A Constituição cidadã? A do Ulisses? Não acredito que vocês estão lendo aquela estrovenga. A crônica de Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta:
Me
aproximo da mesa dos intelectuais. Entre goles de cerveja quente e com
os dedos sujos de torresmo, eles conversavam. Ao me verem, contudo,
paira aquele silêncio constrangedor que é o terror de nós, os chatos.
Percebo e tento desbaratinar com o manjado discurso autodepreciativo.
Disfarça que o assunto da conversa chegou. Aquela coisa. E vou me
sentando, como se minha presença não fosse o incômodo que evidentemente
é.
- A gente tava falando da Constituição.
- A Constituição cidadã? A do Ulisses? Não acredito que vocês estão lendo aquela estrovenga.
-
Viu? É por isso que a gente não gosta de você – diz um deles, com mais
honestidade do que o desejável. – Sempre fechado no seu mundinho de
escritores russos. Tem que ler a Constituição, cara. A
Cons-ti-tu-i-ção-do-Bra-sil-sil-sil.
Digo
que não consumo literatura de massa e todos na mesa reviram os olhinhos
por trás de seus óculos fundo-de-garrafa. Como se eu não estivesse ali,
eles retomam a conversa. Um diz que a Constituição é melhor que Stephen
King – o que, convenhamos, não é tão difícil. Outro conta que teve de
dormir com a luz acesa depois de ler certas partes.
Sobre
a mesa do bar, vejo um exemplar do livrinho. Já todo amarfanhado, com
orelhas de burro e a tradicional capa com marcas de café e gordura.
Enquanto meus amigos debatem o papel do Tribunal de Contas da União na
relação harmônica entre os poderes, pego o exemplar e, na folha de
rosto, leio a dedicatória. “Para Xande, que gosta tanto de mesóclises
quanto de incisos. Com admiração, DT”.
Por
um instante, me perco refletindo sobre a existência improvável, mesmo
nesse infinitão de meu Deus, de alguém que goste muito de mesóclises e
de incisos. É quando ouço, por alto, a conclusão de um dos intelectuais.
“A Constituição é a melhor obra do gênero escrita desde 1967. Quem não
leu é bobo, feio e cara de mamão”. Recebo aquilo como uma ofensa e
tasco:
-
Oquei. Vocês venceram. Vou ler a Constituição – declaro para a mesa. Os
intelectuais me olham e, como se eu não estivesse saindo de fininho com
a Constituição debaixo do braço, continuam o acalorado debate sobre
essa obra-prima da literatura jurídico-policial, escrita por algumas
centenas de constituintes inspirados por Dona Democracia, a maior diva
que as letras tupiniquins já viram desde Clarice Lispector.
Os perpetradores de sempre
Quem
diria. Logo eu, que jamais aderi ao modismo de Harry Potter ou Elena
Ferrante, passei aquela noite virando página após página da Constituição
do Brasil. E não poderia ser diferente. Esse tipo de livro é pensado
para nos fazer continuar lendo, a despeito das pálpebras pesadas e da
hora avançada.
Logo
na primeira página, no preâmbulo, sou apresentado à narrativa densa e à
linguagem marcada pelo humor e tensão. Quem quer que tenha escrito, sob
inspiração da Dona Democracia, aquela frase cheia de vírgulas e
palavras vazias, tomando o cuidado para incluir Deus apenas como um ser
protetor, é um gênio do terror jurídico.
A
trama começa a pegar fogo logo ali no capítulo 2, com as múltiplas
redações do que constituem ou não direitos sociais – alterações feitas
para incluir até alimentação (que vem antes do trabalho), a moradia e o
transporte. Sim, o transporte! Dona Democracia, neste ponto da história,
começa a desenhar o crime perfeito que nós, leitores, ansiamos
desvendar na última página: quem sequestrou (e possivelmente matou) o
Brasil.
Com
as unhas completamente roídas, viro folha após folha. Paro nos artigos
que tratam dos servidores públicos, seus deveres mínimos e privilégios
máximos, viro para minha mulher e digo que não acredito, não é possível,
muitos pontos de exclamação no ar. Ela, que no momento lia “O Último
Suspiro do Mouro” (não confundir com a sátira “O Último Suspiro do
Moro”) concentradíssima, quase morre do coração.
- Você tem que ler esse livro – digo. – É incrível!
- A Constituição?! Tem certeza?!
Respondo
que sim, pigarreio e uso meus parcos dons dramáticos para ler, com a
devida carga emotiva, a parte da Constituição que fala da divisão dos
poderes. Minha mulher larga o Rushdie e arregala os olhos. E eu leio e
leio em voz alta e minha garganta já está seca quando o capítulo acaba e
ela está sem palavras. Boquiaberta, de queixo caído, perplexa,
abismada, atarantada, atônita, atordoada, aturdida, embasbacada,
estarrecida, estupefata. E pasma. Apesar do adiantado da hora, me
levanto para tomar um café e anuncio: atravessarei a noite, se for
preciso.
- Tem certeza? Você precisa trabalhar amanhã.
- Sim, mas antes preciso descobrir quem sequestrou o Brasil.
Ela
vira para o lado e pega no sono. Continuo a leitura, o coração
disparado. O mistério perde um pouco de força na Seção IX, que trata da
fiscalização contábil, financeira e orçamentária. Nesta hora, quase
durmo. Quase. Porque logo em seguida leio sobre as responsabilidades do
Presidente da República e me obrigo a perseverar. A trama fica mais e
mais complexa.
Entram
em cena o STF (eternos suspeitos), a Justiça do Trabalho (parte mais
hilária do livro) e até uma gangue de artigos sobre impostos. Avanço
para as seções ou capítulos ou partes ou sei lá como se chama sobre as
políticas agrícolas, a saúde, a previdência e até os índios.
Ao
adentrar o fatídico TÍTULO IX”, que trata DAS DISPOSIÇÕES
CONSTITUCIONAIS GERAIS, me pergunto por que os constituintes, inspirados
por Dona Democracia, gostam tanto de gritar. E também se, a despeito de
todas as facadas, tiros e esganaduras que recebeu, o país sobreviverá
ao cativeiro. Lá fora o dia nasce. Falta pouco, muito pouco para saber
quem sequestrou e matou (?) o Brasil, grande vítima desse complô todo.
Leitor experiente de Agatha Christie e Georges Simenon que sou, desvendo
o mistério pouco antes do último parágrafo.
- Pequepê! - grito para a manhã silenciosa pós-toque de recolher. A mulher acorda assustada, mas curiosa.
- E aí? Descobriu quem sequestrou o Brasil? Quem foi? Conta! Conta!
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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