Gerald Posner, que escreveu um livro sobre o "Anjo da Morte" e sobre os filhos de nazistas, conta que o alemão reclamava o tempo todo no fim da vida, nos subúrbios de São Paulo. Entrevista ao Estadão:
Situação
econômica ruim, sociedade vivendo com medo e ódio disseminado. Esses
foram alguns dos elementos, segundo o jornalista e autor do livro Os
filhos de Hitler, Gerald Posner, que levaram ao surgimento e
fortalecimento do nazismo. Após conversar com filhos de nazistas do alto
escalão ou que atuaram em campos de concentração, Posner encontrou
histórias de pessoas que tentam compensar os crimes cometidos pelos
pais, mas também se surpreendeu ao ver que muitos ainda defendem as
atitudes dos pais. Um de seus objetos de estudo foi Josef Mengele, que viveu no Brasil e, segundo Posner, não gostou.
Qual a importância do seu livro atualmente (lançado este ano no Brasil pela editora Cultrix), já que foi escrito em 1991?
Não
há novidades nessas histórias, mas a importância das lições delas
continua. Muitos entrevistados defendem o que os pais fizeram. Eles
ainda acreditam que os pais estavam trabalhando por algo bom e
necessário, é surpreendente.
Por que escrever o ponto de vista dos filhos de nazistas?
Mais
do que falar da perspectiva dos nazistas e questionar “como você
justifica o que fez”, eu estava interessado em mostrar que essas pessoas
podiam ser monstros no que faziam e, ao mesmo tempo, pais afetuosos.
Como jornalista eu achava muito simples dizer que eles eram apenas
monstros, queria entender o que leva essas pessoas a fazerem isso. E ter
essa análise nos faz perceber o quão complexo é entender o que leva
essas pessoas a fazerem o mal, às vezes até mesmo suas famílias não
entendem.
Qual foi a reação desses filhos após a publicação do livro?
Alguns
deles ficaram felizes porque era a primeira vez que falavam
publicamente sobre o assunto e sentiram alívio. Quando estava preparando
o livro eu não contei aos entrevistados quem mais estaria na relação
dos filhos. Quando o livro foi publicado, Wolf Hess (filho de Rudolf
Hess) ficou chateado de estar no mesmo livro de filhos de nazistas de
baixo escalão. Mesmo depois da guerra, ainda há reações de que aqueles
nazistas estavam lutando por um ideal, que não têm sangue nas mãos.
Você acredita que alguns deles apoiaria um regime nazista hoje?
Para
alguns deles, como o filho de (Josef) Mengele, Rolf, há uma questão
muito forte de responsabilidade social. Sei que ele foi favorável a
abrir as portas da Alemanha para quantos imigrantes pudessem entrar no
começo da guerra síria. Ele sempre dizia “meu pai cometeu esses crimes e
eu não posso estar ao lado das pessoas que dizem não entrem nesse
país”. Mas sei que outros, como Wolf Hess, que está morto agora,
estariam na linha de frente contra a entrada de muçulmanos no país. Eu
não ficaria surpreso se alguns adotassem medidas de extrema direita
sobre imigração.
Por que mostrar os generais nazistas em situações comuns e não durante atos criminosos?
Acredito
que é muito importante entender o contexto, o que motivou os atos. Você
não precisa concordar com um posicionamento para tentar entendê-lo. Se
você entender, pode combater melhor. Há anos, quando eu trabalhava na
biografia de Mengele, muitos me disseram ‘ele era um monstro, um
sádico’. Mas não é tão simples. Se não tivesse ocorrido a 2.ª Guerra,
muitos daqueles pais não teriam necessariamente se tornado serial
killers, poderiam ter uma vida normal, Mengele por exemplo poderia ter
vivido em uma pequena vila alemã. Não sabemos a capacidade de cada um de
cruzar a linha e cometer o mal. Nos EUA, com a quantidade de ataques a
escolas por exemplo, 9 em cada 10 casos os vizinhos do atirador diziam
“ele parecia tão normal, amável”. Quando falamos do nazismo, os crimes
cometidos são tão horríveis que pensamos que os autores eram pessoas
horríveis o tempo todo. Mas muitos nazistas voltavam para casa no fim do
dia e se sentavam com a família como se não tivessem comandado um
massacre pela manhã. É assustador.
Como foi investigar a passagem de Mengele pelo Brasil?
Comecei
meu trabalho em 1981 e pensava que Mengele estava vivo em algum lugar. E
todos pensavam que ele estava no Paraguai por causa do (ditador
Alfredo) Stroessner. Mas agora sabemos que Mengele se mudou para o
Brasil com a ajuda de austríacos e húngaros. Ele passou o restante da
vida no Brasil e morreu aí em 1979, mas tudo veio à tona em 1985. E algo
super interessante dessa história, e fiquei sabendo por meio do filho
dele, que ele escreveu nas cartas para a família que odiava viver no
Brasil. Odiava viver em uma sociedade multicultural, odiava o fato de a
família ter voltado para a Alemanha enquanto ele tinha que fugir. No fim
da vida, nos subúrbios de São Paulo, ele reclamava o tempo todo. Eu
fiquei feliz de saber disso porque ele não passou um dia na cadeia, mas
foi uma punição para ele viver numa sociedade multicultural, o que ele
tanto combateu.
Como você vê o aumento do extremismo?
Sem
dúvida a gente vê um aumento do extremismo de direita e de esquerda na
Europa e nos EUA também. Isso mostra que os sentimentos antigos de ódio,
as teorias da conspiração, isso vive. O extremismo cresce com base no
medo, em antigos estereótipos. Quando as coisas estão financeiramente
ruins, como vimos em 2008 e 2009, por exemplo, as pessoas procuravam
bodes expiatórios. E acredito que o mesmo esteja acontecendo agora, com a
pandemia da covid-19. Como resultado vemos o crescimento do ódio.
A pandemia e as fake news podem piorar o extremismo?
Sim.
É incrível no que as pessoas são capazes de acreditar mesmo sem nenhuma
informação fidedigna ou originária de algum lugar de confiança. Vemos
um monte de teoria sobre a pandemia ser disseminada e assimilada como
verdade.
É possível impedir isso?
A
menos que um asteroide mude o curso do planeta, acho que não. A
internet torna o acesso à informação fácil para o bem ou para o mal. E
as pessoas que usam a internet para disseminar informações falsas são
muito boas nisso, não colocam a informação em um e-mail, elas constroem
um texto, com dados e entrevistas, que não são reais, mas parecem.
É possível voltar a haver um período nazista?
Pessoas
dizem que não seria possível existir um regime nazista no Brasil, EUA
ou outro país da Europa. Mas não estamos falando de uma réplica do que
aconteceu nos anos 1930 em tempos atuais. Estamos falando do tipo de
situação em que as pessoas estão numa situação de desespero tão grande
que depositam suas esperanças e apoio em um governo que parece forte e
as tire daquela situação. O exemplo é a Alemanha no fim da 1.ª Guerra,
quando assina um acordo que é uma punição dos vencedores e, como
resultado, as pessoas na Alemanha vivem em uma situação econômica ruim
enquanto o resto da Europa está melhor. A raiva surge e as pessoas
buscam bodes expiatórios. Então surge Hitler dizendo: “Não é sua culpa,
vocês não foram responsáveis pela derrota na 1.ª Guerra. Vocês deveriam
ser o grande povo alemão, na realidade, vocês são uma raça superior, são
melhores do que qualquer um e ninguém lhes disse isso”. Deve ter sido
reconfortante escutar isso após a guerra. E se você abre mão de seus
valores e esquece dos princípios que são importantes, você segue a
multidão. Sempre me preocupo com a combinação governos autoritários,
mesmo em democracias, e população em desespero que está disposta a abrir
mão de seus direitos e valores.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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