Os casos de Ryan Anderson e Donald McNeil Jr. mostram que, no tribunal das políticas identitárias, os “crimes” jamais prescrevem. Editorial da Gazeta do Povo:
O
Congresso norte-americano está prestes a votar um projeto de lei que
segue os passos da equivocada decisão do STF brasileiro ao simplesmente
equiparar a homofobia ao racismo. O Equality Act altera a Lei dos
Direitos Civis, de 1964, para acrescentar “orientação sexual” e
“identidade de gênero” entre as categorias merecedoras de proteção
especial. Mas a lei não se limita ao justo e necessário combate à
discriminação contra homossexuais ou pessoas transgênero: assim como a
decisão judicial brasileira, ela deixa enormes brechas para ataques às
liberdades de expressão e religiosa, bem como ao exercício da objeção de
consciência. A crítica à ideologia de gênero ou à participação de
homens biológicos no esporte feminino poderiam levar à responsabilização
judicial.
Enquanto
o Equality Act não é aprovado, os censores já agem por conta própria. É
o caso da gigante Amazon, que deixou de vender o livro When Harry
became Sally: Responding to the transgender moment, de autoria de Ryan
Anderson, presidente do Ethics and Public Policy Center (EPPC) e
ex-pesquisador da Heritage Foundation. Não se trata simplesmente de uma
obra esgotada; a página referente ao livro, que permitiria também a
compra das versões eletrônica (para o e-reader Kindle) e audiolivro, foi
retirada do ar. A obra, lançada três anos atrás, em fevereiro de 2018,
apresenta uma série de argumentos dos mais diversos tipos, dos
biológicos e psicológicos aos filosóficos e antropológicos, em
contestação aos defensores da ideologia de gênero e da facilitação de
terapias de mudança de sexo, mas sem jamais incitar discriminação contra
nenhum grupo de pessoas. Segundo Anderson, nem ele, nem a editora foram
avisados da decisão da Amazon, contrariando as próprias diretrizes da
loja, e até o momento não receberam nenhuma explicação; veículos de
imprensa que entraram em contato com a Amazon também ficaram sem
resposta.
“Isso
não é sobre o modo como você diz, não é sobre quão rigorosa é a sua
argumentação, não é sobre o quão caridosamente você apresenta as ideias.
É sobre se você discorda da nova ortodoxia”, afirmou Anderson. Essa
caça aos dissidentes poderia ter pouco efeito caso se tratasse de uma
livraria de bairro, como afirmou Anderson em artigo no site First
Things, mas que muda de dimensão quando quem comete a censura é
responsável por 83% das vendas de livros em um país. Daí a
inaplicabilidade, no caso em questão, do argumento liberal segundo o
qual a Amazon, sendo uma empresa privada, pode decidir o que deseja
vender. Especialmente quando toma suas decisões de forma contraditória,
já que a gigante do varejo segue vendendo inúmeros livros que
indubitavelmente seriam classificados como discurso de ódio ou que
serviram de base para as ideologias mais assassinas das últimas décadas.
Anderson
não é a única vítima recente da polícia do pensamento e da linguagem.
Em mais uma prova de que, no tribunal das políticas identitárias, os
“crimes” jamais prescrevem, um veteraníssimo repórter do New York Times
foi obrigado a se demitir por causa de um episódio ocorrido em 2019. O
jornal promoveu uma viagem ao Peru com estudantes de ensino médio, e
Donald McNeil Jr. os acompanhou. Em determinado momento, como ele mesmo
relata, foi perguntado por uma estudante se uma colega deveria ter sido
suspensa do colégio por causa de um vídeo feito quando ela tinha 12 anos
(ou seja, bem antes de entrar no ensino médio) e no qual usava uma
injúria racial – McNeil não diz qual, mas trata-se de nigger
(“crioulo”), que efetivamente é considerado um insulto pesado nos
Estados Unidos. O repórter, então, quis saber o contexto no qual a
palavra tinha sido usada: a garota estava citando alguém, um trecho de
livro, uma letra de música, ou tinha a explícita intenção de ofender? E,
ao pedir mais informações, acabou ele mesmo dizendo a “palavra
proibida”.
Ora,
ninguém com uma capacidade mínima de interpretação de texto julgaria
que McNeil estivesse sendo racista na ocasião; ele apenas queria saber
mais sobre a situação em que a garota suspensa usou a palavra nigger.
Não bastou para a direção do jornal, que, em um ato digno dos
totalitarismos soviético ou chinês, não apenas “convenceu” McNeil a se
demitir, como também arrancou dele um pedido de desculpas incrivelmente
constrangedor.
No
texto dirigido aos colegas, McNeil afirmou que “originalmente, achei
que o contexto em que usei essa palavra horrível poderia ser defendido.
Agora percebo que não pode. Ela é profundamente ofensiva e dolorosa. O
fato de eu até mesmo pensar que poderia defendê-la exibiu um julgamento
extraordinariamente ruim”. E encerra dizendo “sinto muito. Eu
decepcionei todos vocês”. Um “julgamento extraordinariamente ruim”, na
verdade, é o daqueles que acreditam que o contexto não importa ao se
julgar o uso de uma expressão considerada insultosa. Tanto é assim que o
editor-executivo Dean Baquet acabou recuando da regra “não toleramos
linguagem racista, independentemente da intenção”, escrita no comunicado
sobre a demissão de McNeil. Mas, àquela altura, já era tarde demais
para o repórter veterano.
Mas
entre os dois casos há uma diferença crucial. Anderson sabe muito bem
que foi vítima de uma injustiça e reagiu contra ela; McNeil aceitou até
mesmo a autoimolação, o que levou muitos a questionarem os motivos de
tal atitude. Se o jornalista, no fundo, sabe que nada fez de errado, que
não estava sendo racista, e mesmo assim aceitou confessar um
preconceito deplorável, ele se rendeu à polícia do pensamento de uma
forma que, até pouco tempo atrás, só existia em distopias como 1984, de
George Orwell. No entanto, se ele está mesmo convencido de que agiu mal,
isso significa que já se chegou a um estágio de degradação intelectual
extremamente preocupante. Pessoas supostamente sensatas se tornaram
incapazes de fazer distinções básicas, aderindo a tabus linguísticos a
ponto de a autocensura para não ofender a militância do momento já se
tornar automática. Difícil saber qual das duas hipóteses deveríamos
considerar pior.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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