As máscaras ajudaram? O distanciamento social também? Sim e sim. Mas não há como ignorar o fato de que, entre aquele que poderia ter sido o vetor que espalharia a doença e outras quatro famílias, havia uma vacina. Leonardo Coutinho para a Gazeta do Povo:
Na
sexta-feira passada, meu filho adolescente passou a tarde com quatro
amigos. Zanzaram pela cidade, pegaram metrô e terminaram o programa
jantando juntos. Hambúrgueres, asas de frango encharcadas de molho
barbecue e muita prosa depois de dias sem se encontrar e da neve que
manteve quase tudo ainda mais trancado. Meia hora depois de chegar em
casa, depois daquela tarde movimentada, ele desceu as escadas com os
olhos arregalados. Um dos amigos havia acabado de ligar para informar
que a professora de balé da irmã tinha diagnóstico de Covid-19. Ou seja,
os garotos passaram a tarde e o início da noite juntos e expostos a uma
pessoa que esteve em contato permanente com alguém que podia estar
contaminado. Por mais que tenham usado máscaras, havia todos os
ingredientes para algo dar errado. Logo depois da notícia de que o
coronavírus poderia ter chegado dentro de nossa casa, ele revelou que
restava torcer para a vacina funcionar. Apesar de ter apenas 17 anos, o
amigo já havia recebido as duas doses de uma das vacinas disponíveis
aqui nos Estados Unidos. Um ponto fora da curva por ele trabalhar em
meio período em uma instituição que abriga idosos. Como havia dito meu
filho. Restava confiar na vacina.
Foram
cinco dias com todo mundo usando máscaras dentro de casa e, na medida
do possível, isolamento. A receita foi repetida nas outras três
famílias, principalmente porque, já no domingo, os pais do amigo também
testaram positivo para Covid-19. Diante do quadro de contaminação geral
na casa do rapaz, mais do que nunca restava confiar na vacina.
Nesta
semana, os outros três garotos potencialmente expostos ao coronavírus
também foram testados. Todos deram negativo. As máscaras ajudaram? O
distanciamento social também? Sim e sim. Mas não há como ignorar o fato
de que, entre aquele que poderia ter sido o vetor que espalharia a
doença e outras quatro famílias, havia uma vacina.
Não
faltam explicações sobre a relevância de o maior número de pessoas
serem vacinadas para frear o alastramento de uma doença. Obviamente, as
vacinas não são capazes de garantir 100% de eficácia. Mas, bem na
prática, vivi nos últimos dias o compasso de espera de quem só não pegou
a doença, porque entre o vírus e minha família havia uma pessoa
vacinada.
Suponhamos
que o rapaz tivesse sido contaminado e transmitido para os quatro
amigos. E se esses amigos tivessem levado a doença para suas famílias.
Teriam ocorrido pelo menos outras dezoito infecções apenas nos círculos
familiares. Uma única pessoa vacinada protegeu facilmente mais algumas
dezenas de pessoas, já que cada um daqueles potenciais doentes poderia
ter interagido com mais pessoas.
A
América do Sul parece já ter se livrado de seu pior momento desde o
início da pandemia. O Brasil, por sua vez, ainda enfrenta o pico da
segunda onda por suas complexidades regionais que produzem picos em
momentos diferentes em cada parte do país, que vão estendendo a duração
do período mais crítico do surto.
Na
região, como em toda a América Latina, a batalha pelas vacinas virou a
pauta central, onde todo mundo mira o sucesso do Canadá, no Norte, e do
Chile, no Sul. Exemplos não tão exemplares assim.
Os
canadenses assinaram contratos de compra de 400 milhões de doses – nove
vezes mais que o necessário para imunizar sua população de 38 milhões
de pessoas. E até agora aplicou apenas 1,7 milhão de doses, menos de 22%
que o Brasil já foi capaz de aplicar até o dia 25 de fevereiro. Em
termos per capita, os números canadenses melhoram, mas não se distanciam
muito da realidade brasileira.
O
Chile é uma belezura. No dia 24, o país apresentava uma taxa de
vacinação de 16%, mais que o dobro da Europa (7%) e quase quatro vezes
maior que a do Brasil (3,6%). Mas os números absolutos explicam o
sucesso chileno. Com 19 milhões de habitantes, o Chile tem uma população
menor que a da Região Metropolitana de São Paulo, onde vivem mais de 22
milhões de habitantes. Escalas incomparáveis, entretanto.
China
e Rússia, que estão fazendo maior barulho para vender suas vacinas pelo
mundo, não têm sido capazes de produzir doses nem para sua população.
Segundo o último dado disponível da China, em 9 de fevereiro, apenas
40,5 milhões de chineses foram imunizados. Entre os russos, menos de 4
milhões já haviam recebido a vacina.
Há
elementos suficientes indicando a incapacidade dos fabricantes
entregarem as doses acordadas até para quem chegou na frente, como os
canadenses. Mas, a pandemia provocou um efeito colateral improvável:
cegueira. Quase ninguém consegue enxergar que não existem vacinas
suficientes e que o vale-tudo por elas pode sair muito caro.
O
exemplo do amigo do meu filho se tornou, em meu microcosmo social, a
evidência de que boas vacinas serão capazes de nos proteger e nos
permitir recuperar a vida normal. Mas é preciso disponibilidade.
Potências como Alemanha e França aplicaram até agora menos doses que o
Brasil. E não significa que nosso país está bem. É um indicativo de que
todos estão em uma fila que não anda.
Quando
o Supremo Tribunal Federal autoriza estados e municípios a negociar
vacinas isoladamente, inclusive com produtos não aprovados, apenas abre
as porteiras para o lobby internacional, a manipulação de governos como o
chinês e o russo e pavimenta o caminho para uma praga típica de
contratos emergenciais: a corrupção.
Não falta vontade no mundo. Faltam vacinas. Infelizmente.
Os
esforços devem ser para que mais casos, como o do amigo do meu filho,
se alastrem pelo mundo. Ele foi imunizado. O corpo dele deixou de ser
uma arma silenciosa e se transformou em uma barreira que protegeu seus
amigos e suas famílias. Mas não foi qualquer vacina. Não deve ser
qualquer vacina. Não pode ser de qualquer forma. A pandemia vai passar e
o que ficará depois dela?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário