sábado, 2 de janeiro de 2021

Alemanha: uma nação-modelo para antidemocratas.

 



'Por Que os Alemães São Melhores', de John Kampfner, exalta o pior aspecto da Alemanha moderna. Artigo de Daniel Ben-Ami, publicado pela Spiked e traduzido para a revista Oeste:


O best-seller Why the Germans Do It Better: Notes from a Grown-Up Country (“Por Que os Alemães São Melhores: Notas de um País Adulto”, em tradução livre), de John Kampfner, é essencialmente uma celebração de uma das piores características da Alemanha do pós-guerra. Aquilo de que o autor mais gosta sobre a República Federal é que a democracia e os direitos individuais são fortemente limitados.

O corolário desse argumento, evidente no subtítulo do livro, é a visão de que o desejo de soberania é infantil. É do que Kampfner está falando quando se refere à Alemanha como um “país adulto”, em contraste com a Inglaterra e outros países. Nesse sentido, não é exagero ler a obra como um ataque ao Brexit tanto quanto uma análise da Alemanha.

Kampfner, que trabalhou como jornalista sênior no Financial Times e na BBC, além de editar a revista New Statesman, não apresenta esses argumentos de maneira tão explícita. Mas eles devem ficar claros para qualquer um que se dê ao trabalho de ler o livro com atenção.

O ponto de partida é que a Alemanha “representa um baluarte de decência e estabilidade”. Isso em contraste com o que o autor vê como “os Estados Unidos enfrentando polarização extrema, uma China poderosa e uma Rússia vingativa”.

Enquanto isso, a Grã-Bretanha é retratada como um país que não consegue escapar das memórias de sua antiga grandeza imperial. “Nós nunca superamos ter vencido a guerra. Corremos para ver filmes como Dunkirk e O Destino de uma Nação; continuamos definindo nossos parâmetros culturais e históricos em função de eventos que aconteceram 75 anos atrás.”

Para fazer justiça a Kampfner, ele não apresenta uma Alemanha impecável em contraposição com sua visão negativa da Inglaterra. Ao contrário, ele aponta diversos fracassos alemães, incluindo os enormes excedentes e gastos envolvidos na construção do novo aeroporto de Berlim. A experiência passa longe dos clichês sobre a eficiência alemã.

Em contraste, o que ele aprecia na Alemanha é a Lei Fundamental (a Grundgesetz). A versão original foi aprovada pela primeira vez em 1949, à sombra da 2ª Guerra Mundial. Originalmente, ela foi considerada temporária, mas, apesar das muitas emendas desde então, passou a gozar do status de Constituição da Alemanha. De acordo com Kampfner, “é uma das maiores conquistas constitucionais de qualquer país, em qualquer lugar do mundo”.

O autor gosta especialmente do papel central exercido pela Corte constitucional, equivalente no Brasil ao Supremo Tribunal Federal. Como Kampfner observa, “toda e qualquer área de disputa é arbitrada pela Corte constitucional”. Ela tem poderes enormes, incluindo a autonomia de declarar inválidas medidas estabelecidas pelo Poder Executivo e leis criadas pelo Parlamento.

Em outras palavras, é central que a Constituição alemã habilite juízes não eleitos, efetivamente, a desconsiderar políticos eleitos democraticamente. Isso em consonância com um sistema às vezes chamado de democracia “limitada” ou “isolada”. Na Alemanha, os termos usados com mais frequência são streitbare Demokratie (democracia militante) ou wehrhafte Demokratie (democracia defensiva). Instituições democráticas formais, como parlamentos, existem. Mas sua capacidade de influenciar o processo é severamente limitada. É uma forma de democracia com um centro oco onde o “demos” — ou “o povo” — deveria estar.

O Artigo 20 da Lei Fundamental realmente defende a soberania popular, mas isso é logo qualificado. Então, por um lado, “toda a liberdade do Estado deriva do povo”. Mas, logo depois, diz que “a legislatura deve ser vinculada à ordem constitucional”.

Da mesma forma, a Lei Fundamental garante diversas liberdades básicas antes de rapidamente acrescentar ressalvas que as tornam quase insignificantes. Por exemplo, o Artigo 5 afirma que “toda pessoa deve ter o direito de se expressar livremente e disseminar suas opiniões oralmente, por escrito ou com imagens”. Mas então diz que “esses direitos devem encontrar seus limites nas disposições da lei geral, nas disposições da proteção dos jovens e no direito da honra pessoal”.

O Artigo 8 garante a liberdade de se reunir, mas, em seguida, a remove de novo. Primeiro, afirma que “todos os alemães devem ter o direito de se reunir de modo pacífico e desarmado sem notificação ou autorização prévia”. Mas logo na sequência vem a declaração de que, “em caso de reuniões externas, esse direito pode ser restrito por ou em conformidade com a lei”.

Sem dúvida, Kampfner, que passou muitos anos cobrindo a Alemanha como jornalista, está ciente dessas restrições. Mas ele admira a Lei Fundamental, não apesar delas, mas por causa delas. Em contraste, em claro aceno ao Brexit, ele aponta para a Grã-Bretanha, onde o direito dos juízes de interferir na política está mais aberto a críticas. Ele afirma que os juízes constitucionais alemães “não sofrem a pressão nem são acusados de ‘inimigos do povo’, como já aconteceu com seus colegas no Reino Unido”.

Kampfner certamente sabe, ainda que não evidencie isso no livro, que as instituições da União Europeia (UE) reproduzem, em grande parte, as da Alemanha. O Tribunal Europeu de Justiça, por exemplo, é semelhante à Corte constitucional alemã. Na UE, burocratas e técnicos, na prática, têm mais poder que políticos eleitos democraticamente.

Why the Germans Do it Better oferece um guia útil, ainda que unilateral, da Alemanha do pós-guerra. Ele cobre muitas áreas importantes, incluindo o debate sobre a história, o multiculturalismo, a política externa, a economia e o debate ambiental do país. O livro é bem escrito e ajuda o fato de Kampfner ser fluente em alemão — apaixonou-se pelo idioma aos 15 anos.

É apenas uma infelicidade que ele sinta a necessidade de fazer tantas comparações negativas com a Inglaterra. Em especial, o autor parece supor que a votação do Brexit foi justificada por um sentimento antialemão e um apego romântico à 2ª Guerra Mundial. Implicitamente, existe também uma forte sugestão de que o racismo foi uma importante motivação.

É pena que Kampfner tenha se empenhado tão pouco para entender o que motivou o Brexit. Ele parece supor que seus defensores são imaturos e estão imersos numa nostalgia do império, ou ambos. Em contraste com o imenso esforço visivelmente feito por entender a Alemanha, ele não parece enxergar esse tema como digno de investigação. Caso contrário, teria descoberto que a maioria das pessoas que votaram pelo Brexit foi movida por um desejo de controlar o próprio país. Elas recusaram um sistema político que não respondia a suas necessidades ou a seus desejos.

Claro, Kampfner tem o direito de defender a União Europeia. Mas é impressionante que ele pareça não ter feito nenhuma tentativa séria para compreender o que motivou seus oponentes.

Não há dúvida de que uma grande quantidade de pessoas na Grã-Bretanha pode aprender com a Alemanha e com outros países também. Mas a aspiração em relação à democracia deveria ser sua expansão, e não seu controle.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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