BLOG ORLANDO TAMBOSI
De Joe Biden a Benjamin Netanyahu, líderes mundiais viveram em 2020 um ano de tirar o fôlego, com guinadas inesperadas e vitórias que pareciam impossíveis. Vilma Gryzinski:
Como
um chefe de governo sobrevive a um vírus que condena qualquer líder a
escolher entre a derrocada econômica ou uma avalanche de cadáveres se
acumulando em hospitais? Ou o que fazer quando sequer existe escolha?
Quando
se fala num ano “cheio de desafios”, um dos clichês mais batidos para
definir enrascadas em série, nem os mais pessimistas pensariam em algo
parecido com 2020.
Quer tenham poder soft ou hard, quando não ambos, alguns dos mais importantes líderes mundiais terminaram o ano por cima.
Outros, na corda bamba.
Todos ainda dependendo do que o vírus e seus irmãos mutantes ainda nos reservam.
A seguir, os casos mais interessantes.
É quase inacreditável lembrar que há apenas dez meses, o presidente eleito dos Estados Unidos era motivo de chacota.
Na
primeira eleição primária, no estado de Iowa, ele havia chegado num
constrangedor quarto lugar, atrás de um desconhecido prefeito do
interior, Pete Buttigieg, o primeiro pré-candidato gay, e duas relíquias
da esquerda americana, os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren.
“A campanha de Biden agoniza depois da sova de Iowa”, resumiu o influente e apaixonadamente democrata site Politico.
Hoje,
Buttigieg está designado para o nada transcendental Departamento dos
Transportes e os veteranos senadores tramam nos bastidores como empurrar
Biden para fora do centro político no qual os eleitores americanos o
consagraram presidente aos 78 anos de idade.
Para
um político medíocre, sem grandes dons de oratória nem ideias
arrojadas, Joseph Robinette Biden Jr. deve ter alguma conjunção astral
mais poderosa do que a de Júpiter e Saturno, com uma trajetória de
desgraças e triunfos de tragédia grega.
Os
dramas são conhecidos: a mulher e a filhinha de um ano mortas num
acidente de carro em que os dois filhos sobreviventes sofreram
ferimentos graves.
Depois,
a perda de um desses filhos, justamente o predileto, aos 47 anos, para
um gliobastoma arrasador. Os escândalos de drogas e possivelmente
tráfico de influência do outro filho, o problemático. O romance deste
com a viúva do irmão. E dá-lhe histórias de novela.
Além
de ser bafejado pela benevolência das divindades da política, Joe Biden
chegou aos 81 milhões de votos diretos e 306 no Colégio Eleitoral
basicamente deixando agentes externos fazer o serviço.
Enquanto Biden se isolava no porão de sua casa – diminuindo as chances de cometer lapsos típicos da quase quarta idade – o novo coronavírus,
cuja conta fatídica nos Estados Unidos já passa de 340 mil mortos,
trabalhava a a seu favor. A espiral cruel aberta pelo vírus estilhaçou
conquistas econômicas e expôs fragilidades de liderança.
E Donald Trump
trabalhou contra si mesmo, com comportamento errático e mercurial em
relação a uma epidemia que só pode ter visto como uma conspiração contra
si mesmo, acreditando que sua base, terrivelmente evangélica ou apenas
acaloradamente apaixonada por um líder improvável como o presidente
derrotado, lhe entregaria a segunda vitória contra todas as
probabilidades.
Ganhou
74 milhões de votos, inacreditáveis para quem nunca se deu ao trabalho
de tentar entender as razões políticas, sociais e culturais do fenômeno
Trump.
Mas insuficientes para derrotar o candidato mais velho a ser eleito presidente dos Estados Unidos.
Cheio
de experiência de bastidores sobre como são feitas as leis e as
salsichas, com 36 anos de Senado e oito de vice-presidência, Biden
assume em 20 de janeiro como o presidente normal que a maioria dos
americanos queria.
Mas os tempos continuam anormais, embora com uma vantagem para Biden: o que pode ser pior do que 2020?
Caminhando
para uma aposentadoria autodecretada em 2021, tão irredutível que nem a
pandemia nem as incertezas econômicas na Europa abalaram minimamente a
decisão, a primeira-ministra alemã chegou ao fim de 2020 como a líder
mundial mais unanimemente aprovada.
Em
catorze países desenvolvidos, ocidentais e asiáticos, em média 75% dos
pesquisados pela Pew Research acreditam que é possível confiar que ela
vai tomar as decisões certas em questões mundiais importantes.
A
pesquisa é um reflexo da inveja, secreta ou declarada, que muitos
sentiram dos alemães quando a primeira onda da epidemia varreu a Europa e
a Alemanha não perdeu o controle, como chegou perigosamente perto de acontecer em países como a Itália e a Espanha.
Embora
o sistema federativo dê muita autonomia aos estados alemães em decisões
sanitárias e o sistema de saúde descentralizado e organizado tenha sido
o elemento principal no combate à pandemia, Merkel fez o mais
importante: falou de maneira simples, direta, eficaz e até um tanto
dramática, em termos alemães, sobre o perigo que o vírus trazia e como
exigiria sacrifícios de todos.
Quando um líder com credibilidade fala, é ouvido.
Na
primeira fase da epidemia, a Alemanha ficou na casa dos 30 mil mortos,
ou 362 óbitos por milhão de habitantes. Quase um terço dos números em
países como a Itália (1 190 por milhão), Reino Unido (1040) ou França
(958).
A
segunda onda está sendo pior para a Alemanha, com o número de vítimas
diárias chegando a quase mil e reclamações sobre a demora na vacinação,
que só começou ontem por causa da burocracia da União Europeia.
Como
o sistema parlamentarista permite chefes de governo com longos períodos
de poder, Angela Merkel terá acumulado 16 anos como primeira-ministra
quando deixar o cargo.
Quem quer que seja seu substituto vai começar em posição de desvantagem: não ser Angela Merkel.
Na
mesma pesquisa em que a primeira-ministra alemã tem 75% de
confiabilidade, Xi Jinping aparece com 19%. Como não existe nada
parecido com democracia na China, é impossível saber a opinião dos chineses sobre seu próprio presidente.
Mas é possível sugerir que 2020 foi um ano ruim para Xi Jinping fora da China e muito bom para ele dentro dela.
O
controle da epidemia em seu marco zero dá razões ao líder do comunismo
capitalista para mostrar como os modelos ocidentais se lascaram e o
modelo chinês foi eficiente. Mesmo para quem não acredita completamente
que no berço do vírus tenha havido tenha havido um total de 4.634
mortes.
O
líder chinês também aproveitou o pandemônio da pandemia para apertar os
parafusos sobre Hong Kong, com uma lei de segurança nacional que
praticamente acaba com qualquer ilusão de judiciário autônomo, e sobre
os uigures, minoria étnica muçulmana tratada na base de repressão e
confinamento em massa.
A
China termina o ano com um crescimento econômico de 2,1% – pouco em
termos chineses, um milagre em termos do desastre causado pela pandemia
no ocidente – e previsão de 8,4% em 2021.
O
ano novo chinês é em fevereiro e Xi Jinping terá motivos duplos para
comemorar o ano do boi ou búfalo: Donald Trump não estará mais na Casa
Branca e ele estará mais poderoso do nunca.
O Reino Unido
começa 2021 fora da União Europeia, dentro da liga dos países que se
destacam pelas vacinas contra o vírus e com um primeiro-ministro que no
último minuto do último dia da penúltima semana conseguiu uma vitória
nada menos do que espetacular.
Nenhuma montanha foi tão russa para um governante como a sucessão de dramas de Boris Johnson.
Muitos
provocados por sua própria tendência a falar uma coisa e, em questão de
dias, fazer outra, dividido pelas duas fenomenais que a pandemia
desencadeou: a crise de saúde e a devastação econômica.
De
todos os governantes que tiveram Covid-19 (Jair Bolsonaro, Donald
Trump, Emmanuel Macron), nenhum ficou em estado tão grave quanto Boris.
Depois da alta, no começo de abril, ele chegou a dizer que sua probabilidade de sobrevivência estiveram na casa dos 50%.
E logo em seguida também foi pai pela quinta vez (ou sexta, ninguém crava).
Ver
a economia sob risco de derretimento, os números de mortos subindo sem
parar e sua capacidade de liderança justamente contestada por vários
parlamentares de seu próprio partido já seria suficientemente
complicado.
Enfrentar tudo isso com chorinho de bebê novo deve ter adicionado um complicador extra.
Com
a segunda onda crescendo, a economia amarrada pelo abre e fecha, a
descoberta de uma variante local do vírus, uma parte da população
proibida de sequer ver os familiares mais próximos no Natal e a
intransigência da União Europeia – leia-se França – boicotando um acordo
negociado para o Brexit, Boris e o reino inteiro entraram na penúltima semana do ano numa espécie de paroxismo.
No último minuto, saiu o acordo.
Acordo
bom é aquele em que as duas partes podem dizer que saíram ganhando. Mas
Boris teve mais motivos para comemorar o pacto pelo qual o reino pode
continuar a vender produtos e serviços sem tarifas extras, o que seria
um desastre em condições normais e uma catástrofe no quadro atual.
“Boris
Johnson conseguiu um acordo para o Brexit que muito o consideravam
incapaz de negociar”, resumiu Matthew Elliot, um dos mais irredutíveis
partidários da separação com a União Europeia.
Com
um Brexit favorável e uma enxurrada de vacinas – depois da da Pfizer, a
de Oxford em conjunção com a AstraZeneca -, o annus horribilis termina,
quase inacreditavelmente, com otimismo.
Já
se fala em imunização das camadas mais vulneráveis até o fim de
fevereiro – entre 12 e 15 milhões de pessoas -, com a consequente
normalização progressiva das atividades econômicas.
E
não é só no curto prazo: uma avaliação do Centro para Pesquisas de
Economia e Negócios prevê que o país continuará na posição de quinta
maior economia do mundo e, com Brexit e tudo, ou talvez pelo aumento de
competitividade que a separação em princípio propicia, vai disparar no
setor de tecnologia. Em 2035, terá um PIB 23% maior do que o da França.
Apesar
dos exageros e da evidente mãozinha do governo nas avaliações mais
otimistas, alguma coisa parecida com isso já faria de 2021 um potencial
annus mirabilis.
O
primeiro-ministro israelense começou 2020 fazendo o que faz de melhor –
sobreviver e impor o tom da vida política – e terminou do mesmo jeito.
Com a diferença de que Israel está entrando no terceiro lockdown e na quarta eleição em dois anos.
O
que parecia uma administração exemplar da crise do vírus retrocedeu
para a vala comum das infecções que voltam, aumentam, causam animosidade
entre os cidadãos e corroem a popularidade dos governantes.
Com
uma população de nove milhões de habitante e boa capacidade
organizacional, Israel pode conseguir que a ampla maioria de seus
cidadãos esteja vacinada até o fim do primeiro trimestre de 2021.
Exatamente
a tempo para a eleição de 23 de março, quando Netanyahu enfrentará pela
primeira vez uma ameaça categórica vinda da própria direita, com
figuras importantes de seu próprio partido rompendo publicamente com
ele.
Em
condições normais, 2020 teria sido um ano de vitórias para Netanyahu:
abafou o seu incômodo adversário de coalizão, Benny Gantz; venceu pelo
cansaço (ou pelo vírus) os protestos que miram no seu julgamento por
corrupção e conseguiu negociar, com uma tremenda ajuda de Donald Trump,
acordos de normalização de relações com quatro países muçulmanos.
Como
as condições foram extremamente anormais, podem ter criado os elementos
para encerrar os quinze anos, em duas fases, de Netanyahu no poder.
Ou o primeiro-ministro poderá dizer, mais uma vez, que o anúncio de sua morte política foi um tanto precipitado.
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