Saint-Simon seria o novo Pedro dessa religião, e, com auxílio do Concílio, dirigiria o trabalho dos homens com muita inteligência e altruísmo. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Cientificismo
é um termo mais usado do que conhecido. Sempre aparece como xingamento,
porque é ruim mesmo. Mas aparece como xingamento, em geral, na boca dos
progressistas, que chamam de cientificista qualquer preocupação com a
objetividade.
Cientificismo
é um conceito muito importante, com uma história reveladora. Ele é a
crença na capacidade da Ciência de determinar todas as questões humanas e
sociais. Surgiu na França entre engenheiros. Sua primeira expressão foi
o sansimonismo, um tronco do qual saíram o positivismo e o marxismo.
Deste último ramo, mais prolífico, podemos dizer que brotaram todos os
sistemas que visam a justificar o capitalismo de compadrio, dentre os
quais o fascismo e o nazismo.
Friedrich
Hayek contou essa história numa série de artigos que se transformou no
livro “A Contra-Revolução da Ciência” (The Counter-Revolution of
Science), sem tradução em português.
O enigma do Bem Comum
Notório
por ser um economista austríaco ganhador de Nobel, Hayek foi também um
defensor da democracia na hora mais difícil, a II Guerra Mundial. Foi
quando escreveu para os ingleses “O Caminho da Servidão” (este, com mais
de uma tradução, sendo a mais recente da editora LVM), livro em que
tentava convencê-los de que a concentração de poder econômico implicava o
fim da democracia. Hayek estava exilado na Inglaterra, e via lá um
senso comum segundo o qual os alemães eram pessoas más que tentavam
implementar um modelo virtuoso de Estado, que estava sendo conseguido
pela União Soviética.
O
socialismo, dizia Hayek, implica ditadura porque implica concentração
de poder. Mas por que as pessoas aceitam, de bom grado, submeter-se a um
ditador? Segundo ele, porque acreditam que o Bem Comum é algo
facilmente discernível, e que todos os problemas da sociedade podem ser
sanados se um mandatário bem intencionado tomar as rédeas para resolver
tudo.
Cada
discussão no Parlamento leva uma vida. Por isso, o povo crê que os
políticos de modo geral demoram só porque são vagabundos, quando na
verdade pensar em cada particularidade das leis de um país toma tempo e
dá trabalho. Em seguida, o povo fica nervoso e delega poderes ao homem
de ímpeto… Para se sentir traído em seguida, porque não concorda tintim
por tintim com a noção de Bem Comum que então lhe é imposta de cima a
baixo.
Mas
de onde vem essa noção de que se pode resolver tudo assim, num estalar
de dedos, no topo de um governo central? Segundo Hayek, é resultado da
Contra-Revolução Científica, ocorrida na França do século XIX.
Revolução e Contra-Revolução
O
ícone da Revolução Científica é Galileu, mas aquele que serve de marco
para a conclusão do processo de criação da Ciência moderna é Isaac
Newton. Na época de Galileu, o conhecimento era produzido e
sistematizado na Universidade, que estava sujeita à Igreja Católica.
Galileu é contemporâneo da Reforma Protestante, mas ainda não havia
muita estabilidade entre os protestantes, e inexistiam movimentos laicos
a subsidiar esse enfrentamento científico. Assim, o conhecimento era
algo quase estático, submisso à autoridade papal, herdado da
Antiguidade, digerido pelo tomismo e codificado em manuais de Coimbra.
Quer
saber como se origina o arco-íris? Vá ao manual do Colégio de Coimbra, e
lá constará uma explicação fundamentada em Aristóteles e numa dúzia de
autoridades antigas ou renascentistas. Depois da Revolução Científica, a
Ciência estava liberta da autoridade eclesiástica; só prestava contas à
Razão e à Experiência. Os padres que dessem seus pulos para deixar a
metafísica intacta a despeito de descobertas científicas.
Isaac
Newton (1643 – 1727), em sua nação protestante, lançou a pá de cal na
autoridade das universidades católicas tradicionais. Na catolicíssima
França, os leigos criaram Academias laicas, os salões, as revistas, e
tocaram uma pujante vida intelectual fora da universidade. Enquanto
isso, no jesuítico Império Português, em 1746, era proibido ensinar as
“novidades” de Newton e até de Descartes (1596 – 1650). Seguia-se
aristotélico até o Marquês de Pombal expulsar os jesuítas, em 1759. Aí,
também, a biblioteca do Colégio da Bahia, que formou Antonio Vieira,
virou embrulho de peixe.
Mas
voltemos para a parte agitada da Europa: quando Newton fez seu trabalho
mais importante, deu o nome de “Princípios matemáticos da filosofia
natural”, porque tinha-se, ainda, uma concepção unitária do
conhecimento, de modo que a Ciência, com C maiúsculo, distinta da
filosofia, ainda não existia no senso comum. A filosofia natural, ou
física, era só mais um ramo da filosofia. As humanidades eram a
filosofia moral. Por isso os filósofos morais entraram em parafuso,
perguntando-se, desde o Iluminismo, qual a razão de a filosofia da
natureza ir tão melhor do que ela.
Na
França epiléptica que se seguiu à Revolução, Napoleão terminou por
consagrar a Escola Politécnica como modelo ideal de instituição do
conhecimento, sacolejando para lá a aristotélica Sorbonne. A técnica
tratorou as humanidades, o latim e o grego deixaram de ser ensinados
rotineiramente, e todo um legado clássico humanístico – Heródoto,
Cícero, Tácito – caiu no esquecimento como se fosse tão obsoleto quanto a
física de Aristóteles. O que os substituiria? A mesma coisa que
substituiu a física aristotélica: números e fórmulas.
Gente não é objeto inanimado
Segundo
Hayek, as ciências humanas e naturais demandam atitudes mentais
opostas: umas devem apagar a subjetividade em nome da objetividade,
enquanto que as outras estudam precisamente os sujeitos, de modo que uma
total anulação da subjetividade do cientista é indesejável e até
prejudicial.
Na
origem da ciência com C minúsculo (da filosofia natural e da alquimia),
os pensadores erravam porque tentavam penetrar no âmago das paixões e
inclinações das coisas físicas: o fogo subia porque queria, etc. Quando a
matéria passou a ser considerada apenas objeto inanimado, a ser medido e
pesado, a Ciência andou. Mas tentar considerar agentes humanos como se
fossem, também eles, meros objetos a serem quantificados, implica o
suicídio das humanidades.
É
preciso, porém, não confundir a subjetividade das ciências humanas com a
sua total falta de objetividade, dando uma de Paulo Freire. Diz Hayek:
“Enquanto, para o cientista natural, o contraste entre fatos objetivos e
opiniões subjetivas é simples, a distinção não pode ser aplicada com
tanta presteza ao objeto das ciências sociais. A razão é que o objeto,
os ‘fatos’ das ciências sociais, também são opiniões — não as opiniões
do estudioso dos fenômenos naturais, claro, mas as opiniões daqueles
cujas ações produzem o objeto do estudioso. Nesse sentido, os fatos são
tão pouco ‘subjetivos’ quanto os das ciências naturais, porque
independem do observador particular; o que ele estuda não é determinado
por sua imaginação ou fantasia: é dado à observação de diferentes
pessoas. Mas, em outro sentido, se distinguimos fatos de opinião, os
fatos das ciências sociais são meras opiniões, pensamentos daqueles
cujas ações estudamos.”
Por
isso, as ciências sociais “lidam com fenômenos que só podem ser
entendidos porque o objeto de nosso estudo tem uma mente de estrutura
igual à nossa. Isto não é um fato menos empírico do que o nosso
conhecimento do mundo exterior. É mostrado não só pela mera
possibilidade de nos comunicarmos com outras pessoas – agimos com base
neste conhecimento toda vez que falamos ou escrevemos”.
Ora,
quando um arqueólogo encontra uma faca numa escavação de civilização
ágrafa e desconhecida, como ele poderá saber que aquilo serve para
cortar, senão consultando a sua própria alma? Não há nada numa faca
atestando por escrito que aquilo serve para cortar; é apenas a presunção
de que nós conhecemos o Homem que nos faz crer que uma faca serve para
cortar em qualquer civilização.
Há
quem estude o homem apenas como se fosse um corpo inanimado, com
tabelas e números? Hoje, é o que mais há. Analisei aqui um estudo dos
EUA feito por gente que não pôs um pé no hospital, mas se julgava capaz
de recomendar um apartheid em hospitais neonatais. Eu só posso
compreender esse tipo de estudo se eu tiver uma noção das opiniões que
guiam esses pseudocientistas depravados, que pertencem ao conjunto dos
tarados por raça. Primeiro eles creem que os humanos só pensam naquilo —
na raça — depois, saem catando dados brutos para fomentar apartheid.
Fazem isso sem sequer pensar em se colocar no lugar dos médicos ou
pacientes: sua humanidade não lhes confere nenhuma vantagem científica.
A religião dos engenheiros
Para
além das considerações epistemológicas (isto é, relativas à filosofia
da ciência) que rascunhei, Hayek também traz um histórico muito
iluminador dos primórdios do cientificismo. O sansimonismo foi fundado
pelo Conde de Saint-Simon, um ricaço extravagante que terminou na
miséria, gabando-se de ter experimentado diversas posições sociais ao
longo da vida. Os engenheiros da Escola Politécnica adoravam ele.
Ele
chegou a planejar uma sociedade que girasse em torno do culto
divinizado a Newton. O Concílio de Newton substituiria o Vaticano como
representante de Deus, e seria composto por 21 indivíduos de 7
categorias: um trio de matemáticos, outro de físicos, químicos,
fisiólogos, literatos, pintores e músicos. Os filósofos teriam sido
cassados pelos fisiólogos, tal como os químicos cassaram os alquimistas.
Uma das missões desse Concílio seria impedir a eterna luta de classes,
que existe necessariamente entre os proprietários e os despossuídos.
Saint-Simon
seria o novo Pedro dessa religião, e, com auxílio do Concílio,
dirigiria o trabalho dos homens com muita inteligência e altruísmo.
Estavam previstos o fim da propriedade privada e da liberdade de
expressão. A concepção da participação dos artistas é uma antecipação da
propaganda. Arte se torna propaganda – que é o verdadeiro nome da “arte
engajada”.
O
movimento alcançaria o seu pináculo com outro doido, talvez mais doido
do que ele, chamado Prosper Enfantin. Também se considerava um Papa, e
chegou a criar uma comuna de sansimonianos celibatários militaristas com
roupinhas esquisitas e uniformizadas. Eles lembravam a Hayek o nazismo
por causa do caráter proselitista, disciplinado e militarista. Enfantin,
papa do Ocidente, foi ao Oriente procurar a Mulher Livre, que haveria
de se casar com ele, virar papisa e trazer concórdia ao mundo. Desse
movimento todo saiu a construção do Canal de Suez e a criação de bancos
públicos.
Hayek
acha que os hegelianos alemães eram, na verdade, sansimonianos
disfarçados, depois que o movimento caiu em desgraça. Os alemães
adoraram o movimento.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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