Neste Natal, assombrados pelos fantasmas da peste e da depressão, num tempo onde pressentimos a força de um laicismo agressivo, reler Dickens é uma forma de reencontrar e espírito de todos os Natais. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Sou
do tempo do Menino Jesus, do sapatinho ou da bota ao pé da chaminé, dos
presentes na manhã de dia 25. Os meus filhos mais velhos ainda
apanharam esses Natais. Tudo se passava com o Menino Jesus. O Pai Natal
não fazia parte da história, ou era uma personagem secundária, se não um
mero figurante. E a história era uma história séria, a mais séria e
misteriosa das histórias: a história da Encarnação de Deus. Um Mistério,
como quase todas as coisas importantes, desde a paixão entre um homem e
uma mulher à sobrevivência de um povo.
Hoje,
e muito especialmente neste Natal, com um isolamento reforçado numa
sociedade já tendencialmente individualista, com os pobres e
economicamente débeis a multiplicarem-se e os pequenos comércios a
fechar, aproximamo-nos do cenário de sonho dos antigos
marxistas-leninistas: o de estarem os ricos cada vez mais ricos, pelo
menos relativamente, e os remediados cada vez mais pobres. Cenário ideal
para a grande “luta final” entre Burguesia e Proletariado, não fosse o
actual predomínio dos marxismos imaginários, que relega para o passado
os sonhos de justiça social dos antigos igualitários, que sempre tinham o
mérito de tentar atabalhoadamente laicizar os ideais evangélicos.
Olhando
à volta, nesta cidade de Lisboa, as iluminações municipais podiam
parecer inspiradas na Primeira República, quando os laicos triunfadores
do Cinco de Outubro acabaram com os feriados religiosos e chamaram ao
Natal “Festa da Família Portuguesa”. Mas não. Agora, já não é sequer
desejável que a família figure. Nem a Sagrada, nem a portuguesa. Nestas
iluminações profícuas da cidade, não se vê uma referência que seja ao
Presépio, aos Magos, aos Pastores, ao ponto de partida histórico para
tudo isto. Nada. Já quase nem estrelas – só árvores assépticas,
embrulhos, fitas, luzes. É o espectáculo desolador da descristianização
sinuosamente imposta como facto consumado.
Dickens e os vitorianos
Foi
em meados de Outubro de 1843 que Charles Dickens começou A Christmas
Carol. Escreveu-o em seis semanas, estava pronto no fim de Novembro e
saiu antes do Natal. Para se inspirar, passeou por Londres, andou pelos
mercados do East End, deambulou pelos bairros pobres da cidade, nos
princípios da era vitoriana.
Foi
também ali, entre a neve e a lama das ruas periféricas e a City
burguesa, que nos habituámos a imaginar e a fantasiar o espírito
ambulante desses natais. Mas, no meio de uma descrição rica, festiva,
quase epicurista, quase trimalciana dos Natais festivos, Dickens
traz-nos, como ninguém, a mensagem cristã.
A
mensagem é a história de uma salvação. A história da salvação de
Ebenezer Scrooge, o milionário avarento que, na noite de 24 para 25, é
visitado pelo espírito do Natal e dos Natais. Michael Timko escreveu na
revista America, uma revista de jesuítas norte-americanos, um texto
sobre o significado de Dickens, dizendo que o escritor tivera como
objectivo principal, senão único, que as suas histórias fossem parábolas
dos ensinamentos de Cristo.
E
A Christmas Carol é um conto de conversão. Uma conversão que chega
também pela visão do castigo que os espíritos do Natal lhe revelam.
Dickens era de uma família anglicana, Church of England, não
especialmente praticante. Foi a igreja que seguiu toda a vida, excluindo
uma breve passagem pelos Unitários, nos anos de 1840.
O
enredo de A Christmas Carol é conhecido. Ebenezer Scrooge, o velho
avarento, é visitado, na noite de Natal, pelo fantasma do seu antigo
sócio, Jacob Marley. Marley vem acorrentado, com ar sofredor, e vem
dizer a Scrooge que está a penar no Purgatório pela indiferença com que
tratou os seus irmãos – os pobres, os empregados, as crianças – durante
toda uma vida de próspero homem de negócios.
Scrooge
é um velho mau, misantropo, que não quer saber do Natal, que recusa o
convite do sobrinho para jantar, que trata mal o seu empregado Bob
Cratchit. Marley, vindo directamente do Purgatório, avisa Scrooge de que
vai ser visitado por três espíritos de Natal – o dos natais passados, o
dos natais presentes e o dos natais futuros.
O
primeiro, o Espírito dos Natais Passados, leva Scrooge até à sua
infância e juventude: à sua irmã Fan, ao seu patrão, o bondoso Mr.
Fizziwig, que o tratava como um filho, e à sua namorada Belle, que
perdeu pelo amor ao dinheiro. O segundo, o Espírito do Natal Presente,
leva-o a visitar a alegria do Natal dos pobres, a casa do seu sobrinho
Fred, a casa do seu empregado Cratchit, que tem um filho pequeno, Tiny
Tim, um menino alegre, mas muito doente e semi-paralítico. E o terceiro,
o Espírito dos Natais Futuros, mostra-lhe um homem que morreu, que tem
um funeral de homem de negócios e que é roubado pelos seus próximos.
Ninguém tem pena dele, e jaz numa campa abandonada, onde Scrooge vê
inscrito o seu próprio nome. E também vê Bob Cratchit e a família, que
choram a morte de Tiny Tim.
Uma segunda oportunidade
Quando
acorda na manhã de Natal, Scrooge é outro homem: toma consciência dos
seus erros e do mal na sua vida, mas percebe que, ao contrário de
Marley, vai ter uma segunda oportunidade.
E
sendo Cristo o Novo Adão, a própria encarnação é uma segunda
oportunidade. O artifício de mandar espíritos prevenir os vivos também é
comum, na Bíblia, nos poemas homéricos no teatro clássico, em
Shakespeare, no Ricardo III e no Hamlet, nos românticos. O fantasma de
Marley, por um lado, assusta – e assusta até Scrooge –, mas por outro,
sabemos que vem por bem e que é, por isso, um “fantasma bom”, ainda que
condenado ao Purgatório.
O
Purgatório é mais uma segunda oportunidade; a oportunidade de purgar
além vida os pecados cometidos no mundo; é um lugar de pena, mas sereno,
como nalguns primitivos italianos do Quatrocento, ou como naquela Ponte
do Purgatório, de Mateu Lopez, do século XVI, onde os anjos vão
ajudando os penitentes a partir para o Céu, com o ar de enfermeiros de
convalescentes que se preparam para ter alta. Marley ainda não está
nessa fase; vem com correntes e visivelmente aflito; mas a sua visita
vai desassossegar Scrooge e encaminhá-lo para a Salvação. Os três
espíritos do Natal farão o resto.
Dickens
tinha 31 anos quando escreveu e publicou A Christmas Carol. Era já um
escritor de sucesso, naquela sociedade vitoriana só medianamente
convertida mas com valores cristãos oficialmente estabelecidos.
Sociedade repetidamente acusada de hipocrisia, farisaísmo, opressão dos
pobres e dos mais fracos e exploração do trabalho infantil para
enriquecer os usurários como Scrooge e Marley. Marx era um grande leitor
e admirador de Dickens e foi perante esta sociedade que ele e outros
socialistas escreveram panfletos e descreveram e construíram utopias.
Era
uma sociedade de classes, com uma classe alta – aristocracia e grande
burguesia – dominando o poder político e económico; e uma classe média
abastada, que abrangeria 10 ou 15% da população. O resto, a grande
maioria vivia em austeridade e dificuldade.
Dickens
retratou esta sociedade melhor que ninguém; com rigor, sem concessões,
com sentido de justiça e de verdade. Ele mesmo tivera uma dura
experiência numa família numerosa, com o Pai preso por dívidas e ele a
ter de trabalhar numa fábrica. Depois subira a empregado de um
escritório de solicitadores e daí a jornalista e a escritor. A fama
chegou-lhe aos 25 anos com os Pickwick Papers,em 1837 (“Ter já lido os
Pickwick Papers é uma das grandes tragédias da minha vida”, diria
Pessoa). Oliver Twist e Nicholas Nickleby, que o consagraram, são
anteriores a A Christmas Carrol.
Mais
tarde, com David Coperfield e Great Expectations confirmará uma obra
única, não só pelo realismo do testemunho, mas pela criação de uma
galeria de personagens reais mas “morais” – simbolizando o bem e o mal
da natureza humana –; e que, por isso, continuam, por gerações, a
inspirar novas criações, na literatura, no cinema, na televisão, no
mucic-hall.
Neste
Natal, assombrados pelos fantasmas da peste, da crise e da depressão
económica, numa cidade e num tempo onde, em decisões e legislações
subtis e pretensamente inócuas, pressentimos a força de um laicismo
agressivo e iconoclasta, reler Dickens e Uma Canção de Natal é – para
nós, para os nossos filhos e para os nossos netos – uma forma de
reencontrar e espírito de todos os Natais: o da Esperança e da Salvação.
E
de reencontrar o caminho para lá chegar, aqui, nas luzes do nosso Natal
descristianizado, como o velho e mau Ebenezer Scrooge o reencontrou,
numa manhã de 1843, na pérfida Londres vitoriana.
Um Santo Natal.

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