quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Os brancos gostam de faturar na bilheteria com o sofrimento dos negros

 



O racismo, seja do bem ou do mal, não consegue ultrapassar a cor da pelo. João Pereira Coutinho, via FSP:


Os problemas raciais nos Estados Unidos não são para principiantes. Não são para mim. Não são para você, leitor branco, de classe média, que nunca sofreu na pele a violência da discriminação ou o paternalismo benigno, e usualmente branco, que se abate sobre os negros. Como sei disso? Porque escuto e tento aprender, sobretudo com quem tem a pele no jogo: os próprios negros.

Sobre a violência da discriminação, há incontáveis filmes, livros ou tratados. O paternalismo benigno é mais raro, até porque a classe média branca, que fatura na bilheteria ou faz carreira universitária com o sofrimento dos negros, não gosta de se olhar no espelho. E dificilmente aceitará duas obras de três artistas e pensadores negros como Radha Blank, Shelby Steele e Eli Steele.

Primeiro, as senhoras. Assisti a The Forty-Year-Old Version, disponível na Netflix, totalmente abismado com o talento da senhora Blank. Ela escreveu, interpretou e dirigiu um dos filmes do ano. É a história de uma mulher negra a caminho dos 40, de nome Radha, que foi em tempos uma promessa da nova dramaturgia. Mas os anos passaram. Radha não teve outra produção de sucesso. E também não está disponível para ser o clichê do negro que os brancos adoram, produzindo “pornografia de pobre” (palavras dela) para contentar o bolso (e a má consciência) das elites “gentrificadoras”.

Antes de ser negra, Radha é uma mulher a caminho da meia idade, com os dramas inerentes a esse delicado período. Mas quem está interessado em financiar uma peça sua que não seja “pornografia de pobre”? Quem está interessado em vê-la como uma mulher de corpo e alma inteiras? Não o produtor (branco), que tem “um prazer quase erótico” com os dramas da comunidade negra.

Perante esse impasse, Radha procura reinventar-se como rapper. Não para verter na música o conhecido coquetel de violência e ressentimento. Mas para, através da música, resgatar as suas múltiplas identidades como mulher, negra, escritora, celibatária, satirista e poeta.

Eis a sutil e demolidora mensagem do filme: o racismo, seja do bem ou do mal, é não conseguir ultrapassar a cor da pele. É tentar aprisionar os negros com as correntes, reais ou conceituais, que são mais vantajosas para os brancos. Ah, a exploração, sempre a exploração!

Se Radha Blank denuncia o paternalismo branco, que dizer de What Killed Michael Brown?, de Shelby Steele e Eli Steele? A Amazon tentou remover a obra da sua plataforma de streaming. Depois de críticas mil, recuou e o filme pode ser visto. Vitória para a liberdade de expressão.

Muito modestamente, não compro tudo. Os Steele, pai e filho, regressaram a Ferguson, no estado americano de Missouri, para revisitar a morte de um jovem negro (Michael Brown, 18 anos) às mãos de um policial branco (Darren Wilson). Fato: antes de ser alvejado, Brown assaltou uma loja de conveniência e tentou agredir o referido policial. Mas, estando desarmado, será que a única forma de o imobilizar era despejando o revólver sobre o seu corpo?

Repito: não compro. Mas compro várias perguntas que Shelby Steele, ele próprio descendente de escravos e vítima da segregação durante a sua infância e juventude, vai desfiando ao longo da obra. Como explicar que a morte de Michael Brown tenha incendiado a América em 2016, mas ninguém tenha saído às ruas para protestar contra os 762 negros que foram mortos só em Chicago no mesmo ano?

A resposta, imperdoável para Steele, é que esses 762 negros, na maioria, foram assassinados por outros negros. E uma parte do ativismo que domina e fatura com o “racismo sistêmico” está completamente cega para o que se passa no interior das próprias comunidades negras mais pobres.

O ponto central da obra dos Steele é que foi também essa pobreza, e não apenas o policial branco, que matou Michael Brown. Uma pobreza que se explica com a herança viciosa do passado escravocrata e segregacionista da América, sem dúvida. Mas também com a cultura assistencialista que a elite liberal branca foi impondo a partir da década de 1960, removendo toda a responsabilidade – individual, familiar, educacional e cívica – dos ombros dos próprios negros. Como se eles fossem crianças, incapazes de autodeterminação.

É uma atitude neocolonial, afirma Steele, para além de tragicamente irônica: os negros, depois de todas as provações, permitiram que os seus destinos voltassem a ser decididos pelos brancos. Como resultado, ficaram novamente prisioneiros da “bondade” dos novos senhores.

O filósofo Isaiah Berlin, recordando Kant, costumava dizer que o paternalismo é a pior forma de opressão. Depois de assistir às obras de Radha Blank e da família Steele, é difícil discordar.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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