
foi concomitante com a chegada à Eurásia de uma nova vaga migratória de
Homo sapiens, provenientes de África. Estes já tinham começado a
“infiltrar-se” na Eurásia há cerca de 300.000-200.000 anos e tudo os
“invasores” ter-se-ão casalado quer com os neandertais quer com os
denisovianos, uma vez que quer o registo fóssil quer algumas populações
humanas modernas contêm no seu material genético presença (mais ou menos
relevante, consoante as regiões) de DNA neandertal e/ou denisoviano.
A
migração de Homo sapiens para a Europa intensificou-se há cerca de
45.000 anos e foi acompanhada por um progressivo declínio da implantação
dos neandertais, que ficaram remetidos às regiões mais remotas e
agrestes da Península Ibérica, onde os últimos membros terão vivido há
cerca de 37.000-35.000 anos.
É
tentador ver uma relação causa-efeito entre a chegada do Homo sapiens e
a extinção dos neandertais, mas os elementos de que se dispõe não são
conclusivos e os paleoantropólogos têm opiniões muito diversas sobre o
assunto. Terá o Homo sapiens simplesmente ocupado o lugar de predador de
topo deixado vago por um Homo neanderthalensis em declínio devido à
incapacidade de adaptação a alterações climáticas ou sem defesa contra
novas doenças trazidas pelos recém-chegados? Ou terá o Homo sapiens
movido uma guerra implacável e sistemática contra o Homo
neanderthalensis?
Há
quem sugira que o Homo sapiens possuía uma organização social mais
harmoniosa e coesa – ou, simplesmente, mais eficaz – e foi,
paulatinamente, suplantando neandertais e denisovianos, não pelo recurso
à violência (terreno no qual os neandertais teriam vantagem, pelo menos
no domínio da força física e endurance) mas por conseguir explorar mais
eficientemente os recursos naturais pelo quais competia e conseguir
reproduzir-se mais rapidamente. Há também quem sugira que a compleição
mais possante dos neandertais, se bem que constituísse uma vantagem no
confronto físico directo, podia ser-lhes adversa em períodos de escassez
de alimentos, já que o mais franzino Homo sapiens era capaz de
sobreviver com menos calorias. A indubitável persistência de genes
neandertais e denisovianos nos Homo sapiens modernos pouco ou nada diz
sobre a natureza das relações estabelecidas entre as espécies: os
híbridos terão nascido de uma atracção mútua entre pares num contexto de
coabitação pacífica entre espécies (a hipótese mais “romântica”)? Ou
terão sido fruto de uma cultura de conquista e domínio, que dá aos
machos triunfantes o direito a servirem-se das fêmeas dos derrotados?
Tal
como a paleoantropologia não está hoje em condições de elucidar
cabalmente a forma como o Homo sapiens tomou o lugar do Homo
neanderthalensis na Eurásia, também é possível que os arqueólogos do
futuro fiquem intrigados perante as provas de que, na viragem dos
séculos XX/XXI, a relevância da cultura francesa no mundo tenha entrado
em declínio acentuado e tenha dado lugar à cultura anglo-saxónica.
Portugal é um dos países em que esta mudança de paradigma é evidente:
viveu, culturalmente, na órbita de Paris no século XIX e na primeira
metade do século XX e, a partir do final do século XX, foi ficando cada
vez mais permeável à cultura anglo-saxónica. Esta tendência é evidente
no declínio acentuado dos estudantes que escolhem aprender francês face
aos que optam pelo inglês e na origem dos livros de não-ficção que são
publicados em Portugal, e é particularmente notória no que respeita à
origem das obras de divulgação científica que são vertidas para a língua
portuguesa.
Pode
atribuir-se o avassalador crescimento da influência anglo-saxónica ao
facto de os EUA serem uma super-potência em termos de meios de
comunicação de massas, produção de conteúdos e investigação &
desenvolvimento, ao facto de o estatuto do inglês como língua franca
planetária ter sido reforçado pelo desenvolvimento avassalador da World
Wide Web. Mas há outra razão poderosa para explicar a proporção
minguante de livros de divulgação científica originários de França que
são traduzidos em português (e noutras línguas): os académicos franceses
de hoje tendem a expressar-se num registo pedante, farfalhudo, confuso,
indisciplinado e pouco rigoroso. Talvez um dia uma equipa de
sociólogos, linguistas e historiadores da ciência seja capaz de explicar
o que levou uma das Pátrias do Iluminismo a converter-se, volvidos dois
séculos e meio, no Império da Obscuridade Pomposa.
Poucas
obras oferecem prova tão evidente da tendência do académico gaulês para
se exprimir de forma arrebicada e caótica como Sapiens face a Sapiens.
Não estão em causa as credenciais de Pascal Picq como paleoantropólogo –
o que é duvidoso é que ele seja capaz de expor os seus conhecimentos e
raciocínios de forma perceptível e consequente. Sapiens face a Sapiens
combina uma ambição insensata – sintetizar, num espaço exíguo, centenas
de milhares de anos de evolução, cobrindo as mais diversas facetas da
Humanidade – com o mais completo desleixo e a mais absoluta falta de
consideração pelo leitor. Os franceses, vivendo imersos neste “caldo de
cultura”, parecem estar habituados a que um livro seja uma tagarelice
ziguezagueante, inconsequente e pedante, pelo que na Amazon.fr o livro
tem uma cotação de 4.3 em 5, apurada a partir das opiniões de 93
leitores.
Um
dos raros leitores a emitir opinião desfavorável observa que o livro é
“demasiado técnico” e emprega “um vocabulário fora do alcance do leitor
médio”. Labora num equívoco: a “inacessibilidade” de Sapiens face a
Sapiens não decorre do uso de jargão científico nem de requerer que o
leitor possua conhecimentos profundos de paleoantropologia, resulta de
Picq não saber comunicar ou de, sabendo-o, não estar para se incomodar
em estruturar argumentos e elaborar um discurso congruente. Não há uma
página de Sapiens face a Sapiens que não tenha pelo menos uma frase
ineptamente formulada, pouco rigorosa, enigmática ou tola; as tentativas
de “coloquialidade” são um fiasco; as linhas de raciocínio raramente
são desenvolvidas até ao fim; temas díspares colidem caoticamente; e
pululam afirmações grandiloquentes ou bizarras para as quais o autor não
fornece fundamentação.
Como
remate deste desleixo generalizado e como é frequente nos livros
franceses de divulgação científica, o volume não inclui índice remissivo
nem referências bibliográficas. A ausência de índice remissivo pode ser
vista como uma admissão implícita de que autor e editor não esperam que
passe pela cabeça de algum leitor usar o livro para confirmar uma
informação ou refrescar um conceito. É um livro que, uma vez terminado o
suplício de o ler, ficará fechado para sempre. Quanto à ausência de
referências bibliográficas, seria sempre reprovável num livro de
divulgação científica, mas é absolutamente inadmissível num livro que
trata temas extremamente complexos e polémicos e que têm estado sujeitos
a constante revisão à luz de descobertas arqueológicas e genéticas
recentes.
E,
todavia, não faltam leitores e críticos que parecem ter ficado muito
satisfeitos e enriquecidos com a experiência – seria interessante
confrontá-los, parágrafo a parágrafo, para apurar se perceberam e
assimilaram alguma coisa do que “leram”.
Em
França, Pascal Picq desfruta de prestígio suficiente para que se venda
bem qualquer coisa que leve o seu nome na capa, mas no meio editorial
anglo-saxónico, um autor, mesmo que credenciado, que submetesse a um
editor o manuscrito de Sapiens face a Sapiens, receberia provavelmente
uma resposta do tipo: “A colecção de apontamentos soltos que me enviou
contém algumas ideias com potencial. Crê que seria capaz de seleccionar
as mais relevantes e escrever um livro a partir delas?”.
Para
se ter uma ideia de quão remisso e desconexo é esta obra tome-se, entre
muitos exemplos possíveis, o trecho que vai das últimas linhas da
página 154 às primeiras linhas da 156.
Descrevendo
as mudanças decorrentes da transição da caça-recolecção para a
agricultura, escreve Picq que “a este aspecto junta-se a propagação das
doenças contagiosas ligadas à concentração de habitantes. A selecção
infantil encontra-se confrontada com novos factores de selecção,
nomeadamente através de escolhas alimentares mais limitadas, sem
esquecer o risco de carências”. O primeiro período é claro, mas o
segundo, embora permita intuir vagamente do que está Picq a falar (se se
estiver por dentro do assunto), é uma amálgama de ideias coladas por
uma sintaxe duvidosa.
Prossegue
Picq: “Os nossos sistemas genéticos ainda trazem essa marca no que diz
respeito a várias alergias, como o favismo, a intolerância às favas”.
Picq parece sugerir que as alergias que hoje afligem o homem nasceram
quando o homem se tornou agricultor, mas não explica a relação entre os
dois fenómenos. E introduz, sem mais explicações, o “favismo”, doença
que a esmagadora maioria dos leitores não conhecerá, nem sob esta
designação nem com o nome oficial de “deficiência em glucose-6-fosfato
desidrogenase, e que está longe de resumir a uma “intolerância às
favas”.
As
favas desaparecem imediatamente de cena, pois as linhas seguintes
tratam, de forma telegráfica e atabalhoada, da exposição dos humanos às
doenças dos animais que foram alvo de domesticação na Eurásia neste
período. No parágrafo seguinte, muda de continente: “No Novo Mundo, nas
Américas [Picq presume que os leitores sabem o que é o “favismo”, mas
teme que não saibam o que é o “Novo Mundo”], os maravilhosos
agricultores ameríndios [Picq continua a recear que não se perceba que
fala da América, pelo que especifica que os agricultores da América são
“ameríndios”; não se percebe é porque os classifica de “maravilhosos” –
seriam os agricultores chineses ou mesopotâmicos “horrendos”?]
domesticaram poucos animais – lama, porquinho-da-índia, vicunha”.
Assim
escrito, fica-se com a ideia que os ameríndios não domesticaram mais
animais por falta de interesse ou de competência, mas, como Jared
Diamond explica no crucial Armas, germes e aço, esta breve lista de
domesticações (de que Picq omitiu o peru) resulta de os Homo sapiens que
entraram nas Américas há 12.000 anos serem caçadores experientes e
extraordinariamente eficazes que se depararam com presas que não estavam
preparadas para os enfrentar, pelo que, em escassos milhares de anos,
chacinaram praticamente toda a fauna susceptível de domesticação; esta
falta de “convívio” com as doenças transmitidas pelo gado bovino e suíno
teria consequências trágicas a partir de 1492, quando os ameríndios se
viram indefesos perante as doenças de origem bovina e suína trazidas
pelos europeus.
No
final da página 155, Picq menciona um dos fenómenos mais intrigantes na
nossa história evolutiva, que é a redução da volumetria cerebral a
partir do final do Paleolítico: o cérebro “dos Sapiens do fim do
Paleolítico conta com mais de 1500 centímetros cúbicos, em comparação
com os 1340 centímetros cúbicos dos Sapiens actuais. Como se deu esta
redução e porquê? É um dos efeitos da co-evolução”. Para a maioria dos
leitores, habituada a associar automaticamente volume craniano a
inteligência e progresso civilizacional, este dado será surpreendente e
contra-intuitivo, pelo que ficará em pulgas para que Picq explique no
que terá consistido essa “co-evolução” – porém, quando se vira a página,
Picq muda abruptamente de agulhas, passando a dissertar sobre a difusão
da mutação que causou o prolongamento da actividade da enzima lactase
em humanos adultos, entre povos criadores de gado bovino, ovino e
caprino, e não volta a mencionar o fenómeno da redução do volume
cerebral até ao fim do livro. Ora, não só esta regressão na inteligência
individual (mas não necessariamente da inteligência colectiva) dos Homo
sapiens é um dos assuntos mais fascinantes da evolução humana, como a
discussão das possíveis razões para ela ter acontecido poderia iluminar o
tempo em que vivemos e, em particular, a sensacional afirmação feita
por Picq na última página do livro, de que, “mais de metade da
Humanidade” entrou em “evolução negativa”. A eventual regressão da
humanidade é um assunto sério – um dos mais sérios que é possível
imaginar-se – mas, infelizmente, Picq não está disposto a explaná-la ou
discuti-la, limita-se a afirmá-la, sem ter o respaldo de dados ou
argumentos. Não é de admirar que também não esteja interessado em
estabelecer uma associação entre a (eventual) “regressão” da
inteligência à entrada para o Neolítico e (postulada) “regressão” da
inteligência do dealbar do século XXI.
Apurar
se, no nosso tempo, a Humanidade se prepara para ascender a um patamar
superior do seu processo evolutivo – dando-nos o ensejo, segundo Yuval
Harari, de nos convertermos em semi-deuses – ou se entrou num caminho
descendente, como afirma Picq, é um magno debate que extravasa o escopo
deste artigo. Mas é impossível não reparar na multiplicação de sintomas
de “evolução negativa” e um deles é, ironicamente, que um dos mais
destacados intelectuais franceses escreva um emplastro como Sapiens face
a Sapiens, que haja editoras disposto a publicá-lo e que leitores,
crítica e comunidade académica o louvem quase unanimemente.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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