O desprezo pelo cristianismo, tão comum em meios “progressistas”, representa um perigoso afastamento dos pilares da democracia norte-americana. Rodrigo Constantino para a Oeste:
Enquanto
a eleição presidencial norte-americana segue sendo questionada
judicialmente pelos republicanos, a nação continua dividida, e Joe Biden
fez um discurso em prol da união. As palavras são positivas, mas os
atos, nem tanto. Afinal, seu Partido Democrata tem sido responsável por
segregar o povo, demonizar os adversários e eleitores de Trump, e nem
sequer consegue condenar abertamente movimentos radicais e violentos
como Antifa e Black Lives Matter.
Além
disso, a política de identidade tem jogado mais lenha na fogueira da
divisão, o ataque ao legado dos “pais fundadores” é frequente e ideias
socialistas vão ganhando força dentro da base democrata. O partido que
hoje tem Bernie Sanders, Kamala Harris, Alexandra Ocasio-Cortez e Ilhan
Omar seria irreconhecível para um JFK, católico, anticomunista e
defensor de menos impostos. O tecido social da América está esgarçado, e
Trump é bem mais sintoma do que causa.
Nesse
contexto, talvez seja útil resgatar a análise daquele que foi o
observador mais arguto das peculiaridades norte-americanas que fizeram
dos Estados Unidos uma grande potência democrática. Alexis de
Tocqueville foi conhecer in loco a realidade do país e se encantou com
muitas características excepcionais, que criavam certo abismo em relação
à realidade europeia, em especial àquela francesa, de seu país natal.
Tocqueville
escreveu seu clássico A Democracia na América buscando contribuir para a
preservação da liberdade na França durante a conturbada transição da
aristocracia para a democracia. Apesar do tempo transcorrido, o livro
continua atual e válido em vários aspectos. Tocqueville reconhece a
importância do caráter nacional norte-americano para a liberdade
existente no país, e dá crédito aos religiosos puritanos pela moldagem
desse caráter.
Entre
as observações que fez sobre o país, consta a extraordinária capacidade
das associações voluntárias no dia a dia da vida norte-americana, como
uma força social muito mais potente e extensiva que o Estado. Se os
franceses se voltavam para o Estado, e os ingleses para a aristocracia,
os norte-americanos formavam livres associações uns com os outros quando
precisavam de alguma coisa.
Os
norte-americanos praticavam o autogoverno, em síntese. Não dependiam do
governo, mas se organizavam para alcançar os próprios objetivos. Ele
concluiu que a lei da associação é a primeira lei da democracia: “Entre
as leis que governam as sociedades humanas, há uma que parece ser mais
precisa e clara do que todas as outras. Se os homens devem continuar a
civilizar-se ou tornar-se civilizados, a arte de associação deve crescer
e melhorar, na mesma proporção em que aumentam as condições de
igualdade”.
A
igualdade de que falava Tocqueville não tem nenhum elo com a igualdade
pregada pela esquerda democrata hoje, voltada para resultados iguais,
independentemente do mérito ou valor gerado. Tocqueville deixou isso bem
claro numa passagem conhecida: “Democracia e socialismo não têm nada em
comum além de uma palavra: igualdade. Mas note a diferença: enquanto a
democracia procura a igualdade na liberdade, o socialismo procura
igualdade na restrição e na servidão”.
Os
norte-americanos imaginam, segundo observou Tocqueville, que está em
seu próprio interesse fazer contribuições para o bem-estar comum e o bem
público. O futuro deles e de seus filhos se beneficia disso. O bem
público está assim associado ao próprio interesse de cada um, ao dever
moral de quem se sente parte de um todo. Não é preciso falar em
altruísmo, pois a própria busca da satisfação dos interesses
particulares já leva um povo mais avançado culturalmente a cuidar dos
bens comuns. O norte-americano sente que a coisa pública é sua também, é
de todos.
Tocqueville
explica melhor seu ponto sobre o respeito do cidadão às leis: “Ele
obedece à sociedade não porque seja inferior aos que a dirigem ou menos
capaz de governar a si mesmo do que outro homem; ele obedece à sociedade
porque a união com seus semelhantes lhe parece útil e porque sabe que
essa união não pode existir sem um poder de controle”.
Mas
essa postura, para Tocqueville, era derivada de valores e costumes que a
religião ajudava a preservar. A importância que Tocqueville deu ao
fator religioso, especialmente o protestante, no sucesso relativo dos
Estados Unidos foi enorme. Conforme resume Michael Novak em seu The
Universal Hunger for Liberty, seriam basicamente cinco os aspectos
mundanos da utilidade religiosa: restrição aos vícios e ganhos na paz
social; ideias fixas, estáveis e gerais sobre as dinâmicas da vida; o
foco na questão de igualdade perante a lei; uma nova concepção de
moralidade como uma relação pessoal com Deus, e, portanto, um motivo
para agir de forma correta mesmo quando ninguém está observando; e, por
meio da elevada honra dedicada ao laço do matrimônio, uma regulação
tranquila das regras no casamento e em casa. Uma rede de confiança
inspirada pela fidelidade, alimentada dentro do lar familiar e criando
filhos felizes, isso aumentaria as chances de sucesso de um governo
republicano.
Para
Tocqueville, a religião vê na liberdade civil um nobre exercício das
faculdades do homem. Ela vê no mundo político um campo liberado pelo
Criador para os esforços do intelecto. A liberdade, por sua vez, vê na
religião a companheira de suas lutas e seus triunfos. Considera a
religião como salvaguarda dos costumes e os costumes como garantia das
leis e de sua própria durabilidade.
A
aristocracia artificial, a nobreza por nascimento, era algo
incompatível com a realidade democrática norte-americana, e Tocqueville
celebrava isso. O “homem comum” tinha um valor bem superior ao que ele
notava na Europa, e o ceticismo para com a classe governante era um
antídoto contra tiranias. Tocqueville certamente demonstraria
preocupação com a “tirania dos especialistas” na era moderna, com a
arrogância dos “homens da ciência” que desejam agir como “engenheiros
sociais”. Ele constatou: “O império moral da maioria se baseia na ideia
de que há mais esclarecimento e sabedoria em muitos homens reunidos do
que em um só, mais sabedoria no número do que na escolha dos
legisladores. Esta é a teoria da igualdade aplicada ao intelecto”.
O
que fez da América uma grande potência livre vem sendo abandonado faz
tempo, em especial pela esquerda democrata. Obama, em seus discursos,
diminuía a importância do empreendedor na criação de riqueza, apelando
para um coletivismo incompatível com a meritocracia individual. A
tentativa de apagar o passado e rejeitar as tradições herdadas é outra
postura antagônica àquilo que Tocqueville enxergava como crucial para a
manutenção do tecido social. O desprezo pelo cristianismo, tão comum em
meios “progressistas”, representa um perigoso afastamento dos pilares
norte-americanos.
Em
suma, seria ótimo se os democratas realmente desejassem maior união.
Mas para tanto seria necessário abandonar boa parte da retórica atual,
eivada de um sentimento de arrogância elitista e ressentimento tóxico
contra os “deploráveis”. Os democratas teriam também de depositar maior
confiança no cidadão, no indivíduo, e menos no papel estatal como
locomotiva do progresso e da “justiça social”. Tais crenças parecem bem
mais próximas da mentalidade francesa aristocrática dos tempos de
Tocqueville do que com aquilo que fez da América um caso excepcional de
sucesso. Os democratas precisam resgatar Tocqueville se querem mesmo
resgatar a América!
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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