O racismo, seja do bem ou do mal, não consegue ultrapassar a cor da pelo. João Pereira Coutinho, via FSP:
Os
problemas raciais nos Estados Unidos não são para principiantes. Não
são para mim. Não são para você, leitor branco, de classe média, que
nunca sofreu na pele a violência da discriminação ou o paternalismo
benigno, e usualmente branco, que se abate sobre os negros. Como sei
disso? Porque escuto e tento aprender, sobretudo com quem tem a pele no
jogo: os próprios negros.
Sobre
a violência da discriminação, há incontáveis filmes, livros ou
tratados. O paternalismo benigno é mais raro, até porque a classe média
branca, que fatura na bilheteria ou faz carreira universitária com o
sofrimento dos negros, não gosta de se olhar no espelho. E dificilmente
aceitará duas obras de três artistas e pensadores negros como Radha
Blank, Shelby Steele e Eli Steele.
Primeiro,
as senhoras. Assisti a The Forty-Year-Old Version, disponível na
Netflix, totalmente abismado com o talento da senhora Blank. Ela
escreveu, interpretou e dirigiu um dos filmes do ano. É a história de
uma mulher negra a caminho dos 40, de nome Radha, que foi em tempos uma
promessa da nova dramaturgia. Mas os anos passaram. Radha não teve outra
produção de sucesso. E também não está disponível para ser o clichê do
negro que os brancos adoram, produzindo “pornografia de pobre” (palavras
dela) para contentar o bolso (e a má consciência) das elites
“gentrificadoras”.
Antes
de ser negra, Radha é uma mulher a caminho da meia idade, com os dramas
inerentes a esse delicado período. Mas quem está interessado em
financiar uma peça sua que não seja “pornografia de pobre”? Quem está
interessado em vê-la como uma mulher de corpo e alma inteiras? Não o
produtor (branco), que tem “um prazer quase erótico” com os dramas da
comunidade negra.
Perante
esse impasse, Radha procura reinventar-se como rapper. Não para verter
na música o conhecido coquetel de violência e ressentimento. Mas para,
através da música, resgatar as suas múltiplas identidades como mulher,
negra, escritora, celibatária, satirista e poeta.
Eis
a sutil e demolidora mensagem do filme: o racismo, seja do bem ou do
mal, é não conseguir ultrapassar a cor da pele. É tentar aprisionar os
negros com as correntes, reais ou conceituais, que são mais vantajosas
para os brancos. Ah, a exploração, sempre a exploração!
Se
Radha Blank denuncia o paternalismo branco, que dizer de What Killed
Michael Brown?, de Shelby Steele e Eli Steele? A Amazon tentou remover a
obra da sua plataforma de streaming. Depois de críticas mil, recuou e o
filme pode ser visto. Vitória para a liberdade de expressão.
Muito
modestamente, não compro tudo. Os Steele, pai e filho, regressaram a
Ferguson, no estado americano de Missouri, para revisitar a morte de um
jovem negro (Michael Brown, 18 anos) às mãos de um policial branco
(Darren Wilson). Fato: antes de ser alvejado, Brown assaltou uma loja de
conveniência e tentou agredir o referido policial. Mas, estando
desarmado, será que a única forma de o imobilizar era despejando o
revólver sobre o seu corpo?
Repito:
não compro. Mas compro várias perguntas que Shelby Steele, ele próprio
descendente de escravos e vítima da segregação durante a sua infância e
juventude, vai desfiando ao longo da obra. Como explicar que a morte de
Michael Brown tenha incendiado a América em 2016, mas ninguém tenha
saído às ruas para protestar contra os 762 negros que foram mortos só em
Chicago no mesmo ano?
A
resposta, imperdoável para Steele, é que esses 762 negros, na maioria,
foram assassinados por outros negros. E uma parte do ativismo que domina
e fatura com o “racismo sistêmico” está completamente cega para o que
se passa no interior das próprias comunidades negras mais pobres.
O
ponto central da obra dos Steele é que foi também essa pobreza, e não
apenas o policial branco, que matou Michael Brown. Uma pobreza que se
explica com a herança viciosa do passado escravocrata e segregacionista
da América, sem dúvida. Mas também com a cultura assistencialista que a
elite liberal branca foi impondo a partir da década de 1960, removendo
toda a responsabilidade – individual, familiar, educacional e cívica –
dos ombros dos próprios negros. Como se eles fossem crianças, incapazes
de autodeterminação.
É
uma atitude neocolonial, afirma Steele, para além de tragicamente
irônica: os negros, depois de todas as provações, permitiram que os seus
destinos voltassem a ser decididos pelos brancos. Como resultado,
ficaram novamente prisioneiros da “bondade” dos novos senhores.
O
filósofo Isaiah Berlin, recordando Kant, costumava dizer que o
paternalismo é a pior forma de opressão. Depois de assistir às obras de
Radha Blank e da família Steele, é difícil discordar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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