Não arrebanhamos muitos votos falando mal dos seres humanos, né? Coluna de Luiz Felipe Pondé para a FSP:
O
encontro da esquerda com o mercado, que assistimos a olhos nus, tem
várias fontes. Aponto aqui uma delas, que sendo fruto de uma questão
filosófica muito antiga, passando pelos debates políticos nos séculos 17
e 18, acabou por aterrissar nos departamentos de marketing. E nessa
aterrisagem, acabou por eleger Jean-Jacques Rousseau (século 18) como
seu patrono.
Podemos
resumir a ancestralidade dessa questão de três formas distintas, mas
relacionadas. 1. O homem é mau ou bom? 2. Sua natureza tende a autonomia
ou depende sempre de formas exteriores de contenção? 3. A razão
controla a vontade ou essa é passional e irracional?
Claro
que atravessamos aqui longos e complexos debates sobre livre arbítrio,
pecado, autonomia da razão, papel das leis, caráter perigoso das paixões
e afins. Evidente que essas questões se transformaram ao longo dos
séculos e mesmo a forma de colocá-las sofreu mudanças.
Raro
quem hoje considera a primeira delas como possível de ser formulada
deste modo. Quando se trata da segunda, quase todo mundo acha que a
autonomia depende de um sujeito em interação com as formas exteriores de
contenção. Quase ninguém hoje assume como possível fazer essa separação
bruta entre razão e paixões, tendo-se chegado mesmo a propor conceitos
para o uso da psicologia do marketing do tipo inteligência emocional e
similares.
O
fato é que essas questões, por mais antigas que sejam, têm fortes
apelos no marketing hoje. E é aqui que começa o encontro entre ele e a
esquerda. Mas, antes, vejamos os debates políticos referidos acima.
Autores
como Thomas Hobbes (século 17) e Edmund Burke (século 18), os
"pessimistas", e Jean-Jacques Rousseau, o "otimista", conceberam, nas
suas discussões sobre filosofia política, mesmo que às vezes de modo
implícito, uma visão de ser humano.
Aqui
se dá, de modo definitivo, uma compreensão –pessimista ou otimista– de
natureza humana que será essencial no debate político posterior, unindo
democracia e mercado numa irmandade filosófica.
O
autor contemporâneo Thomas Sowell resumiu bem esse debate ao definir
duas concepções de ser humano, sendo uma restrita e outra irrestrita.
A
primeira, mais próxima de um pessimismo antropológico, dito de forma
superficial, entende o ser humano como sendo limitado em sua capacidade
comportamental. O restrito aqui significa limitado na sua
perfectibilidade, isto é, o homem não é capaz de se aperfeiçoar
indefinidamente.
Já
a irrestrita entende o homem como um ser infinitamente aperfeiçoável,
por isso seu halo de otimista. A esquerda e o mercado amam esta visão
irrestrita.
O
conflito entre essas duas visões desenha, em traços largos, duas
concepções de ser humano, sendo que a pessimista é ruim para os
negócios.
A
democracia, por sua vez, na sua condição de mito político fundacional
da era moderna ocidental, também vê com maus olhos a visão restrita por
ser demasiadamente contida.
Não
arrebanhamos muitos votos falando mal dos seres humanos, né? Seria o
homem capaz de toda autonomia que a forma mítica de democracia supõe?
Por outro lado, a visão restrita autorizaria governos de maior tutela do
ser humano, logo, menos democráticos? Não seria por esta razão que todo
discurso sobre a democracia carrega nos tons de um cidadão autônomo
aperfeiçoável pela própria democracia? E aqui chegamos à antropologia do
marketing.
Não
é por mero acaso que a categoria de consumidor cada vez mais se
aproxima de cidadão, principalmente depois da sociedade em rede. Se você
quer ganhar a simpatia do consumidor cidadão você deve agradá-lo. Ainda
em 1974, no ensaio primoroso "Contemplação Carinhosa da Angústia", a
escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís anunciava, com tristeza, que
vivíamos numa era em que todo mundo queria agradar todo mundo. O Padre, o
metafísico, o médico, o professor, os pais.
Se
você quer ganhar votos e vender produtos fale bem das pessoas, de suas
capacidades e de seu futuro de sucesso infinito. Diga que ele pode tudo,
que nós poderemos sempre. Enfim, o otimista Jean-Jacques é o patrono do
marketing.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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