Pode dar certo um governo que se caracteriza pela falta de atitudes racionais? Denis Rosenfield para o Estadão:
O
cenário nacional é de tempestade perfeita: descontrole fiscal, baixo
crescimento, aumento da inflação, alta dos juros, aproximadamente 14
milhões de desempregados, sem falar nos subocupados, no medo
generalizado da covid-19 e de uma cifra de mortes de mais de 300 mil
pessoas, em crescimento acelerado. Para coroar o quadro, um presidente
descontrolado e irresponsável, que nem ideia tem do abismo em que
estamos entrando. E como desgraça pouco é bobagem, a alternativa
política que se está desenhando, graças ao Supremo Tribunal, é o retorno
de Lula à cena política.
A
dificuldade de compreensão do presidente Bolsonaro reside em que seu
comportamento, suas ações e declarações não se orientam pela
normalidade, pela racionalidade que julgaríamos comum em atitudes
políticas. Ele se pauta pela irracionalidade, pela destruição e pela
morte. Sua previsibilidade só se dá se seguirmos esses critérios, e não
os da razão, do equacionamento da violência (ataques e agressões), da
vida. Ele tem uma tendência incontida, diria incontrolável, a seguir
comportamentos destruidores, até de acordos por ele mesmo celebrados,
ainda que este rompimento lhe seja prejudicial em médio e longo prazos.
Sua
estrutura psicológica se organiza em torno de seu núcleo familiar, a
saber, seus filhos, que lhe conferem apoio e união, sempre e quando,
evidentemente, seja reconhecido como o pai e o mestre. Sua coesão
interna na destruição e na morte está baseada na consideração do outro,
qualquer que seja, como estranho e, por via de consequência, como um
inimigo potencial, seja ele fático ou imaginário. Isso se traduz
igualmente pela instabilidade na consideração dos “amigos”, sempre
provisórios e transitórios, tratados com desconfiança. Foram vários os
seus “amigos” que passaram a ser “inimigos”. Eis o que o faz sempre
privilegiar os filhos, por mais que eles possam estar emaranhados em
ilícitos ou simples idiotices, que terminam tendo repercussão nacional.
Outra
versão de seu comportamento irracional consiste em seu completo
desprezo pelo outro, em seu sentido genérico, aplicável não apenas aos
de seu círculo político, mas aos brasileiros em geral. Sempre tratou as
vítimas da pandemia sem nenhuma compaixão, utilizando a “ironia” como se
fosse uma gracinha. Seus impropérios foram múltiplos. As pessoas
adoecem, sofrem e morrem sem uma palavra sequer de apoio do
representante máximo do País. Até hoje não visitou nenhum hospital, não
viu a morte com os próprios olhos, restringiu-se ao seu gozo distante.
Um presidente normal mostraria sentimentos morais, exibiria compaixão,
emprestaria palavras de apoio e solidariedade.
Logo,
ao bem público é reservado uma posição completamente secundária, pois o
mais importante consiste na proteção da família e em sua permanência no
poder, apostando na eleição e flertando com o desrespeito à ordem
institucional. O presidente e sua família agarram-se de todas as
maneiras à preservação dos seus interesses e à conservação de sua coesão
psicológica. Sua única política conhecida é a do ataque, por mais,
reitero, que isso possa ser-lhes prejudicial em longo prazo. A
satisfação é tirada do projeto imediato, de pequenas conquistas e do
aplauso grotesco de seus apoiadores fanatizados. Não entra em linha de
consideração o que é melhor para o País, deixando situação econômica e
social se desagregar cada vez mais. O projeto, vendido nas eleições, de
uma pauta liberal já está completamente “vendido”, não mais corresponde
aos seus interesses familiares. Foi apenas uma encenação eleitoral.
O
caso mais escandaloso dessa política da morte é o tratamento dado à
pandemia. As cenas são aterradoras. O tratamento precoce proposto,
desautorizado em todo o mundo, não defendido por nenhuma comunidade ou
instituição científica no planeta, é apresentado aqui como poção mágica.
Trata-se de campanha sistemática contra a vacina, traduzida por
postergações enormes, apesar de que, agora, por queda abrupta de
popularidade ameaçando seu projeto de poder, ela começa a ser revertida.
E o é pela impostura, pois a vacina de aplicação preponderante e
amplamente majoritária, a Coronavac, é toda ela obra do governador João
Doria. Aliás, não faltaram discursos presidenciais contra a “vacina
chinesa”. Isso para não falar na ausência de leitos em unidades de
tratamento intensivo, na falta de oxigênio, em atrasos, erros de envio, e
assim por diante, além do boicote aos governadores. Fosse uma política
racional, nada disso teria acontecido, só a irracionalidade explica a
conduta presidencial e governamental.
De
nada adianta agora fazer uma encenação de união nacional, na qual nem
os participantes acreditam. Criar um comitê é ao mesmo tempo nada
pretender fazer, quando mais não seja pelo fato de seu objetivo ser
somente compartilhar a sua irresponsabilidade. Em vez de uma escolha
técnica para Ministro da Saúde, optou novamente por uma opção familiar,
multiplicando ainda mais os conflitos políticos. Pode dar certo um
governo que se caracteriza pela ausência de comportamentos racionais?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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