É terminante a proibição à criatividade intelectual, ao debate e às opiniões independentes. Só são admitidos como válidos os pontos de vista de 'esquerda'. J. R. Guzzo via Oeste:
Um
artigo narrando episódios da vida cotidiana como ela realmente é numa
das grandes universidades de São Paulo, e que acaba de ser publicado na
revista piauí, revela o lado escuro e muito pouco falado das salas de
aula mais elevadas deste país. É, no conjunto, um comentário chocante
sobre as realidades do ensino superior público de hoje no Brasil. O
autor do relato se apresenta sob um pseudônimo. Ele é um professor
universitário e, pelos fatos que expõe, é muito compreensível que tenha
mesmo de manter o seu nome em sigilo; do contrário seria impossível, na
prática, continuar exercendo a sua profissão.
O
depoimento narra a história de um colega da área de ciências humanas —
onde mais poderia ser? — que, ao chegar para a aula que iria dar certo
dia num curso de pós-graduação, foi informado pelos alunos que a carga
de leitura que estavam recebendo era excessiva — dois ou três trabalhos
por semana, no máximo de vinte páginas cada um. O que eles queriam,
então? Resposta: os alunos exigiram que eles próprios formassem pequenos
“grupos auto-organizados”, que teriam o direito de escolher os textos
que quisessem ler; assim, poderiam acabar o semestre mais cedo.
O
professor disse que iria estudar o caso, em busca de “uma solução
satisfatória para todos”. Nada feito, conta o artigo da piauí. “Você
sempre quis negociar”, respondeu um dos alunos. “O que nós queremos é
romper hierarquias e questionar o seu poder.” Segundo lhe informaram,
estavam “lutando pela democratização da universidade e contra as
estruturas de poder”. A história acabou dando em nada, mas o trágico é
que casos assim, ou ainda piores, se repetem o tempo todo dentro da
universidade pública brasileira. Ou, em outras e melhores palavras: a
maior parte da universidade pública brasileira, hoje em dia, é isso aí.
Sob
a camuflagem de uma linguagem agressivamente esquerdista, que reza por
um ensino superior “justo”, “progressista”, “igualitário” etc. etc.,
muitos estudantes estão exigindo que a universidade funcione como “um
supermercado ou um restaurante”, escreve o professor, “onde quem decide o
que consome (que textos ler), quanto consome (quantos textos ler), por
quanto tempo consome (quantas aulas ter) e como consome (como as aulas
devem ser) são os consumidores” — ou seja, os alunos. E os professores?
Esses são como um gerente de hotel ou um alfaiate, observa o autor do
relato, e sua função é “servir ao cliente”.
É
a privatização levada às suas fronteiras mais audaciosas; eis aí a
universidade pública transformada em propriedade privada dos estudantes e
dos professores que se colocam a seu serviço, ou na sua liderança. O
artigo da piauí vai adiante, narrando aberrações que se tornam mais e
mais curiosas. Em tal universidade, por exemplo, um aluno exigiu que o
programa de pós-graduação desse “garantias” de que todos os estudantes
inscritos iriam concluir o seu doutorado com sucesso; em outra, uma
professora foi notificada por um aluno, via e-mail, que ele não queria
escrever o trabalho final previsto para a conclusão do curso, mas fazia
questão de ser aprovado. Nos dois casos, os estudantes se mostraram
convencidos de que receber o título é um direito adquirido. A
universidade, no seu entender, tem a obrigação de dar diplomas a todos
os que passaram no vestibular e fizeram matrícula; se tratar os alunos
conforme os resultados de seu mérito e de seus esforços individuais,
estará praticando o crime de “discriminação”.
Mais
adiante, um pós-graduado, e ainda por cima bolsista, recusou-se a
participar de uma reunião on-line de seu grupo de trabalho avisando em
cima da hora que estava cansado. Numa universidade do Nordeste, um aluno
de comunicação recusou-se a ler um texto pedido pela professora porque
tinha ouvido “falar mal” do autor em “um documentário”. A professora lhe
disse que ele não podia criticar um texto que não tinha lido; foi
acusada de “autoritarismo”. Outro estudante, este de ciência política,
informou que o método das aulas deveria ser modificado, pois tinha
dificuldade de prestar atenção no que diziam os colegas e ficava
perdido. Só falta, nessa balada, que as notas sejam dadas pelos próprios
alunos — mas ainda vai se chegar lá. Do começo ao fim, a mensagem é
muito clara: a universidade pública brasileira, na perspectiva de quem
está recebendo aulas, deve funcionar como local de atendimento a um
consumidor privado que busca, como diz o autor do artigo, “minimizar
custos e maximizar benefícios”.
Não
melhora a questão em nada, é claro, o fato de que a essa desordem se
junte um clima de repressão cada vez mais agressivo, e cada vez mais
policial, contra o livre trânsito de ideias. Há uma proibição terminante
à criatividade intelectual, ao debate e às opiniões independentes; só
são admitidos como válidos os pontos de vista que se apresentam hoje
como de “esquerda”, mais os seus mandamentos sobre raça, sexualidade,
igualdade e todos os demais aspectos ligados à existência humana.
Multiplicam-se, conforme relata o autor do depoimento, denúncias sem
fundamento algum por “racismo”, “homofobia”, “fascismo” etc. etc. contra
quem discorda do sistema de fé ideológica e de desejos políticos hoje
em vigor. Estranhamente, não é incomum que as vítimas desses ataques
sejam professores negros ou gays que de alguma forma não acompanham as
doutrinas oficiais a respeito de si próprios; ou pensam como a
“esquerda” quer que os negros ou gays pensem, ou vão ter problemas.
Isso
tudo é a própria negação da ideia do que deve ser, de fato, uma
universidade pública — um centro de saber, sustentado com recursos de
todos, e que existe unicamente para transmitir conhecimento a aqueles
que se empenham de verdade em aprender, e que vão devolver depois à
sociedade, com as competências que adquiriram nos cursos, pelo menos uma
parte daquilo que receberam. Não é um “coletivo”, nem um clube, nem uma
central política ou ideológica; é um local de trabalho. Se a
universidade não servir para fazer isso, não serve para nada; está
morta.
A
situação relatada acima não é um problema interno, a ser resolvido
dentro dos princípios da “autonomia universitária” — ao contrário, é uma
questão de primeira grandeza do ponto de vista do interesse público do
país e da sua população. A universidade está sendo privatizada por
alunos e pelos professores que são seus cúmplices ou incentivadores, mas
ela pertence a todos; são os pagadores de impostos, e ninguém mais, que
cobrem cada centavo gasto com a universidade pública brasileira. Mais, e
muito pior: o ensino superior, esse templo sagrado da esquerda
nacional, é um dos mais descarados instrumentos de concentração de renda
hoje em vigor no Brasil. É simples. O investimento total do poder
público federal na educação, em números redondos e recentes, está um
pouco acima de R$ 40 bilhões por ano: a universidade fica com R$ 10
bilhões desse dinheiro todo. Só que há 45 milhões de alunos estudando no
curso básico da rede pública de ensino, e 2 milhões nas universidades
estatais. Faça a conta. Quem está levando mais?
Essa
montanha de dinheiro não sai do bolso dos brasileiros que estão na
lista de milionários da revista Forbes; é paga pelos impostos cobrados
de todos, sem exceção, ricos, médios e pobres. Não é preciso ter um
Ph.D. em nada para constatar que não há nenhuma possibilidade matemática
de se dividir por igual uma conta e achar que o peso maior não vai cair
no bolso de quem tem menos. Mais: a população está fazendo esse
sacrifício no lugar errado. Segundo os últimos cálculos do Inep, a
autarquia federal que cuida dos números essenciais da educação
brasileira, o custo médio do aluno no curso básico — onde estão as
necessidades mais desesperadas e mais urgentes de investimento — é hoje
um pouco abaixo dos R$ 7 mil por ano. Um universitário está custando
acima de R$ 28 mil por cabeça e por ano.
Se
você acha que isso é um disparate em estado puro, espere até ver os
números da Universidade de São Paulo, a maior do Brasil. O pagador de
impostos paulista (e brasileiro) coloca ali R$ 5,5 bilhões por ano, dos
quais cerca de 85%, ou quase tudo, vão para salários e benefícios. O
custo anual por aluno, segundo as últimas cifras do Inep, está acima de
R$ 52 mil — isso tudo para que os alunos exijam escolher a própria lição
de casa e se empenhem nas lutas pela “democratização da universidade”.
As outras duas universidades estaduais têm números semelhantes. É a
concentração dentro da concentração.
É
verdade que a degeneração geral da universidade pública — algo que
talvez se possa chamar de deep university, da mesma forma como há uma
deep web, ou a internet das sombras — se manifesta sobretudo na área de
ciências humanas; na área de exatas já é outra coisa, muito mais próxima
ao que um curso superior deve realmente ser. É normal. Nas humanas os
alunos não imaginam a si próprios no exercício de atividades de fato
competitivas, que exijam conhecimento, talento e mérito individual. Em
geral veem a si próprios, no futuro, trabalhando no governo, em meios de
comunicação ou em departamentos de marketing — onde não vai fazer muita
diferença, no fundo, se o sujeito aprendeu ou não aprendeu alguma coisa
na universidade. Nas exatas, ao contrário, o aluno sabe que o seu
desempenho acadêmico pode fazer a diferença no verdadeiro mercado de
trabalho — aquele, justamente, que exige mais, mas em compensação
oferece ao profissional as ocupações mais bem remuneradas, mais
compensadoras e sobretudo mais úteis para a sociedade que pagou por seu
curso superior.
Não
chega a ser um consolo — o grosso dos gastos na universidade pública do
Brasil é torrado justamente nas humanas, em que alunos e professores
devolvem ao interesse comum muito pouco, ou nada, do que receberam. Que
contribuição se pode esperar, por exemplo, dos cursos de direito
sustentados pelo pagador de impostos, num país que já tem por volta de 1
milhão de advogados formados? É por isso que países muito mais
bem-sucedidos e muitíssimo mais ricos que o Brasil, como o Japão,
começam a pensar seriamente em mudar as coisas em sua universidade
pública. O Ministério da Educação japonês vem estudando, a propósito, a
possibilidade de não oferecer mais cursos gratuitos de sociologia,
filosofia ou antropologia nas faculdades do Estado. Quem quiser estudar
essas disciplinas deverá procurar uma bolsa — ou então pagar pelo curso
que pretende fazer. A ideia central é permitir que a sociedade japonesa,
cada vez mais, pague apenas o ensino universitário que dê um retorno
mais objetivo para o bem-estar da maioria. Na Índia, numa situação
diferente, o poder público incentiva diretamente o aprendizado superior
de matemática e das disciplinas tecnológicas. São exceções, é claro, e é
apenas um começo. Mas certamente é um tema para avaliação de todos os
que têm preocupações genuínas com a educação no Brasil — e não concordam
com a liquidação da universidade pública em favor de interesses
particulares, sob o disfarce da ideologia, do que é politicamente
correto (e pessoalmente vantajoso) e da devoção ao “campo progressista”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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