A razão, segundo um clássico conservador, não é da natureza humana a parte mais importante. William Waack via Estadão:
O presidente Jair Bolsonaro
tem conseguido manter a média de proferir quase diariamente algo que
ofenda o “bom senso” ou a “razão” no que se refere ao respeito às leis e
instituições, ao decoro do cargo, à veracidade objetiva dos fatos e à
civilidade no trato de adversários políticos – ou tudo junto. Fora entre
seus apoiadores, tem conseguido gerar um cansaço geral e o “estamos
pagando para ver” dos ministros do Supremo e dos comandantes militares.
À
espera da próxima bolsonarice o colunista pede licença para lembrar,
com nostalgia, clássicos lidos nos tempos de sua (do colunista)
juventude acadêmica na Alemanha da década dos setenta, quando dobrava
como estudante de Ciências Políticas e correspondente em Bonn do
Estadão: Hannah Arendt e Hans J. Morgenthau. São dois judeo-alemães que
escaparam da subida ao poder dos nazistas (1933) e passaram o resto da
vida nos Estados Unidos (Arendt morreu lá em 1975, Morgenthau em 1980),
cuja influência perdura hoje nas ciências sociais e nos estudos de
relações internacionais.
Sem
cair em historicismo, pode-se dizer que uma experiência de vida comum a
ambos excepcionais intelectuais os marcou para sempre. Eles viveram a
derrocada de um regime democrático e aberto, num país considerado entre
os mais “civilizados” e de “alta cultura” – a Alemanha de Weimar –,
destruído por dentro por uma corrente política que inicialmente habitava
apenas a franja do espectro político, seguidora de um inflamado orador
de cervejarias em Munique. Que chegou ao poder legalmente, pelo voto.
A
lição de vida desses pensadores pode ser resumida brutalmente na noção
de que democracias não devem ser entendidas apenas como exercício do
voto livre e direto. Ao contrário: ambos sofreram fortes ataques de
críticos que os qualificaram de “não democráticos” ou até
“antidemocráticos” por terem afirmado que a “política das maiorias” na
moderna sociedade industrializada e de massas não garante por si a
sobrevivência de um regime de liberdades individuais e estado de
direito.
Tanto
Arendt como Morgenthau assinalaram a importância do “will” (palavra
forte no inglês e mais ainda no alemão), da vontade de lideranças
políticas e da coletividade de respeitar contrabalanços ao próprio
cargo, e a estrita observância da separação entre poderes, como a única
fórmula de se preservar liberdade e respeito a direitos de minorias.
Foram enfáticos em manifestar seus receios sobre a dissolução desses
valores em sociedades abertas, especificamente a dos Estados Unidos
(cuja “excepcionalidade” ou não foi sempre uma difícil questão para
ambos).
Esse
receio parece plenamente confirmado na era atual dos populismos
empenhados no triunfo da mentira, do ódio e da manipulação cínica de
legítimos anseios, turbinados por redes sociais que se transformaram em
eficazes ferramentas de desinformação, incentivo ao comportamento tribal
e, como se viu no caso da pandemia, na disseminação de conteúdos
contrários ao conhecimento científico – o que vale tanto para os Estados
Unidos como o Brasil. Onde surfaram ou continuam surfando à testa de
governos democraticamente eleitos personagens de vários estilos
pessoais, alguns mais, outros menos asquerosos, mas igualmente
empenhados em contestar a ordem legal estabelecida (inclusive a lisura
da própria eleição).
A
extraordinária sofisticação intelectual de Arendt e de Morgenthau os
impediu de aderir a determinismos ou “fins imutáveis” (críticos
formidáveis, portanto, do marxismo). Sempre deram ênfase à ação humana
e, especialmente, às consequências não intencionais quando se trata de
decisões tomadas por agentes políticos. Ou seja, é muito comum que
políticos não saibam o que estão fazendo, em termos do que acabam
provocando com seus atos.
Parece
ter sido escrita para falar de Jair Bolsonaro a epígrafe que Morgenthau
escolheu para seu primeiro livro, Scientific Man Versus Power Politics,
retirada de um comentário do pensador conservador Edmund Burke: “a
política tem de ser entendida não pela racionalidade do ser humano, mas
pela natureza humana, da qual a razão é apenas uma parte, e de jeito
nenhum a mais importante”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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