terça-feira, 1 de dezembro de 2020

É preciso matar o homem branco?

 



Sob a capa de ativista antirracista, Mamadou Ba mais não é do que um agente político. A luta antirracista mais não é do que nova semântica, essencial para reforçar a “luta pela transformação social”. Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:


Nos últimos dias, o espaço mediático foi conquistado pela controversa discussão à volta das recentes afirmações de Mamadou Ba, autointitulado ativista antirracista, que numa conferência digital sobre o “racismo e avanço do discurso de ódio no mundo” transmitida no canal “Pensar Africanamente”, no YouTube, terá afirmado, de forma tida como bombástica, ser necessário, por uma questão de sobrevivência, e cita-se, “matar o homem branco”. Defendeu Mamadou Ba que para se “evitar a morte social do sujeito político negro” é necessário “matar”, não um homem branco qualquer, mas o “homem branco, assassino, colonial e racista”.

Rapidamente as redes sociais foram tomadas pelas habituais formas de luta fratricida, na sua formulação digital, tendo a batalha mais épica sido travada no Twitter entre os que questionaram o conteúdo eminentemente racista das afirmações, e os que vieram contextualizar o pensamento de Mamadou Ba como sendo meramente metafórico. Dentre as várias afirmações proferidas ganharam visibilidade as de André Azevedo Alves, questionando se [a]pelar publicamente à “morte do homem branco” conta como racismo e apelo ao genocídio”, e as inúmeras respostas que recebeu de toda uma psitacista esquerda unida, em Dolby Surround, justificando as intervenções de Mamadou Ba como tendo sido proferidas no contexto do pensamento de Frantz Fanon. Destaco, neste particular, as de Francisco Seixas da Costa que, com a habitual acutilância e assertividade que marcam o seu alter ego virtual, sentenciou: “Há limites para a estupidez e para a desonestidade: quem não leu Frantz Fanon e não sabe interpretá-lo, às tantas também deve achar que o conceito freudiano de “matar o pai” deve ser levado à letra. Estudassem!”, e as do Secretário de Estado da Energia, João Galamba, que numa manifestação visivelmente freudiana, carregada de quilowatts, desabafou: “Este senhor dá aulas a pessoas. Diz que é professor.

Ora, tendo-me eu interessado bastante ao longo dos anos pelo tema das relações entre racismo, desigualdade e democracia, e lido com atenção e sentido crítico a obra de Fanon e várias das suas expressões e adaptações, decidi trazer para esta coluna reflexões que não são viáveis nas limitações de carateres de uma rede social. Será a referência pública à “morte do homem branco”, no sentido que lhe dá Fanon, uma manifestação de racismo e um apelo ao genocídio, ou simplesmente a expressão deve ser lida no sentido “metafórico”? Qual o sentido e o alcance, em Fanon, da referência em questão? Será esta linha de pensamento a mais adequada para combater o racismo, ou será esta “luta” meramente instrumental, subordinada a uma ação política mais vasta? Será Fanon um pensador a quem valha a pena, hoje, creditar méritos, seja no plano das ideias, seja como expressão de pacifismo e símbolo antirracista?

A obra de Fanon flui entre o sociopolítico e o psicológico, sendo uma das expressões mais conhecidas da chamada “psicopolítica”. Nascido em 1925, é nos anos 50 que Fanon constrói uma narrativa de fusão entre as correntes dominantes da psicanálise de Freud, o existencialismo de Sartre, e o marxismo. Fanon escolhe para si uma politização explícita do psicológico, trazendo uma série de preocupações e conceitos ostensivamente psicológicos para dentro do registo do político. Fá-lo, aliás, de uma forma bastante criativa e até poética, tendo inspirado obras cinematográficas de inegável valia, como, entre outras, “La noire de“, do senegalês Ousmane Sembène (1966), por muitos considerado o pai do cinema francês, ou produções mais recentes, como o galardoado “Chameleon Street”, de Wendell B. Harris (1989), ou o interessantíssimo “Frantz Fanon: Black Skin, White Masks”, de Isaac Julien (1995). O pensamento de Fanon está intimamente ligado também à realidade lusófona, tendo inspirado o importante filme, “Sambizanga”, de Sarah Maldoror, mulher de Mário Pinto de Andrade (primeiro presidente do MPLA, afastado por Agostinho Neto), produzido em 1972, adaptação duma novela de José Luandino Vieira, A vida verdadeira de Domingos Xavier, que conta a história de Maria, uma mulher que de cadeia em cadeia procura o seu marido preso; ou a curta-metragem do brasileiro Aloysio Raulino, “O Tigre e a Gazela”, de 1976, disponível online no portal oficial do PortaCurtas.

Nas suas duas obras emblemáticas, Fanon procura perceber até que ponto a psicologia humana está intimamente ligada a forças sociopolíticas e históricas, construindo uma narrativa psicopolítica onde emprega conceitos e explicações psicológicas e psicanalíticas para descrever e ilustrar o funcionamento do poder, em particular, o colonial. Pode-se, assim, a meu ver, concluir sem dificuldade que no plano argumentativo não se apreendeu suficientemente a proposta de Fanon se não dermos espaço para perceber – e no meu caso, rebater – o político dentro do psicológico e o psicológico dentro do político.

Por partes: é a meu ver inegável a importância da obra “Peau noire, masques blancs”, (1952), como ensaio e proposta, sobretudo, como abordagem teórica para tentar identificar os problemas da identidade negra em contextos racistas e coloniais, bem como os vários complexos psicoexistenciais e os seus efeitos prejudiciais, não apenas nos sonhos dos negros, mas também na sua vida real. Não sendo a psiquiatria a minha área de estudo, consigo, ainda assim, perceber o interesse do apelo e da proposta feitas e aceitar sem dificuldade o impacto que a escravatura e a colonização poderão ter tido na construção do imaginário das pessoas de raça negra, e as implicações nos seus comportamentos. Fanon diz ter rastreado as implicações dessa resposta – do negro que deseja ser branco – nos domínios da linguagem, sexualidade, sonhos e comportamento, encontrando em cada instância a persistência desse desejo – a apropriação da língua e da cultura do branco, o desejo de um cônjuge ou parceiro sexual branco, o sonho de ficar branco. É esse conflito entre o desejo fundamental e a patologia que resulta da impossibilidade de o realizar, que forma o ponto focal da análise de Fanon, tão bem sintetizado no título “Pele Negra, Máscaras Brancas”. O sonho de ficar branco, como condição neurótica é, porém, apresentado já de uma forma mais figurada na obra “Os miseráveis da terra”, onde com mais detalhe e sentido político se discorre sobre a “condição nervosa” do status do nativo, os seus distúrbios de personalidade, e o conflito que se gera entre um impulso ou desejo poderosos e a necessidade de o reprimir. A “neurose da negritude” que Fanon nos apresenta é exatamente o “sonho de ficar branco”, isto é, o desejo de atingir o nível de humanidade concedido aos brancos em contextos racistas e coloniais, o qual, porém, acaba reprimido pela impossibilidade de alguém concretizar esse sonho, dentro de um corpo negro.

Sendo a construção apelativa, sobretudo no contexto dos anos 50 e 60, a primeira grande crítica que se pode fazer é que, ao contrário daquilo que é o domínio da medicina, que enquadra os traumas e as neuroses dentro dos limites da psicologia individual, a proposta de Fanon extrapola tais ideias para fazer delas fenómenos psicológicos explicitamente sociais, enraizados nos contextos históricos e políticos específicos da colonização, onde as desigualdades sociais e políticas estão na base do que poderia ser visto como um problema exclusivamente intrapsíquico. Fanon defende, aliás, a existência de uma neurose cultural, que visa manipular a dimensão inconsciente, assente numa constelação de postulados e proposições que lentamente e com a ajuda de livros, jornais, escolas e seus textos, anúncios, filmes, rádio, fazem o seu caminho dentro da mente, empurrando o símbolo do Mal para tudo o que é negro. Particularmente na Europa, “onde o negro [seria] o símbolo do mal”, onde “concreta ou simbolicamente, o homem negro [representaria] o lado mau do personagem”. O conceito de inconsciência coletiva seria assim a melhor forma de explicar como o racismo pode funcionar de forma herdada, compartilhada por todos os europeus ou brancos, consolidando-se num sistema político de representações que projetam os arquétipos dos valores mais baixos para serem representados pelo negro, assumindo a negritude a fórmula do mal.

Acresce que, como referi inicialmente, Fanon nunca quis limitar a sua análise a uma dimensão psicológica, sendo antes, esta, instrumental da sua proposta política. Fanon procura na psicanálise de Freud e nos seus pressupostos científicos a justificação e o caldo necessários para desenhar um negro oprimido, a expressão africana do proletário, que ajudaria a calibrar o historicismo marxista para o tornar pertinente na libertação colonial. Ora, é na fusão da análise psicológica com as grelhas do marxismo e do existencialismo, na politização explícita do psicológico, que radica o seu carácter violento. Violência esta que se procura legitimar na ideia de opressão cultural e racial. Como muito bem analisou o Rui Ramos aqui no Observador, o pensamento e a obra de Fanon “[justificaram] (…) as violências dos colonizados sobre os colonizadores”, nas guerras coloniais, mas também, digo eu, as ações criminosas de grupos como o Partido das Panteras Negras, nos EUA, não sendo por isso factualmente possível olhar para o seu legado ignorando o rastro de sangue e dor que objetivamente inspirou.

A recuperação da linguagem marxista assente no trauma e no conflito que Fanon corporiza, responsável pela morte de muitos brancos e negros, tem, porém, vindo a fazer o seu caminho nos últimos anos, sobretudo numa certa Academia e em partidos políticos de franja. O pensamento de Fanon faz, por exemplo, parte do cimento ideológico que suporta o Black Lives Matter e os mais recentes movimentos de resistência que trouxeram o caos às ruas do EUA, estando, assim, intimamente ligado a uma forma violenta, de rutura, de combate ao racismo. Mamadou Ba faz desde longa data parte dessa corrente. Sob a capa de ativista antirracista, Mamadou Ba mais não é do que um agente político. Como o próprio abertamente afirmou, a luta antirracista mais não é do que uma nova semântica, um novo sentido para o conceito de “classe”, essencial para reforçar a “luta pela transformação social (…)”. Mamadou Ba entende que é necessário convocar para o “combate (…) categorias como a raça, a orientação sexual e outras que tais” para assim se marcar a agenda política da esquerda. Estas categorias devem ser vistas como ferramentas operativas na luta pela “hegemonia cultural”, ocupando o espaço das “direitas e da social-democracia”. Importa apelar a estas “subjetividades para fazer política”, na linha dos “ensinamentos do Trotsky nos seus escritos (…), olhando para a forma como é ensinada a História e construída a cultura para poder convocar contracultura”, usando a “produção cultural como espaço de disputa pela hegemonia e [expressão] da forma como queremos construir a sociedade”.

É inegável que a raça é ainda um dos fatores de desigualdade. Estamos longe de ter construído em Portugal, mas também nas sociedades mais evoluídas, comunidades onde todos temos, à partida, condições para realizar os nossos sonhos de vida, sem arquétipos de cor. Mas é importante assinalar que o discurso de rutura que Mamadou Ba – e as extremas-esquerdas – querem recuperar, até hoje, apenas se interessa pela questão racial como forma de executar um programa de transformação social totalitário, que quer ser hegemónico, e que não nega, se necessário, o uso da força. A raça é para estas correntes políticas uma mera categoria subjetiva instrumental, uma projeção de um homem novo, inexistente, cuja ideia de base há muito devia estar – metaforicamente – enterrada.

Em sentido simétrico, infelizmente não falta à direita quem procure por estes dias recuperar a questão racial, étnica ou religiosa como forma de criação de estigmas e arquétipos de desvalorização coletiva, com fins meramente instrumentais e políticos, e que apenas ajudam a criar uma lógica dialética de extremos, com claro prejuízo para a afirmação de valores e direitos individuais.

A humanidade está a evoluir a passos largos para uma integração global, onde rapidamente as categorias raciais deixarão de fazer sentido. O homem branco, o homem negro, e todas as categorias que hoje conhecemos, irão morrer de morte natural, sem que tenhamos de os assassinar, física ou culturalmente. Um elevado grau de miscigenação é o corolário lógico de uma sociedade global, integrada e livre, onde todos temos os mesmos direitos e deveres. Ora, a única fórmula política universalmente testada que promove a mobilidade social e fomenta a liberdade chama-se acesso à educação, num ambiente de pluralismo e defesa dos valores individuais; sem tribalismos ou construções artificiais que reduzam a pessoa a uma categoria religiosa, racial, sexual, ou de género, enclausurando-as em narrativas vitimistas, capturáveis politicamente. Por isso, muitos dos que queremos combater o racismo, apenas exigimos mais e melhor Escola. Os únicos homens que temos de matar – e apenas na nossa psique – é esse Homem Novo, sonhado por tantos, e que apesar de permanentemente adiado, tanta dor continua a causar na projeção do seu desejo. E esse Homem Velho, rezingão e desconfiado, que ainda acha que há espaço no futuro para o estigma e a segregação.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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