No Brasil, só é possível auditar o processo eleitoral por meio das ferramentas e protocolos fornecidos justo por quem deveria ser auditado em primeiro lugar. Flavio Gordon via Gazeta do Povo:
“É
até irônico que essas máquinas de votar, que supostamente deveriam
resolver os problemas causados pelos sistemas eleitorais antiquados,
estejam simplesmente tornando os problemas invisíveis para o eleitor.”
(Penny M. Venetis, professora de Direito na Rutgers University)
“Se
você acredita que a tecnologia pode resolver seus problemas de
segurança, então você não conhece nem os problemas e nem a tecnologia.”
(Bruce Schneier, criptógrafo, moderador do Crypto-Gram Newsletter)
Em
2005, na Alemanha, cerca de 2 milhões de eleitores utilizaram urnas
eletrônicas para votar. Quatro anos depois, o Tribunal Constitucional
Federal considerou a eleição inconstitucional. O argumento foi o de que,
tendo sido integralmente eletrônico, sem possibilidade de auditoria por
qualquer meio físico independente, o processo violara o direito básico
de garantia de publicidade. O juiz Andreas Vosskuhle anunciou a decisão
do tribunal com estas palavras: “A eleição como fato público é o
pressuposto básico para uma formação democrática e política. Ela
assegura um processo eleitoral regular e compreensível, criando, com
isso, um pré-requisito essencial para a confiança fundamentada do
cidadão no procedimento correto do pleito. A forma estatal da democracia
parlamentar, na qual o domínio do povo é midiatizado através de
eleições, ou seja, não exercido de forma constante nem imediata, exige
que haja um controle público especial no ato de transferência da
responsabilidade do Estado aos parlamentares”.
Em
2013, a Suprema Corte da Índia tornou obrigatória a impressão do voto,
instruindo a autoridade eleitoral a adotar o sistema de votação
eletrônica de “segunda geração”, conhecido como VVPAT (Voter Verifiable
Paper Audit Trail, ou “documento de auditoria em papel verificável pelo
eleitor”), que permite auditar a apuração eletrônica por meio de uma
segunda via de registro do voto, gravado em meio distinto ao do
equipamento de votação, e acessível à conferência do eleitor. No sistema
VVPAT, quando um eleitor aperta o número de seu candidato na urna
eletrônica, é impresso um boletim de papel contendo os dados do voto,
que o eleitor pode conferir no ato. Segundo os juízes indianos, o
sistema garantiria eleições mais livres e justas, evitando
desconfianças.
Medidas
similares de recusa de votação integralmente eletrônica foram tomadas
em países como Holanda (pioneira na adoção da votação eletrônica, mas
que se arrependeu em 2007), França, México, Irlanda, Bélgica, Paraguai,
Peru e Rússia. Em todos esses, foram implementados mecanismos de
verificação externa da votação eletrônica. A preocupação com a votação
eletrônica era tão generalizada que, em 2009, o New York Times chegou a
publicar um editorial afirmando taxativamente: “Urnas eletrônicas que
não produzem um registro em papel de cada voto computado não são
confiáveis (...) Na votação eletrônica sem impressão, os eleitores fazem
sua escolha, e quando os votos são todos inseridos, a máquina computa
os resultados. Não há meios de assegurar que uma pane ou truque
intencional de um software malicioso ou de um hacker não possa ter
alterado o resultado. Se houver uma eleição muito disputada, não há como
fazer uma recontagem confiável”.
Enquanto
tudo isso ocorre no planeta Terra, as autoridades eleitorais
brasileiras, cuja soberba é diretamente proporcional à inépcia, andam
tão cheias de si que encontram tempo para debochar de quem, a exemplo
dos magistrados alemães e indianos, bem como do editorialista do NYT,
exige uma medida óbvia de transparência e confiabilidade: que o sistema
eletrônico seja passível de auditoria por meio não eletrônico. Foi o que
fez, por exemplo, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR), ao
postar no TikTok um vídeo irônico, no qual os proponentes do voto
impresso são representados como portadores de uma mentalidade
“medieval”. Exibindo uma jovem enrolada num lençol, emulando o que os
idealizadores da peça imaginam ser um traje típico da Idade Média, e
tendo ao fundo um majestoso castelo, o vídeo é acompanhado do texto:
“Quando a pessoa fala de voto impresso em pleno século 21”. Depois da
gracinha, segue a informação pretensamente séria, mas que, de fato,
parece ser a verdadeira piada: “A urna eletrônica é 100% segura”.
Antes
de tudo, convém notar o provincianismo temporal dos autores da
patacoada, que reproduzem feito papagaios o fetiche progressista segundo
o qual a passagem do tempo é sinal inequívoco de aprimoramento. Dizem
“em pleno século 21” sem corar, como se o referido século,
coincidentemente o seu próprio, tivesse algo de muito especial. Tampouco
demonstram sinal algum de vergonha ao repetir o clichê surrado que
trata “medieval” como sinônimo de “atrasado”, e que é a marca inconteste
do ignorante. Como escreve o filósofo Eric Voegelin em A Crise e o
Apocalipse do Homem, oitavo volume de sua História das Ideias Políticas:
“Ao fim do século 19, a alegada escuridão da Idade Média tornara-se o
sintoma pelo qual o semieducado podia ser diagnosticado; e, se qualquer
pessoa iluminada quisesse fazer piada sobre a escolástica, a piada
voltava-se contra essa mesma pessoa”. Ora, não é preciso ser nenhum
medievalófilo para reconhecer que na Idade Média tínhamos Agostinho e A
Cidade de Deus, Aquino e a Suma Teológica, Dante e a Divina Comédia, a
Catedral de Chartres, a ética cavalheiresca, o canto gregoriano, as
universidades etc. E, sobretudo, que não tínhamos magistrados com idade
mental inferior a 12 anos mandando postar vídeos engraçadinhos no
TikTok.
Mas
aceitemos por ora, a título de experiência mental, a lógica
reducionista do “avanço” versus “atraso” veiculada pelo material de
propaganda do TRE-PR. Nesse caso, o papel ridículo desempenhado pelo
tribunal fica mais evidente. Afinal, os idealizadores do vídeo foram
cantar de galo logo com as urnas brasileiras, verdadeiras jabuticabas
tecnológicas, as mais atrasadas dentre as urnas eletrônicas existentes
no mundo, e que, fora do Brasil, já foram abolidas por todos os países
que um dia as adotaram. Estufar o peito e posar de avançado por causa
desse cacareco é o mesmo que, nos dias de hoje, exibir-se orgulhosamente
aos vizinhos por ter adquirido um videocassete de quatro cabeças.
As
urnas eletrônicas utilizadas do Brasil são ainda da primeira geração de
equipamentos eletrônicos de votação (EEVs), surgidos nos anos 90 do
século passado. Nesses microcomputadores, o voto é exibido na tela para a
confirmação do eleitor, sendo em seguida gravado diretamente em algum
arquivo na memória digital. Encerrada a votação, a máquina apura
eletronicamente os votos e transmite o resultado digitalmente para a
central de totalização.
Na
literatura técnica internacional, esse tipo de EEV é conhecido pela
sigla DRE – direct recording electronic voting machine (“maquina de
gravação eletrônica direta do voto”). Pelo fato de que, nesse sistema, a
segurança do resultado publicado depende integralmente da
confiabilidade do software instalado na urna – que não pode ser auditada
pelo público geral, mas apenas por técnicos altamente especializados –,
a partir de meados dos anos 2000, como dissemos, as DREs começaram a
ser abandonadas por países como Holanda, Alemanha, EUA, Canadá, Rússia,
Bélgica, Argentina, México, Paraguai, Índia e Equador, que passaram a
usar EEVs de segunda ou terceira geração, respectivamente VVPAT (já
mencionado para o caso da Índia) e E2E (end-to-end verifiability, um
sistema com escaneamento). Hoje, o Brasil é o único país do mundo que
continua usando o EEV de primeira geração. Em pleno século 21!
Também
o iluminista Luís Roberto Barroso, presidente do TSE e personagem
recorrente desta coluna, achou por bem esclarecer com as luzes da razão
as mentalidades obscurantistas e medievais que – notem bem! – ainda
desconfiam do nosso sistema. Em vídeo-propaganda publicado no canal do
tribunal no You Tube (que ora conta com 22 mil dislikes contra 2,4 mil
likes), Barroso abusa das caras, bocas e slogans para afirmar que “o
Brasil tem, provavelmente, o melhor sistema de apuração eleitoral do
mundo”. O ministro exalta a agilidade com que os votos são apurados,
garantindo também que, ao longo dos 25 anos em que o sistema foi
adotado, “jamais ocorreu qualquer caso de fraude comprovada”. Diz ainda
que o sistema é plenamente auditável e que – atenção! – “qualquer pessoa
pode conferir tudo o que foi feito”. E descreve nove supostas
auditorias por que passa o nosso processo eleitoral.
Barroso
diz que jamais ocorreu qualquer caso de fraude comprovada em 25 anos de
adoção do atual sistema eleitoral brasileiro. Mas, em vez de
tranquilizadora, essa declaração só faz aumentar a desconfiança no
sistema. Porque, sendo difícil imaginar não ter havido nenhuma tentativa
de fraude em todo esse tempo, resta a hipótese de que, sim, as houve,
mas o TSE foi incapaz de identificá-las. Por outro lado, a afirmação de
que qualquer pessoa pode auditar o processo eleitoral é simplesmente
falsa. O sistema é estruturado de forma tal que só engenheiros de
sistema, técnicos de segurança da informação e programadores podem ter
alguma esperança de acessá-lo.
Como
sugerem especialistas em segurança da informação como os professores
Pedro Dourado Resende, da UnB, e Diego Aranha, da Unicamp, as nove
auditorias mencionadas por Barroso não auditam realmente as fases de um
processo eleitoral concreto de um ano determinado, mas apenas protótipos
da urna e do software utilizados. Ademais, todas dependem de uma
confiança irrestrita na autoridade eleitoral, e só funcionam com base no
pressuposto de que não há agentes internos participando de eventuais
fraudes e manipulações eleitorais, ou seja, de que os tribunais
eleitorais são, eles próprios, ambientes plenamente seguros (tese que já
se provou furada).
Ora,
o primeiro objeto de uma auditoria eleitoral deveriam ser justamente os
responsáveis pelo processo, no caso o TSE e os TREs. São eles que, como
sugere o velho adágio romano (quis custodiet ipsos custodes?),
precisariam ser auditados de maneira independente. Em vez disso,
contudo, são eles próprios que auditam e fornecem as garantias – a
confecção e operação do software, sua assinatura, lacre e depósito em
cofre – de todo o sistema. Em outras palavras: no Brasil, só é possível
auditar o processo eleitoral por meio das ferramentas e protocolos
fornecidos justo por quem deveria ser auditado em primeiro lugar.
Em
2014, recorde-se, tivemos uma eleição presidencial envolta em
obscuridade e suspeitas de fraude. Entre as 17 e as 20 horas do dia da
votação decisiva, o então presidente do TSE, ministro Dias Toffoli
(recém-delatado por Sérgio Cabral como tendo vendido sentenças
favoráveis a políticos), trancou-se numa sala com apenas 22 técnicos do
tribunal para sair lá de dentro com o resultado: uma súbita virada de
Dilma Rousseff, candidata do partido que lançou Toffoli na vida pública.
Em face das denúncias de fraude feitas por eleitores de todo o país, o
PSDB, partido derrotado, solicitou ao TSE uma auditoria do processo
eleitoral. A auditoria foi realizada por uma equipe independente de
analistas e peritos, e seu relatório, publicado no fim do ano seguinte.
Na internet, o documento está disponível na íntegra e em versão
resumida.
Na
época da divulgação, a parcela mais filopetista da imprensa noticiou,
de forma mentirosa, que a auditoria não detectara fraudes na eleição de
2014. Reproduzindo sem checar uma informação falsa de Dias Toffoli, por
exemplo, a IstoÉ cravou a fake news: “Auditoria do PSDB não encontrou
fraude na eleição de 2014”.
Mas
o relatório não dizia nada disso. Pelo contrário, suas conclusões
principais foram de que 1. o sistema eleitoral brasileiro não permitia
auditoria independente efetiva do resultado produzido; e 2. a etapa de
votação e apuração dos votos feitos nas urnas eletrônicas não podia ter
sua confiabilidade garantida devido às severas restrições impostas pela
autoridade eleitoral. Seguem alguns trechos do documento:
“Hoje,
como está claro para todas as partes envolvidas com a auditoria, os
procedimentos de perícia previstos em leis e regulamentos da Justiça
Eleitoral são insuficientes para garantia da transparência do processo
de eleições, necessitando não só de um aperfeiçoamento de métodos como,
também, de uma mudança de concepção por parte de todos aqueles que
participam diretamente do processo eleitoral... O certo é que o Tribunal
se afastou das melhores práticas e normas mundiais de auditoria sob a
concepção de que exames independentes e profundos colocariam em risco a
segurança do sistema eleitoral, afastando-se da consagrada prática de
que a transparência aumenta a segurança e reduz riscos... Ao impedir
parte relevante dos procedimentos de auditoria e ao deixar de responder
os questionamentos apresentados, a infraestrutura do TSE demonstrou
inadimplemento quanto ao seu próprio Planejamento Estratégico, portanto à
sua missão, visão e valores, além de violar as regras de governança em
prejuízo da transparência e da credibilidade do sistema eleitoral
brasileiro... Em vez de encontrar as portas abertas ao apoiar o TSE na
consecução do seu Planejamento Estratégico, no que se refere à apuração
transparente para o eleitor, a Auditoria Especial foi fortemente
limitada em suas ações e impelida de fato a se afastar da sua missão de
conduzir verificação técnica profunda sobre credibilidade,
transparência, segurança e alinhamento entre discurso e prática no
sistema eletrônico eleitoral... Essa postura de ofuscação e limitação
imposta judicialmente ou administrativamente pelo Tribunal às auditorias
se baseia em pareceres técnicos, requerimentos e pedidos que partem das
próprias áreas técnicas que precisam ser alvo de auditoria para apurar
as denúncias, tendo como resultado efetivo criar um manto de
‘inauditabilidade’ incompatível com as determinações do Poder Judiciário
e com a Administração Pública sobre transparência dos atos e apuração
das denúncias... A Auditoria Especial foi impedida de acessar livremente
e realizar os exames periciais adequados para avaliar esse sistema,
configurando, portanto, descumprimento dos órgãos técnicos do TSE quanto
ao requisito de transparência”.
Transparência
e publicidade não parecem ser mesmo o forte de nossas autoridades
eleitorais, que preferem rosnar ou fazer piadas em face de críticas e
questionamentos. Quando presidiu o TSE de fevereiro a agosto de 2018,
por exemplo, o ministro Luiz Fux chegou a dizer que, por ser ligada
apenas na tomada, a urna brasileira era tão segura quanto uma torradeira
elétrica. Fux só se esqueceu que, dependendo do uso, uma torradeira
pode não ser assim tão segura quanto parece.
No
resto do mundo, como ficou claro na decisão do tribunal constitucional
alemão, os princípios mais valorizados no que diz respeito ao processo
eleitoral são o da transparência e o da segurança. No Brasil, ao
contrário, é o da velocidade. Nossas autoridades eleitorais gabam-se
sempre, antes de qualquer coisa, da suposta rapidez com que os votos são
apurados no país. Todavia, não parecem ligar muito para a exigência de
publicidade ampla do processo de apuração. Antes que pela transparência,
o sistema brasileiro caracteriza-se pela obscuridade, pelo elitismo e
pela concentração de poder nas mãos do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), que, ademais de definir normas técnicas, desenvolver os EEVs e
operá-los para a coleta e a totalização dos votos, também acumula as
funções de comandar as eventuais auditorias, mesmo sendo ele próprio o
objeto da investigação.
Em
suma, o TSE está no comando não apenas do desenvolvimento e execução do
sistema eletrônico de votação, como também das investigações e do
julgamento sobre eventuais problemas ocorridos durante o processo
eleitoral. O tribunal investiga e julga a si próprio. Quem, em sã
consciência, pode realmente acreditar nesse tipo de auditoria? A exemplo
do STF – cujo inquérito das fake news, por violar o sistema acusatório e
reservar ao tribunal os papéis simultâneos de vítima, investigador,
promotor e juiz, foi batizado por um de seus próprios integrantes de
“inquérito do fim do mundo” –, tudo o que o TSE pode entregar ao país é
uma “eleição do fim do mundo”. Como se pode prever, 2022 não será para
os fracos!
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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