quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O regresso do "centro vital"?

 



De súbito, nas duas últimas semanas, três conferências internacionais sucessivas recordaram vigorosamente a importância crucial do “centro vital” para a sobrevivência das democracias liberais. Artigo do professor João Carlos Espada para o Observador:


O termo “centro vital” foi celebrizado em 1949 pelo livro de Arthur Schlesinger, Jr — The Vital Center: The Politics of Freedom. O autor não se referia a uma família política nem a um partido político. Por “centro vital” ele designava um conjunto de pressupostos que são partilhados por todas as famílias políticas que se reconhecem na democracia liberal.

Foi a existência de um centro vital forte que salvou as democracias de língua inglesa da escalada autoritária (comunista, fascista e nazi) dos anos 1917-40 e que lhes permitiu vencer a II Guerra Mundial contra o nazismo e o fascismo. Depois disso, foi o centro vital que preservou as democracias euro-atlânticas durante a Guerra Fria e que lhes permitiu derrotar o comunismo soviético em 1989. Em Portugal, foi o centro vital que permitiu derrotar a tentativa de golpe de estado comunista, em 25 de Novembro de 1975, evitando simultaneamente uma derrapagem autoritária de sinal contrário, e sustentando a alternância democrática desde então. Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral, Ramalho Eanes, e a seguir Cavaco Silva, foram naquela época os representantes do “centro vital”.

Por outras palavras, o conceito de “centro vital” designa um chão comum de valores liberais-democráticos partilhados pela esquerda e pela direita democráticas. Esse chão comum não anula — e não deve nunca ser autorizado a anular — as saudáveis diferenças políticas entre essas famílias políticas. Pelo contrário, tem sido esse chão comum — fundamentalmente euro-atlântico e ocidental — que precisamente permitiu e garantiu a concorrência, rivalidade e alternância civilizadas entre esquerda e direita nas democracias ocidentais.

O termo caiu em desuso ao longo dos últimos anos, por razões que não estão ainda suficientemente estudadas. Gradualmente, a rivalidade civilizada entre esquerda e direita democráticas tem vindo a dar lugar a uma gritaria mal-criada entre primitivismos rivais. Parece que as chamadas “redes sociais” têm contribuído para essa má-criação. (Embora, em meu entender, deva permanecer a pergunta sobre por que motivo essas redes sociais mal-criadas estão a ter audiência significativa entre os eleitores).

De súbito, nas duas últimas semanas, três conferências internacionais sucessivas recordaram vigorosamente o conceito e a experiência do “centro vital”. Refiro-me à 24ª edição da Conferência anual do Forum 2000 (fundado em Praga, em 1997, pelo saudoso Vaclav Havel e que este ano teve lugar a 12-14 de Outubro); a 28ª edição do Estoril Political Forum (promovido entre nós pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, de 19 a 22 de Outubro); e a 37ª edição da ‘International Churchill Conference’ (promovida pela International Churchill Society, desta vez a partir do Churchill College, na Universidade de Cambridge, a 23 e 24 de Outubro).

Não seria possível tentar resumir aqui os nove dias de intensos debates online preenchidos pelas três conferências (em que tive o prazer e privilégio de participar). Mas alguns temas foram recorrente e enfaticamente citados nos três eventos.

Em primeiro lugar, a importância crucial de distinguir as democracias liberais dos regimes autoritários. Esta distinção deve sublinhar a importância crucial de preservar e reforçar a colaboração multilateral entre as democracias, sobretudo as euro-atlânticas através da NATO. A saída do Reino Unido da União Europeia, podendo ser lamentada e/ou criticada, não deve perturbar a convergência estratégica fundamental que permanece inalterada.

Em segundo lugar e em contrapartida, as democracias liberais devem levar a sério os desafios colocados pelas políticas expansionistas dos regimes autoritários da Rússia e, sobretudo, da China comunista. Face a estes desafios, a colaboração multilateral entre as democracias liberais deve ser reforçada e não enfraquecida.

Em terceiro lugar, no interior das democracias liberais, deve ser recordado o valor crucial da moderação e do respeito mútuo pelas regras do jogo demo-liberal. Este acordo de fundo sobre regras gerais deve ser protegido — e deve ser acompanhado pela distinção robusta, ainda que civilizada, entre centro-esquerda e centro-direita.

Talvez me seja permitido sublinhar que estes temas foram recorrentemente referidos em inúmeros painéis ao longo dos quatro dias do Estoril Political Forum. Estiveram presentes nas intervenções de seis embaixadores que participaram em diferentes sessões (embaixadores em Lisboa do Reino Unido, de França, de Itália, de Espanha, da Alemanha e embaixador de Portugal em Praga). Foram enfaticamente reiterados por José Manuel Durão Barroso, Carl Gershman, (presidente do norte-americano National Endowment for Democracy, fundado por Ronald Reagan), e por Wilhelm Hofmeister , director para Portugal e Espanha da Fundação Konrad Adenauer.

Estes temas foram ainda enfaticamente reiterados no painel sobre os EUA por William Galston (um democrata) e por William Kristol (um republicano). [Sobre este painel, não posso deixar de referir o excelente e muito amável artigo de Teresa de Sousa no Público de ontem].

Last but certainly not least, sinto o dever de reportar que uma das mais enfáticas intervenções em defesa da democracia liberal ocidental foi proferida pelo nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na sessão de abertura do Estoril Political Forum, no dia 19 de Outubro, antes de todos os outros painéis terem ocorrido.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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