Os professores paulistas têm motivo para se opor ao retorno presencial das aulas? Sim, é claro. Mas o motivo correto, aquele que realmente causa risco à saúde desses profissionais, não é a pandemia em si. O motivo é trabalharem em um lugar chamado Brasil. Flavio Quintela para a Gazeta do Povo:
Todo
mundo tem um tio que adora contar piadas, o mais engraçadinho dos
irmãos, sempre pronto a alegrar os encontros de família. O meu tio
humorista, o Toninho, adora contar a piada do inferno brasileiro. É mais
ou menos assim, numa versão adaptada ao vocabulário pertinente a esta
coluna:
Um
infeliz pecador morreu e foi parar na porta do Inferno. Lá, um
capetinha auxiliar lhe fez a seguinte pergunta: “Queres ir para o
inferno brasileiro ou para o americano?”
“Qual
é a diferença?” “Existe um muro intransponível que separa os dois
infernos. No inferno brasileiro, terás de comer uma lata de excremento
por dia. No fim do dia, um diabo vem e te espeta no traseiro com um
tridente em chamas, e então podes dormir. No dia seguinte, acontece tudo
de novo.”
“Mas,
e o americano?” “No americano, é tudo igual, exceto pela quantidade de
excremento. Em vez de uma lata, comes apenas um pires.”
O
infeliz não pensou duas vezes e foi para o inferno americano. Chegando
lá, reparou que estavam todos cabisbaixos e tristes. Enquanto isso, no
outro lado do muro, ouvia-se um som de pagode e muitas gargalhadas. Não
se contendo, subiu no muro e chamou alguém.
“Ei,
como vocês conseguem festejar? Aqui o pessoal come um pires de
excremento e vive triste, enquanto vocês comem uma lata e vivem dando
risada!”
“Bom,
é que aqui é o inferno brasileiro. Um dia falta lata, no outro falta
excremento, às vezes o diabo bate o cartão e sai sem espetar ninguém… E a
gente vai levando!”
Depois
que João Doria incluiu as escolas na lista de serviços essenciais e
prometeu o retorno presencial às aulas dentro de duas semanas, inúmeros
professores se manifestaram a respeito nas redes sociais, a grande
maioria em discordância.
Na
Flórida, meu filho retornou às aulas presenciais em agosto de 2020. Ele
usa máscara o tempo todo e a escola tem uma política rígida de controle
de sintomas. Todos os dias, preenchemos um boletim através de um
aplicativo, dizendo se ele está tossindo, se teve febre, se tem coriza,
se reclamou de alguma dor no corpo etc. Durante o dia, as crianças lavam
as mãos diversas vezes, e não há interação entre classes.
Dessa
forma, em oito meses, tivemos apenas uma suspensão de aula por uma
semana, pois o pai de um dos coleguinhas do Benjamin testou positivo
para Covid. Em todo o restante do tempo ele teve aula normalmente, e em
junho encerrará o ano letivo sem nenhum atraso no currículo. Nós, pais,
pudemos retomar nossa rotina de trabalho que, com crianças em casa, fica
bastante comprometida. No entanto, caso tivéssemos optado pelas aulas
on-line, não haveria problema nenhum. Ele receberia um computador e
poderia fazer tudo de casa.
Os
professores paulistas têm motivo para se opor ao retorno presencial das
aulas? Sim, é claro. Mas o motivo correto, aquele que realmente causa
risco à saúde desses profissionais, não é a pandemia em si. O motivo é
trabalharem em um lugar chamado Brasil. Como já disse em artigo recente,
o Brasil não é o país do planejamento. A piada é bobinha, mas é bem
verdadeira: sempre falta alguma coisa ou alguém. Todos acompanhamos
atônitos a situação em Manaus, quando houve a falta de oxigênio nos
hospitais da capital. Em outros lugares, faltaram seringas, faltaram
medicamentos, faltaram leitos de UTI e faltou gente qualificada. Não
seria no campo da educação que a falta de planejamento daria lugar à
excelência.
Os
professores paulistas enxergam o retorno às aulas como um bilhete para a
UTI mais próxima (ou, mais realisticamente, para algum corredor cheio
de macas). Eles sabem que não haverá um controle rigoroso do estado de
saúde de cada aluno. Sabem que haverá alunos sem máscara em sala de aula
e que, dependendo da localização da escola, nem sequer poderão
obrigá-los, sob pena de correrem um risco de morte maior que o imposto
pela pandemia. Pode parecer chocante a algumas pessoas, mas esses são os
mesmos professores que não podem impedir que um aluno use o celular no
meio da aula porque ele é protegido pelo chefe do tráfico local. Eles
sabem também que os prédios não têm espaço para um distanciamento maior
entre alunos, e que muitos virão para a aula já pré-empacotados no
transporte público. Por saber disso tudo e de muito mais, eles têm medo.
Não
sou especialista no assunto, mas considero a abertura bem planejada de
escolas algo compatível com o combate à pandemia. É o que tenho visto em
minha região, onde um conjunto de medidas e iniciativas tornou o
processo mais seguro e ajudou a recolocar as pessoas em seus empregos.
As escolas precisam reabrir, as crianças precisam voltar às aulas. Não
vejo como argumentar contra isso. Mas, como sempre, existem maneiras e
maneiras de se implementar essa volta. Até o momento, o Brasil fez tudo
errado nessa pandemia. A lógica diz que o retorno às aulas não será
diferente, pelo menos na rede pública.
Tenho
amigos com filhos em boas escolas particulares de São Paulo que me
mostraram uma realidade muito parecida com a que temos aqui. Estruturas
de controle em minigrupos de alunos que não interagem entre si,
possibilitando um rastreamento eficiente em caso de contaminação,
prevenindo um fechamento completo em caso de algum parente ou mesmo um
aluno testar positivo para a Covid. Fazer um controle desses não é
nenhum privilégio de mentes superiores. Pelo contrário, há receitas já
testadas que podem ser implementadas em outros lugares. Essa, portanto,
deveria ser a exigência dos professores para voltar a ensinar. Não é
realista querer esperar o fim da pandemia, mas é totalmente realista
exigir medidas que garantam a segurança de alunos, professores e
funcionários.
Uma coisa é certa: ninguém estará seguro no inferno brasileiro. E, dessa vez, não vai ter festa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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