Não há dúvidas de que temos de cuidar da nossa soberania e da nossa segurança. Estas não podem estar desligadas da soberania e segurança da UE e dos EUA. Fernando Alexandre para o Observador, de Lisboa:
O embaixador americano em Lisboa, George Glass, numa entrevista ao Expresso,
lançou um ultimatum. Portugal tem “de escolher entre os aliados e os
chineses.” A opção pelos aliados implica o afastamento da Huawei da nova
rede 5G e a não adjudicação do novo terminal do porto de Sines a uma
empresa chinesa. Lançou também avisos sobre possíveis sanções em
resultado da aquisição de 30% do capital da maior construtura
portuguesa, a Mota-Engil, pelo conglomerado chinês, CCCC.
Estas
ameaças do embaixador americano são mais um reflexo da “guerra fria
tecnológica” entre os EUA e a China. Nos últimos anos, a China tornou
mais notórias as suas ambições hegemónicas. A China é o maior exportador
mundial e, em paridades de poder de compra, é a maior economia do
globo. É um gigante com 1,4 mil milhões de habitantes e está na linha da
frente da investigação e da inovação tecnológica em áreas como a
inteligência artificial, o 5G, as energias renováveis ou o aeroespacial.
A hegemonia dos EUA está em risco. Sentem-se ameaçados.
Não
foram só os EUA a sentirem-se ameaçados pela ascensão meteórica da
China no tabuleiro geopolítico mundial. Nos últimos anos, vários países
europeus – e a própria União Europeia – manifestaram a sua preocupação
com o investimento chinês em sectores considerados essenciais ou
estratégicos para a sua segurança e soberania.
Desde
2014, a China aumentou significativamente o investimento na Europa.
Empresas de áreas tecnológicas e infraestruturas críticas foram alvos
importantes dos investidores chineses. Na primeira vaga de compras,
destacou-se a aquisição de empresas como a REN e a EDP, em Portugal, e
do principal porto grego, o porto de Pireu. A aflição financeira dos
dois países resgatados pela troika tornou-os mais vulneráveis nos
processos de alienação daqueles ativos estratégicos. Importa lembrar que
a privatização daquelas entidades fazia parte dos memorandos de
entendimento assinados com o Fundo Monetário Internacional, a Comissão
Europeia e o Banco Central Europeu. Nessa altura, a venda de ativos em
sectores críticos para a soberania de países como Portugal ou a Grécia
não incomodou os países do centro da Europa.
O
caso mudou de figura quando se começou a associar a estratégia chinesa
de aquisição de ativos à transferência de tecnologia. O momento de
viragem foi, provavelmente, em 2016, com a compra pelos chineses da
empresa alemã Kuka, um dos líderes mundiais na robótica. Em 2017, a
Comissão Europeia, então liderada por Jean-Claude Juncker, dava sinais
de inquietação e avançou com uma proposta. Pretendia passar a emitir
pareceres não vinculativos sobre as compras de ativos por Estados
estrangeiros que pudessem pôr em causa a segurança europeia. Portugal
foi um dos países que se opuseram a esta proposta. Compreende-se a
posição do Governo de António Costa. O investimento chinês, também no
sector imobiliário através dos vistos gold, continuava a ser muito
importante para a capitalização da economia portuguesa.
Nas
últimas décadas, a Alemanha foi um dos grandes beneficiários do
comércio internacional com a China. Enquanto a concorrência chinesa se
fez sentir apenas sobre os sectores de baixa e média tecnologia –
prejudicando economias como a portuguesa -, a Alemanha e os EUA
desvalorizaram os efeitos negativos das relações comerciais com a China.
Os próprios suecos estavam muito satisfeitos com a aquisição da Volvo,
em 2010, pelos chineses. Afinal de contas, os chineses permitiram que
tudo continuasse na Suécia, isto é, o carro elétrico continuou a ser
desenvolvido na Suécia. Porém, convém não esquecer que toda a essa
tecnologia passou a ser propriedade dos chineses.
Hoje,
a China é uma ameaça à soberania industrial e tecnológica dos EUA e da
Europa. Na sua estratégia industrial 2030, a Alemanha tem como lema o
Made in Germany e a autonomia tecnológica como um dos seus objetivos.
Também o programa Next Generation EU para a recuperação europeia tem
como um dos princípios reforçar a autonomia da Europa em áreas
consideradas estratégicas.
A
perda de liderança tecnológica é um risco real para a soberania da
Europa e os EUA. Sendo a China, por assim dizer, o challenger, os riscos
para o Ocidente são maiores por dois motivos principais. Primeiro, o
investimento e a atividade das empresas chinesas confundem-se com o
Estado. As grandes empresas são um prolongamento do Estado chinês, não
existem como entidades autónomas – esta é uma das especificidades do
“capitalismo” chinês. Segundo, no centro dos recentes confrontos estão
gigantes tecnológicos chineses, gigantes cujo acesso privilegiado a
informação pode pôr em causa a segurança dos países ocidentais. Todos
estes riscos são amplificados pela natureza totalitária do regime
chinês.
Para
combater aqueles riscos, os EUA têm recorrido a medidas, no mínimo,
originais. Foi o que aconteceu no caso da rede social TikTok. A
presidência americana obrigou a empresa proprietária chinesa a vender
20% do capital a uma empresa americana. A Oracle ficará responsável por
controlar a utilização de dados daquela rede social.
Em
relação à Huawei, os EUA mostraram nos últimos meses a sua determinação
em limitar a expansão do maior fornecedor mundial de equipamento para
redes móveis. Os receios de que as redes da Huawei possam permitir
acesso a informação com carácter confidencial e relevante para a
segurança nacional dos EUA não são de agora. Em maio deste ano, os EUA
impuseram restrições à venda de componentes à Huawei produzidos por
empresas americanas. Com a chegada da rede 5G, os EUA têm “aconselhado”
os seus aliados a não utilizarem equipamentos daquela empresa chinesa.
Em
outubro, o governo português apresentará as regras para o leilão para a
nova rede 5G. Esta discussão tem estado presente em vários países
europeus. A opção parecia ir no sentido de limitar o acesso da empresa
chinesa às antenas, afastando-a do coração da rede. O Reino Unido, a
França, a Austrália, Singapura ou o Canadá avançaram nesse sentido. Tal
como Portugal, a Alemanha só anunciará a decisão nos próximos meses.
Para
além de um aliado histórico, os Estados Unidos, em 2019, foram o quinto
principal cliente das exportações de bens (5% das exportações totais) e
de viagens e turismo (7% das receitas totais). Por outro lado, a China
representa apenas 1% das vendas de bens portugueses ao estrangeiro e a
Ásia como um todo representa apenas 3% das vendas de viagens e turismo
(dados da Pordata).
Não
há dúvidas de que temos de cuidar da nossa relação com os EUA. Também
não há dúvidas de que temos de cuidar da nossa soberania e da nossa
segurança. Estas não podem estar desligadas da soberania e segurança da
UE e dos EUA. Para que todos estes interesses se conjuguem, é necessário
que, ao contrário do que aconteceu no tempo da troika, os nossos
aliados não nos falhem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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