Para nos livrarmos de nossas responsabilidades, permitimos ao governo intromissões cada vez mais sem conexão com a realidade em nossa vida. Theodore Dalrymple, via Oeste:
Quase
não é preciso dizer que todas as democracias ocidentais hoje são
incomparavelmente mais tirânicas ou intrusivas no cotidiano de seus
cidadãos do que o governo contra o qual os colonos norte-americanos se
revoltaram no século 18. Em grande parte, isso se deve à maior
complexidade técnica e às capacidades das sociedades modernas. No
entanto, é também devido às responsabilidades muito maiores que os
governos e suas burocracias associadas têm tomado para si, muitas vezes
com a cumplicidade dos cidadãos. O fato é que esperamos demais dos
governos e lhes damos responsabilidades que deveriam ser nossas. Tanto
para o bem quanto para o mal: o bem geralmente é mais tangível, mas nem
por isso mais real do que o mal.
As
burocracias parecem ter uma tendência ao absurdo, quando não ao
sinistro. Eu trabalhava como médico em uma prisão quando o World Trade
Center foi atacado em Nova York. Seis meses depois, recebi do governo um
formulário que fui obrigado a preencher para continuar no emprego.
O
papel continha várias perguntas, entre as quais se eu já tinha sido,
era agora ou sempre havia pretendido ser um terrorista. Acho que não
tenho que apontar o ridículo dessa questão (exceto possivelmente para
burocratas). Estava trabalhando na prisão fazia 11 anos: qual a
probabilidade de me tornar um terrorista, ou, se tivesse a intenção de
me tornar um terrorista, de preencher o formulário com sinceridade? Mas
suponho que, se eu me tornasse um deles, o governo seria bem capaz de
dizer: “Bem, fizemos tudo o que podíamos, perguntamos a ele, e ele nos
disse que não era um terrorista”. Em outras palavras, eu não era apenas
um terrorista, era algo muito pior, um MENTIROSO!
Agora,
a questão é que esse formulário não se desenvolveu, imprimiu nem se
distribuiu sozinho; foi o resultado da ação humana e do trabalho, ou
seja, dos burocratas. Imagine o imenso trabalho necessário para
produzi-lo, os seis meses de esforços concentrados, com reuniões,
artigos de discussão, contrapropostas, e assim por diante! Finalmente,
depois de muita labuta, o trabalho foi entregue. Milhares de pessoas
declararam que nunca foram, não eram nem nunca seriam terroristas.
Surpresa, surpresa! Ou melhor, teria sido uma surpresa se alguém tivesse
olhado para as respostas — o que, é claro, ninguém fez; os formulários
preenchidos foram simplesmente arquivados em algum lugar, para nunca
mais ser lembrados. Contudo, os burocratas que levaram todo o projeto a
essa conclusão bem-sucedida, sem dúvida, devem ter sido recompensados
com uma promoção por suas habilidades organizacionais, até mesmo a
cargos com responsabilidades vertiginosamente mais altas. Nem todo
mundo, afinal, tem a capacidade de organizar uma pesquisa tão grande e o
próprio governo precisa de pessoas talentosas.
Na
Grã-Bretanha, houve um médico terrível chamado dr. Shipman. Em dado
momento, descobriu-se que ele tinha deliberadamente matado seus
pacientes durante 25 anos, num total de aproximadamente 300 pessoas.
Obviamente, o governo tinha de fazer algo, mesmo que o algo que fizesse
não tivesse nada a ver com o que seria necessário.
As
autoridades instituíram um sistema de avaliações anuais de médicos,
presumivelmente para verificar se eles não eram serial killers.
Consistia em uma entrevista com outro médico que fazia uma série de
perguntas obrigatórias, estabelecidas; entre elas, esta: “Você tem
alguma preocupação com sua honestidade?”.
Quando
me fizeram essa pergunta pela primeira vez, eu disse: “Responderei a
essa pergunta se antes você responder a duas outras”. “Quais?”, indagou o
médico que deveria me avaliar. “A primeira é: que tipo de pessoa
responderia a tal pergunta?”. “E a segunda?”, quis saber o avaliador.
“Que tipo de pessoa perguntaria isso?”
O
avaliador era um homem inteligente e sabia exatamente o que eu queria
dizer. “Sei de tudo isso”, disse ele, “mas apenas responda à pergunta
para que possamos terminar o mais rápido possível.”
Isso
tudo era absurdo, mas era mais do que meramente absurdo: era sinistro.
Todo o procedimento teve o efeito de destruir a própria probidade que
deveria investigar. Todas as pessoas que responderam à pergunta sabiam
que era absurda, pelo menos do ponto de vista de seu propósito
ostensivo. No entanto, todos responderam apenas para acabar com aquilo,
como condição de manter o emprego. Não só isso foi humilhante para
indivíduos de alta inteligência, mas os transformou no tipo de
funcionário que está principalmente preocupado em preservar o próprio
trabalho. Transformou-os de profissionais em aparatos. E um grupo de
pessoas que perdeu sua probidade é muito mais fácil de controlar do que
aquele que mantém sua integridade.
Quando
entrei nos Estados Unidos, tive de declarar em um formulário que eu não
era, nem nunca tinha sido, um membro do Partido Comunista. Com o fim da
Guerra Fria, eu tinha, no lugar disso, de declarar, de forma diferente,
que eu não era, nem nunca tinha sido, um genocida.
Não
era muito difícil adivinhar as respostas corretas se eu quisesse ser
admitido nos Estados Unidos. Não estou totalmente convencido, no
entanto, de que, se tivesse realmente me declarado um comunista
genocida, alguém teria notado e recusado minha admissão. O objetivo de
fazer a pergunta não era coletar informações, mas tão somente demonstrar
quem mandava. O indivíduo que preenchia o papel era apenas um único
grão entrando em um moinho gigante — ele era, de fato, nada.
No
caso da resposta às atividades assassinas do dr. Shipman na
Grã-Bretanha, a medida levou — por meio da imposição de procedimentos
cada vez mais burocráticos que os médicos tiveram de cumprir — à
aposentadoria precoce de cerca de um sexto dos profissionais de
medicina, e isso em um momento de aguda escassez de médicos.
O
Brexit foi uma demonstração de parte expressiva da sociedade britânica
de sua exaustão com os burocratas de Bruxelas. Eles mandam mais nos
destinos do país do que líderes democraticamente eleitos. Numerosos
“técnicos”, supostos especialistas em áreas diversas, determinam a
quantidade de penas que um travesseiro de penas de ganso tem de ter, a
forma de medir a acidez do azeite de oliva, a quantidade de trigo que um
país deve produzir. São burocratas que há mais de vinte anos não pagam
um almoço em restaurante chique com o cartão de crédito pessoal.
Utilizam sempre o cartão corporativo. Seu trabalho, bancado pelo cidadão
pagador de impostos, consiste basicamente em discutir inutilidades e
empilhar regulações.
O
problema é o seguinte: todas as tentativas de reduzir a burocracia a
aumentam. Uma história conta que um funcionário público indiano
perguntou a seu superior se ele poderia jogar fora arquivos muito
antigos, para os quais ninguém jamais olharia novamente. Seu chefe
pensou por um momento e então disse: “Sim, desde que antes você faça
três cópias deles”.
Theodore
Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels.
Daniels é autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas.
Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações),
estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela e A Faca
Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador
contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de
imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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