sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O pai, o filho e o deboche.

 


Napoleão Nunes Maia, ministro do STJ.

Nomeação de filho de ministro do STJ ao CNJ une Centrão e o PT. Qual é a surpresa? J. R. Guzzo, em sua coluna no Estadão:


De safadeza em safadeza, e com a regularidade das marés, a aglomeração de vossas excelências e outros peixes graúdos que ocupa os galhos mais altos das nossas “instituições” está varrendo da vida pública brasileira os últimos átomos de constrangimento, na hora de fazer o mal, que ainda possam resistir aqui e ali nessas cumieiras. A ideia geral de que não se deve praticar certas coisas em público, porque “pega mal”, parece caminhar rapidamente para a extinção; daqui a pouco vai ficar mais fácil achar um mico-leão dourado. O que está valendo é o exato contrário.

Existe uma opção entre o certo e o errado, nesse ou naquele assunto? Então vamos fazer o que está errado. Acaba de acontecer, mais uma vez, com a decisão da Câmara dos Deputados de nomear o filho do ministro Napoleão Nunes Maia, proprietário de uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça, para o Conselho Nacional de Justiça. Pode parecer uma piada, e é uma piada – mas foi precisamente isso o que houve, porque nesse bioma a regra em vigor é “cada um cuida de si, e todos cuidam de todos”. E se aplicação da regra requerer que se cometa um deboche? Paciência; que venha o deboche, então, e depois a gente se arruma. Nem se perdeu tempo, nesse caso, com a nomeação de algum concunhado do ministro Napoleão, ou o primo em terceiro grau, ou a sobrinha do colega que despacha na sala ao lado – foi o filho mesmo, direto.

É um desses casos em que o insulto se soma à injúria: como essa gente tem a coragem de nomear o filho de um ministro para o Conselho que está encarregado de julgar o comportamento do pai? Ninguém fica com vergonha – o pai, o filho e os 364 deputados que montaram e aprovaram essa tramoia? Ninguém, obviamente, tanto que o rapaz – cujas credenciais de jurista são iguais a três vezes zero – foi para o CNJ, numa operação conjunta do Centrão (cujo presidente discursou em plenário a favor do seu preferido) e do PT. Qual a surpresa? Em coisas assim (“fundo eleitoral”, etc.) Centrão e PT estão sempre juntos. Na verdade, essa modalidade de trapaça é a preferida por nove entre dez magnatas da nossa vida pública: ninguém sabe direito o que é “CNJ”, nem se importa em saber – ou seja, é o lugar ideal para uma vigarice.

Depois de uns ruídos na hora da escolha, o assunto cai em exercício findo e todos os interessados ficam em paz. Por que iriam se preocupar com alguma coisa? A nomeação não poderia vir numa hora melhor para o ministro Napoleão. Daqui há dois meses ele será obrigado a se aposentar do STJ – e a partir daí poderá ser acusado de corrupção pela Lava Jato. Nessas horas, nada como um filho no Conselho Nacional de Justiça. O respeito intransigente às “instituições” vai salvar o couro de todo o mundo.
 
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O mito da transferência de votos do mito

 



Fator Bolsonaro? Candidato que faz arminha não tem vez na eleição municipal de 2020. Artigo de Alexandre Borges para a Gazeta do Povo:


Parece que foi ontem. Bastava colocar “major” ou “pastor” antes do nome, fazer arminha com as mãos ou dizer o slogan integralista “Deus, Pátria e Família” para receber uma torrente de votos. Menos de dois anos depois, o brasileiro dá sinais que pode ter mudado de ideia sobre a política e, se for o caso, será o fato mais notável da eleição municipal de 2020.

No Rio de Janeiro, o deputado federal mais votado, Hélio Lopes (PSL), companheiro de todas as horas do “mito”, obteve inacreditáveis 345.234 votos. Apenas dois anos antes, “Hélio Negão” ou “Hélio Bolsonaro”, como ficou conhecido, havia tentado uma vaga de vereador em Nova Iguaçu, cidade da região metropolitana do Rio, conquistando 480 votos. O amigo inseparável de Bolsonaro simboliza com perfeição a “onda” eleitoral de 2018, quando nomes totalmente desconhecidos, alguns já recusados pelo eleitor como Hélio Lopes em Nova Iguaçu, quebraram recordes e mexeram profundamente com o tabuleiro político do país. E agora?

Ao analisar o desempenho dos candidatos “arminha” ou governistas deste ano, a duas semanas do primeiro turno, a onda parece ter passado, mesmo com o presidente registrando seus mais altos índices de popularidade desde o início do mandato.

O candidato que canta hino nacional com uma bandeira do Brasil ou foto de Bolsonaro ao fundo, o que se coloca radicalmente contra “vacina chinesa”, que trata qualquer crítica ao governo como crime de lesa-pátria ou que diz que, se não for eleito, o país será dominado para sempre pelo comunismo internacional, não tem despontado nas pesquisas como líder nas principais cidades do país.

Em São Paulo, o neobolsonarista Celso Russomanno largou na frente, como fez em 2012 e 2016, mas dá indicativos do mesmo tipo de queda ocorrida nas eleições passadas e, segundo noticiado, já se posicionou a favor da vacina que arrepia os pelos mais recônditos do eleitor bolsonarista e tirou o presidente do seu jingle de campanha. O atual prefeito Bruno Covas, afilhado político do arqui-inimigo João Doria, segue caminhando com chances reais de reeleição. Russomanno tem eleitorado próprio, nunca fez arminha com a mão, conta com a estrutura do partido ligado à Igreja Universal e, mesmo com todo este aparato, não é aposta segura de vitória para nenhum analista.

No Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM) segue para o terceiro mandato, ameaçado de longe pela ex-delegada pedetista Martha Rocha. O atual prefeito, Marcelo Crivella, candidato de Bolsonaro na cidade que é o berço do bolsonarismo, que conta com a mesma máquina evangélica do Republicanos, partido de dois dos filhos do presidente (Flávio e Carlos), patina nas pesquisas e até sua presença no segundo turno é incerta. Suas chances são ainda menores que as de Russomanno.

Em Porto Alegre, centro e esquerda dominam com folga as primeiras posições e não há qualquer indício de vitória de um candidato remotamente ligado ao presidente. Em Curitiba, Rafael Greca (DEM) segue com tranquilidade para a reeleição, assim como Alexandre Kalil (PSD) em Belo Horizonte. Nenhum dos dois, mesmo em partidos da base do governo, não devem em nada suas prováveis vitórias ao governo federal. Em Salvador, Bruno Reis (DEM), também virtualmente eleito, deve o resultado inteiramente ao padrinho ACM Neto.

No Recife, João Campos (PSB) lidera com tranquilidade, com Marília Arraes (PT), Delegada Patrícia (Podemos) e Mendonça Filho (DEM) lutando por vaga no segundo turno. Mendonça, ex-ministro de Temer, recebeu a maior doação eleitoral do país até o momento, do empresário e ex-czar das privatizações do governo Salim Mattar, mas sua tentativa de colar a imagem com a do presidente não deu resultado até agora e seu desempenho não é animador. Em Fortaleza, o líder Coronel Wagner (PROS) é, de todos os citados, o mais próximo do presidente, mas sua eleição é fruto da lógica da política cearense e o aporte de votos de Bolsonaro é ínfimo.

Quando o Datafolha perguntou aos eleitores de quatro capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife) se votariam no candidato indicado por Bolsonaro, apenas 16% deles disseram seguir as ordens do capitão. Antigos aliados que romperam com o presidente, como Joice Hasselmann (PSL-SP), recordista de votos em 2018, parecem completamente desidratados eleitoralmente até agora.

Se a eleição presidencial fosse hoje, Bolsonaro estaria no segundo turno e só teria como adversário com chances reais de vitória seu ex-ministro e desafeto Sérgio Moro. É um político inegavelmente popular, mesmo trocando aos poucos parte do eleitorado mais escolarizado e ideológico por eleitores de baixa renda beneficiados por programas assistencialistas, seguindo os passos e alguns métodos de Lula em 2006.

A despeito da força política do presidente, sua popularidade não tem se mostrado proporcional à capacidade de eleger aliados ou candidatos identificados, queira ele ou não, com a sua imagem. Se a tendência se confirmar, a “onda” de candidatos que “pegam carona” em Bolsonaro pode ser o primeiro mito a cair em 2020.
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O fracasso da França em impedir a radicalização do Islã

 



Macron está empregando uma organização indissociável das duas ameaças que ele próprio diz que a França tem que enfrentar: a influência teocrática estrangeira maligna e o crescimento do ultraconservadorismo islâmico na França. Artigo de Martha Lee para a National Review, traduzido para a Gazeta:


No dia 2 de outubro, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou medidas para conter o que ele chama de “separatismo islâmico”. De acordo com Macron, “o problema é essa ideologia que afirma que suas leis são superiores às da República”. Exatamente duas semanas mais tarde, um muçulmano checheno decapitou um professor que tinha mostrado aos alunos cartuns da revista satírica Charlie Hebdo que riam de Maomé. O Poder Executivo agora tem apoio para uma ação agressiva contra o islamismo. O ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, declarou que a França agora está “em guerra”.

Apesar dessa retórica, e apesar de muitos admirarem a postura mais agressiva, as novas medidas de Macron envolvem delegar uma “responsabilidade imensa” a uma instituição associada ao islamismo. Mais uma vez, um governo ocidental se equivoca quanto à periculosidade do islamismo.

À primeira vista, o anúncio de Macron parece expressar uma posição inédita de um governo ocidental contra a ameaça da radicalização islâmica. Em seu pronunciamento da comuna de Les Mureaux, Macron descreveu o separatismo islâmico como um projeto “religioso e político” que defende “transgressões” dos valores republicanos. Ele disse que o separatismo islâmico geralmente resulta na formação de uma “contrassociedade” na qual crianças são tiradas das escolas e atividades culturais são usadas como pretexto para ensinar princípios que “não se adequam” às leis da República. É uma “doutrinação” que nega os princípios franceses da “igualdade entre homens e mulheres” e “dignidade humana”.

A solução, para Macron, está no controle. Instituições de caridade e mesquitas, por exemplo, terão de dar publicidade às doações, sobretudo doações vindas do exterior. Atualmente, a maioria das igrejas e sinagogas francesas já são administradas por organizações religiosas registradas, mas 90% das mesquitas do país optaram por serem classificadas como “organizações culturais”, uma distinção jurídica que lhes permite revelar pouca coisa aos auditores do governo. Macron pretende criar novas medidas para pressionar as chamadas organizações culturais a se registrarem como grupos religiosos.

Macron enfatizou sua crença na importância de libertar o islamismo francês da influência estrangeira. Ele reiterou sua decisão de pôr fim ao sistema de “imãs secundários”, no qual clérigos turcos, argelinos e marroquinos podem imigrar para a França a fim de assumir o controle das mesquitas.

Entre as novas medidas estão ainda a criação de planos “anti-putsch” — uma tentativa de proteger os comitês de liderança das mesquitas da usurpação por extremistas. (Nem Macron nem qualquer outra autoridade explicou o que acontecerá às mesquitas já controladas por movimentos islâmicos extremistas como o Salafis ou Tablighi Jamaat, ou quem seriam seus sucessores).

Aos americanos, a proposta de regulamentação agressiva de instituições religiosas pode soar como algo extraordinário. Mas ainda que os anti-islamitas mais militantes possam considerar as medidas de Macron um passo na direção certa, seu “objetivo de formam e promover (...) uma geração de imãs e intelectuais” defendendo “um Islã totalmente compatível com os valores da República” é equivocado. Porque o governo estará transferindo boa parte da responsabilidade para uma organização associada ao islamismo.

Impostos sobre peregrinação a Meca

Boa parte do projeto será administrado pelo Conseil français du culte musulman (CFCM), organização criada pelo Ministério do Interior da França em 2003 para representar os muçulmanos do país. O CFCM, que agirá como intermediário do Estado, será responsável por certificar programas de treinamento de imãs e os próprios imãs, além de escreverem uma declaração que os imãs terão de assinar para não perderem a certificação. Tudo isso, explica o governo, será financiado com impostos cobrando de muçulmanos que realizam a peregrinação a Meca.

Que Islã, então, o CFCM promoverá? A instituição é conhecida por suas divisões, compreendendo membros de diferentes federações, algumas associadas a regimes estrangeiros, como o Marrocos, Argélia, Turquia e Comores. A organização também incluir o grupo Musulmans de France (conhecido como UOIF), organização francesa fundada por membros da Irmandade Muçulmana, e o movimento islâmico turco Millî Görüş, que mantém laços com o regime de Ancara.

No passado, o CFCM foi muito criticado por seu caráter subrepresentativo e por suas disputas internas. Pior, os chamados islamitas exercem grande controle sobre a organização. Ainda que alguns representantes do CFCM sejam eleitos, o sistema eleitoral em si recompensa mesquitas 0 que geralmente são financiadas ou administradas por islamitas — com uma quantidade maior de delegados. O fato de o governo usar o CFCM para esse projeto exclui a maioria dos muçulmanos franceses e também vozes reformistas e teólogos não-islamitas, muitos dos quais reclamavam que os teólogos linha-dura do UOIF haviam tomado completamente a instituição.

É difícil imaginar que o CFCM se aterá em desenvolver o “Islã esclarecido”. Ano passado, o CFCM foi criticado por declarar o hijab (o véu muçulmano) uma obrigação religiosa. Isso marcou uma guinada clara rumo ao islamismo radical, já que antes a organização reconhecia a existência de um debate em torno da questão.

O CFCM é atualmente liderado pelo proeminente líder muçulmano francês Mohammad Moussaoui, que é próximo do regime marroquino, afiliado à Irmandade Muçulmana, e também pelo ativista Abdallah Zekri. Zekri e Moussaoui também fazem parte da Fondation pour l’islam de France (FIF), organização que receberá 10 milhões de euros em dinheiro do governo para seu envolvimento com os projetos de Macron.

Tanto Zekri quanto Moussaoui são conhecidos por justificar ou menosprezar a ameaça do islamismo. No começo do ano, Zekri esteve em meio a um escândalo por ter justificado ameaças de morte enviadas a um adolescente que denunciava o Islã.

Quanto a Moussaoui, ao ser entrevistado pela senadora francesa Jacqueline Eustache como parte da investigação do Senado sobre a radicalização islâmica, ele repetiu a velha ladainha de que os islamitas não têm nada a ver com o Islã e se apropriaram tanto do termo quanto da religião em si. Ele deixou claro seu raciocínio ao tentar evitar questões sobre a Irmandade Muçulmana e a influência Salafi em certas regiões da França. Diante da insistência da senadora Eustache, ele disse que grupos não deveriam ser rejeitados por completo com base na ideologia e encorajou o combate às ideias, não às pessoas.

Assim, é de nos perguntarmos: que ideólogos linha-dura o CFCM se recusará a rejeitar como parceiros nos esforços de contrarradicalização do governo?

Ligações suspeitas

Macron não foi o primeiro a sugerir que o CFCM cuidasse da certificação de imãs. Na verdade, pouco depois dos ataques terroristas de 2015 em Paris, o próprio CFCM expressou sua vontade de cuidar das certificações. Em 2016, meses antes da eleição de Macron, o então presidente do CFCM, Anouar Kbibech, mencionou que o CFCM estava buscando esse objetivo tentando “harmonizar” um currículo diferente do usado pelos institutos privados, entre eles o Institut Européen des Sciences Humaines (IESH), da Irmandade Muçulmana.

O IESH foi fundado por membros do UOIF, também ligado à Irmandade Muçulmana. Seus programas acadêmicos foram criados por teólogos, entre os quais o clérigo linha-dura e apoiador de bombardeios suicidas Yusuf Al-Qaradawi. Seus alunos mais promissores continuam a jurar fidelidade à Irmandade Muçulmana. Entre os formados pelo IESH estão um recrutador do ISIS na Síria. E o IESH recebe centenas de milhares de dólares da Qatar Charity (QC), que tem conexões com o terrorismo. Em 2007, Mohamed Karmous, tesoureiro da escola, foi preso pelas autoridades suíças enquanto levava €50 mil em dinheiro da QC para o IESH.

Então talvez agora se entenda por que o IESH ficou tão entusiasmado com o anúncio de Macron. Na verdade, o diretor do IESH, Larabi Becheri, recentemente disse a um jornalista que a intenção de Macron quanto ao treinamento de imãs era o sonho do IESH. Becheri disse que aprovava o plano, descrevendo o CFCM como “a organização mais legítima para isso”.

Para alguns secularistas, os planos de Macron de trabalhar juntamente com o CFCM seriam melhores do que a ideia original dele de firmar um acordo segundo o qual a separação entre mesquita e Estado deixaria de ser aplicada e o Estado treinaria os clérigos diretamente. Hoje Macron insiste em dizer que o Estado francês não se envolveria com esses programas de treinamento. Ao contrário, apenas o CFCM seria responsável por criar um “Islã esclarecido” na França. Mas essa não é toda a verdade.

É o governo que escolheu delegar essa “responsabilidade imensa” ao CFCM. É o governo que participou das negociações com a Arábia Saudita para tratar da questão do Hajj (peregrinação a Meca). E é o governo que prometeu continuar exercendo uma “pressão imensa” sobre o CFCM para regulamentar os imãs franceses. A invenção do novo Islã francês será uma iniciativa liderada pelo governo e administrada pelos islamitas.

Claro que o plano conta com oposições de vários tipos. Outros islamitas franceses condenam não só as novas medidas propostas por Macron como também a retórica por ele usada. Alguns acusam Macron de ser oportunista e de focar no islamismo para evitar o confronto com outros movimentos “realmente” separatistas, citando a desigualdade econômica e a discriminação. Enquanto isso, Salafis linha-dura e da linhagem mais pura encorajam os muçulmanos a abandonarem o país, dizendo que os imperfeitos países muçulmanos são melhores do que a França.

Macron também enfrenta críticas dos dois lados do espectro político. O presidente do La France Insoumise, principal partido de extrema-esquerda francês, chamou a fala de Macron de “discurso de ódio contra muçulmanos”. E na direita muitos estão chateados com Macron porque ele não foi ousado o bastante, tomando “poucas medidas fortes e corajosas”.

Ainda que tenha sido importante o fato de Macron usar explicitamente a palavra “islamismo” e não hesitar em mencionar grupos como a Irmandade Muçulmana como uma ameaça (evitando o erro comum de se ater apenas aos jihadistas Salafi), algumas das medidas por ele propostas parecem aumentar o problema da radicalização e do extremismo islamita. Os legisladores deveriam perceber uma coisa óbvia: os islamitas não são bons parceiros quando se trata de lutar contra o islamismo.

Depois do ataque recente a um professor, a polícia francesa prendeu várias pessoas envolvidas no caso, inclusive um imã que teria estimulado uma campanha online contra o professor. As autoridades francesas também fecharam uma mesquita por compartilhar nas redes sociais um vídeo atacando o professor.

Contrarradicalização

Portanto, até mesmo as ações policiais mostram que o microgerenciamento do treinamento dos imãs proposto por Macron é uma obsessão estranha por um programa de contrarradicalização. O problema do islamismo não está no futuro; é uma realidade atual e próspera – encontrada nas mesquitas controladas pela Irmandade Muçulmana e pelos Salafis franceses, nos grupos comunitários e nas organizações de ativistas.

Seria melhor que o governo se ativesse às instituições e indivíduos extremistas que já operam em toda a França. Usando a legislação secular, o Estado poderia tomar medidas mais agressivas para incapacitar as redes islamitas – prejudicando-as financeiramente, impedindo que contem com apoio externo e contendo sua infiltração e exploração de todas as facetas da sociedade francesa.

Muita coisa poderia ser feita se o governo aceitasse algumas das sugestões recentemente publicadas pelo Senado francês. Entre as sugestões estão o banimento de clérigos extremistas como Yusuf al-Qaradawi, o treinamento de policiais franceses para monitorarem os movimentos islamitas e a criação de sistemas para alertar os governos locais de mesquitas e clérigos islamitas próximos. Programas de treinamento explicando para as autoridades locais as várias vertentes violentas ou não do islamismo ativas em toda a França também são recomendados.

O secularismo francês e o controle governamental sobre a expressão política são bem diferentes do que se vê nos Estados Unidos. Legalmente, já é possível fechar instituições radicais e multar indivíduos por discurso de ódio. Mas os governos franceses têm evitado usar esses expedientes. O governo também poderia dar mais atenção à investigação de instituição de caridade islâmicas que apoiam financeiramente vários movimentos islamitas, fechando-as sem hesitação se descobrir conexões com o extremismo.

Ao escolher o CFCM para levar a cabo seus planos de reforma islâmica, Macron está empregando uma organização indissociável das duas ameaças que o próprio Macron diz que a França tem que enfrentar: a influência teocrática estrangeira maligna e o crescimento do ultraconservadorismo islâmico na França. Já é bastante difícil para o governo francês monitorar movimentos islamitas em todo o país e intervir quando necessário. A tentativa de reformar o islamismo francês está destinada ao fracasso e desviará a atenção de problemas mais urgentes. No caos, os extremistas prosperarão.

Martha Lee é pesquisadora do Islamist Watch, projeto do Middle East Forum.
 
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Por que Lise Meitner não ganhou o Nobel?

 



Ensaio do professor Carlos Alberto dos Santos, publicado pelo Estado da Arte:


A questão posta no título — ou a questão mais geral, para quem vai o Nobel? — nunca teve resposta simples, e pelo que se observa com o andamento da física contemporânea, será ainda mais difícil nos próximos anos. Astronomia, astrofísica e física de altas energias talvez sejam as mais vibrantes e efervescentes áreas da física atual. Os próximos laureados deverão continuar saindo dessas áreas, a menos que apareça algo extraordinariamente inovador em alguma outra área.

Não pretendo, neste ensaio, discutir os trabalhos dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física (PNF) deste ano, até porque veículos dos mais diferentes tipos já estão fazendo isso, e para apresentações mais especializadas, recomendo os textos da profa. Thaisa Storchi Bergmann, do Instituto de Física da UFRGS[1] e do prof. George Matsas, do Instituto de Física Teórica da UNESP[2]. No seu canal do YouTube o IF-UFRGS disponibiliza o colóquio apresentado pela profa. Thaísa Storchi Bergman sobre “O Prêmio Nobel de Física de 2020 e a história da busca pelos Buracos Negros Supermassivos no Universo”[3]. Pretendo aqui apenas fazer uma reflexão em torno da questão posta no título. Recentemente, Hood fez uma incursão mais geral, em torno da questão que coloquei no início deste ensaio, para quem vai o Nobel?, olhando para as possibilidades futuras[4]. É uma boa oportunidade para ver a questão também em retrospectiva. Não há dúvidas de que a física está ingressando para valer na era que os sociólogos da ciência há muito tempo denominam grande ciência, uma expressão introduzida nos anos 1960 por Derek de Solla Price, cofundador da sociologia da ciência, ao lado de Robert Merton. Para uma breve discussão dessa ideia recomendo o artigo do prof. Peter Schulz[5]. Price dizia que 10% dos cientistas publicavam 90% dos artigos. Nem naquela época isso era verdade, e muito menos o é na atualidade da astronomia, da astrofísica e principalmente da física de altas energias. Por exemplo, duas equipes totalizando 1500 cientistas estiveram envolvidas na detecção de buracos negros com massas intermediárias[4], e artigos recentes com resultados obtidos no CERN (acrônimo para Conseil Européen pour la Recherceh Nucléaire) têm mais de mil autores. Essa é a dimensão da grande ciência atual: investimentos astronômicos e equipes gigantescas, o que aumenta a proporção de cientistas nas grandes descobertas.

Acredita-se que no espaço da pequena ciência, com a participação máxima de meia dúzia de cientistas por artigo, é razoavelmente simples atribuir valores relativos da importância de cada um, o que leva à definição do líder da pesquisa. Em ensaios anteriores[6], [7], mostrei que isso não é bem assim, e mesmo na pequena ciência, a questão que intitula este ensaio sempre causou embaraços na concessão dos PN. A história está cheia de casos ilustrativos, como o de Lise Meitner, talvez o mais exemplar de todos, e objeto principal deste ensaio. Há diversos critérios para se abordar eventuais injustiças na concessão do PN. Um deles é o sempre presente sentimento nacionalista. Muitos brasileiros, eu incluso, não perdoam a Academia Sueca de Ciências pelo não compartilhamento do PNF de 1950 entre Cecil Powell e César Lattes, quem sabe incluindo também Giuseppe Occhialini.

Na tarde do dia seguinte à morte de Lattes, em 8 de março de 2005, recebi um telefone do chefe de redação do jornal Zero Hora (Porto Alegre), solicitando um obituário para o Caderno Cultura do dia 12. Era quarta-feira, e eu tinha que entregar o texto na tarde de sexta. Dois dias para juntar, rever a literatura e escrever a matéria. Fiz o que pude para escrever Cesar Lattes e o Nobel tungado[8]. Quando iniciei esta série de ensaios sobre o PN, aqui no Estado da Arte, pensei em ampliar o texto de ZH, mas imediatamente vi que eu teria pouco a contribuir, uma vez que a partir de 2005 muitos trabalhos importantes foram publicados em diversos veículos. Em uma busca rápida que fiz no Google Acadêmico encontrei duas dezenas de artigos pós-2005. Para os leitores interessados em uma leitura mais aprofundada, sugiro os livros de Francisco Caruso, Alfredo Marques e Amós Troper[9], e Cássio Leite Vieira[10].

Obituário de Cesar Lattes

Ponderando a importância científica

Um critério básico para a atribuição de valores relativos da participação de alguém em um trabalho de equipe é o que se busca quando se deve premiar um, ou no máximo três cientistas que contribuíram para determinada área de conhecimento. Tenta-se descobrir o líder, e se seus colaboradores tiveram participação do mesmo nível, ou de nível secundário. Nem sempre essa ponderação é consensual, e como veremos, foi claramente falha no caso Lise Meitner. Alguém pode pensar no Índice de Citação Científica (SCI na sigla em inglês), criado por Eugene Garfield nos anos 1960. Mas, de acordo com Stván Hargittai[11], embora o número de citações seja importante, para os comitês do PN esse indicador é mais uma curiosidade do que um fator decisivo. E qual o critério usado pelos comitês do PN e pela Academia Sueca de Ciências (ASC) para definir as premiações? Não há um critério definido. Há um procedimento burocrático até se chegar ao PN, mas cada um que participa do processo define seus critérios.

Um resumo muito interessante sobre esses procedimentos foi apresentado por Peter Rodgers, às vésperas da premiação de 2000[12]. Ao longo de seus 120 anos de existência, os comitês do PN devem ter passado por algumas mudanças, mas a essência continua a mesma. Portanto, salvo diferenças quantitativas, como número de cientistas convidados a fazer indicações, número de respostas recebidas pelos comitês, número de indicados ao prêmio, etc., o cenário geral é esse descrito por Rodgers referente ao ano de 2000, para o PN de física. A ASC enviou mais de duas mil cartas a físicos do mundo inteiro, convidando-os a indicar candidatos para o PNF. Deve ter recebido algo em torno de 300 indicações, que o comitê, constituído por cinco professores de universidades suecas, reduziu para 10 ou 15. Na carta-convite eles pedem para os convidados não tornarem públicas suas indicações.

Cada uma dessas 10 ou 15 indicações foi enviada para um ou dois especialistas na área, cujos relatórios são estudados pelo comitê. A partir daí o comitê decide quem deverá ser premiado e envia sua recomendação para os membros da classe de física da ASC (aproximadamente 40 membros). Em reunião, a classe de física discute a indicação e elabora um relatório para os membros de todas as áreas do conhecimento da ASC (350 suecos e 164 estrangeiros). O relatório pode estar de acordo com a recomendação do comitê, ou não. Eles podem até fazer outra indicação. Em uma reunião fechada, geralmente no início de outubro, a ASC reúne-se para fazer a indicação. Toda a documentação referente ao processo deve permanecer secreta durante 50 anos, após o que, parte da documentação poderá ser consultada por historiadores da ciência credenciados.

Alguns princípios para a concessão do PN são questionados por parte da comunidade científica. Por exemplo, a premiação por uma descoberta específica, e não pela obra de uma vida inteira. Muita gente acredita que esse princípio impediu o físico alemão Arnold Sommerfeld de ser premiado. Atualmente, com os grandes projetos de física sendo desenvolvidos por equipes enormes, questiona-se o impedimento de premiar organizações, como o CERN, onde praticamente toda a pesquisa de física de alta energia é realizada. Finalmente, o princípio segundo o qual no máximo três pessoas podem compartilhar a premiação. Talvez esse princípio fosse um problema neste ano, caso Stephen Hawking estivesse vivo. Claramente o comitê de física decidiu, neste ano, premiar os buracos negros. Daí porque escolheram Roger Penrose, o principal teórico da área, ainda vivo, que mostrou que o buraco negro é uma robusta previsão da teoria da relatividade geral, e dois astrofísicos observacionais, Andrea Ghez e Reinhard Genzel pela descoberta de um objeto compacto e supermassivo (um buraco negro) no centro de nossa galáxia. Mas, Hawking ficaria de fora? Quem cederia o lugar? Penrose, Genzel ou Andrea Ghez? A considerar o que escreveu Penrose para o obituário do amigo[13], talvez até ele cedesse seu lugar para Hawking. Penrose começa citando o famoso astrofísico inglês Lord Martin John Rees:
Poucos dos sucessores de Einstein fizeram mais para aprofundar nossos insights sobre gravidade, espaço e tempo.
Depois, Penrose passa a destacar a vida acadêmica de Hawking. Aos 32 anos foi eleito para a Royal Society. Aos 37 é nomeado professor Lucasiano de matemática em Cambridge. Trata-se da mais famosa cátedra inglesa, ocupada por Isaac Newton e Paul Dirac. Foi um dos primeiros a mostrar como flutuações quânticas podem explicar a distribuição de galáxias no universo. Finalmente, Penrose vaticina:
Hawking não foi, talvez, o maior físico de sua época, mas em cosmologia ele era uma figura superior. Não existe um critério perfeito para o valor científico, mas Hawking ganhou o Prêmio Einstein, o prêmio Wolf, a medalha Copley e o prêmio de Física Fundamental. O prêmio Nobel, no entanto, lhe escapou.
Caso similar é o de Rosalind Elsie Franklin, que faleceu quatro anos antes da concessão do PN em fisiologia e medicina de 1962, pela descoberta da estrutura molecular do DNA. A pergunta é a mesma: no lugar de quem Rosalind Franklin entraria? Eu penso como Hargittai[11]; ela entraria no lugar de Maurice Wilkins. A história é interessantíssima, e longa, razão pela qual merece um ensaio específico, que já está a caminho. Para o assunto não ficar aqui totalmente no ar, convém destacar alguns dados em torno do PN em fisiologia e medicina de 1962. Os ganhadores foram Francis Harry Compton Crick, James Dewey Watson e Maurice Hugh Frederick Wilkins. O primeiro artigo no assunto é de Watson e Crick, em 1953. No ano seguinte, Franklin e R. G. Gosling publicaram seu primeiro trabalho sobre raios-X do DNA. Também em 1954, Wilkins e colaboradores fizeram o mesmo. Dos três ganhadores, o único que mencionou Rosalind Franklin na conferência Nobel, foi Maurice Wilkins, justamente aquele que provavelmente perderia o prêmio se ela estivesse viva.

Uma introdução ao caso Lise Meitner

Repito o que escrevi acima, opinião compartilhada por praticamente todos os historiadores da ciência: é difícil saber se o caso Meitner configura a maior injustiça na concessão do PN, mas é certo que ele é o mais notório na literatura historiográfica. Inúmeros são os artigos publicados sobre o assunto, principalmente pela professora de química do Sacramento City College, na Califórnia, que reuniu seus estudos no livro Lise Meitner: a life in physics[14]. Quem também dedicou-se à análise desse caso foi István Hargittai[11].

Tudo que sabemos sobre a concessão do PN é a relação de indicados e a relação de quem os indicou. As discussões nas reuniões dos comitês, assim como da Academia são secretas. Há quem diga que os relatórios são destruídos, mas não isso não é oficialmente reconhecido. Ocasionalmente, um ou outro membro desses comitês e da Academia quebram o sigilo, mas isso não constitui fonte historiográfica, embora seja usada em algumas publicações. Assim, para analisar a pertinência ou não da decisão da ASC, costuma-se analisar a vida acadêmica dos ganhadores e dos rejeitados e suas repercussões na comunidade científica. Quem assim procede costuma indicar como se comportaria caso fosse membro de um comitê, ou da Academia. É o que farei a seguir.

O PN de química de 1944, anunciado em 1945, foi concedido a Otto Hahn pela descoberta da fissão de núcleos pesados. Vejamos do que se trata, e quem esteve envolvido com isso.

Desde o início do século, Ernest Rutherford vinha bombardeando diferentes materiais com partículas alfa emitidas com altas energias por alguns núcleos atômicos. Foi assim que em 1911 ele teve a ideia do modelo atômico, posteriormente elaborado por Niels Bohr. Nesse modelo, o átomo era constituído de um núcleo, muito pequeno e muito massivo, em torno do qual giravam os elétrons. Anos depois, em 1919, Rutherford descobriu o próton, ocasião em que imaginou que no interior do núcleo deveria também haver uma partícula neutra, com massa similar à do próton. Essa partícula foi descoberta em 1932, por James Chadwick, seu colaborador, e recebeu o nome de nêutron. No mesmo ano, o casal Irène e Frédéric Joliot-Curie realizaram experimentos que levaram à descoberta da radioatividade artificial produzida pelo bombardeio de núcleos com nêutrons[7]. A partir de então, diversos experimentos foram realizados com bombardeio de nêutrons, inicialmente por Enrico Fermi e seus colaboradores, em Roma, que começaram a bombardear urânio. Assim que tomou conhecimentos dos resultados obtidos por Fermi, em 1934, Lise Meitner procurou Otto Hahn e lhe propôs retomarem a colaboração que estava interrompida fazia quase uma década. É importante destacar esse fato: fazia quase uma década que Meitner e Hahn não colaboravam cientificamente. Qual é a importância disso? É que quando começaram os questionamentos sobre a não concessão do PN, chegaram a alegar que ela não passava de uma auxiliar de Otto Hahn, e que este era de fato o líder da pesquisa. Então, para confrontar esse preconceito, vale a pena mencionar, nem que seja brevemente, o que os dois fizeram até o ano de 1934.

Lise obteve seu doutorado em física na Universidade de Viena, em 1905, com uma tese sobre condução do calor em materiais inomogêneos. Logo depois do doutorado começou a se interessar por problemas da radioatividade, como a deflexão das partículas alfa ao atravessar os materiais, aquele problema que estava começando a ser investigado por Rutherford. Seu primeiro trabalho nessa área foi publicado em 1906, na Physikalische Zeitschrift, sobre a absorção dos raios alfa e beta. Publicaria mais dois trabalhos na mesma revista, sobre o mesmo assunto, antes de se mudar para Berlim em 1907, onde teve como mentor Max Planck, e fez amizade com jovens cientistas que entrariam para a história da física: James Franck, Gustav Hertz, Max von Laue, Otto Stern, Max Born, Niels Bohr, Erwin Schrödinger e Albert Einstein. Mais importante que isso, do ponto de vista profissional, foi seu encontro com o químico Otto Hahn, quatro meses mais novo que ela, e que estava à procura de um físico para auxiliá-lo em experimentos sobre radioatividade. Depois de ter ouvido piadas de seus colegas de faculdade, que consideravam aberração uma mulher fazer curso superior, ela teve que enfrentar a primeira dificuldade profissional por ser mulher. O chefe de Hahn, Hermann Emil Fischer, PN de química de 1902, não permitia que mulheres trabalhassem em seu laboratório. Contornaram o problema instalando os equipamentos numa velha carpintaria, onde foi permitido que ela trabalhasse. Essa situação perdurou até 1909, quando estudos acadêmicos na Alemanha foram permitidos às mulheres. Em 1912 foi criado o Kaiser-Wilhelm Institut für Chemie, em Berlim-Dahlem, uma zona rural nos arredores de Berlim. Ali no KWI, Lise trabalhou durante 25 anos.

Estabeleceu-se uma frutífera colaboração entre os dois jovens cientistas, com 30 artigos publicados entre 1907 e 1925. Em 1918 eles publicaram o primeiro trabalho que desembocaria na descoberta do protactínio, o elemento químico 91. A partir de 1921, Meitner começa a realizar estudos sem a participação direta de Hahn. Ela estava mais interessada nos experimentos de vanguarda da física nuclear, enquanto seu colega continuava concentrado no refinamento de técnicas radioquímicas. Então, ao mesmo tempo que publicava com Hahn, ela publicava sozinha artigos mais fundamentais. Na prestigiada Zeitschrift für Physik, ela publicou, em 1921, um sobre os diferentes tipos de decaimento radioativo e a possibilidade de sua interpretação a partir da estrutura central. No mesmo ano ela publicou nos anais da Sociedade Kaiser Wilhelm para o Avanço da Ciência, um artigo com fundamentos básicos sobre radioatividade e constituição atômica. É essa diferença entre os perfis acadêmicos de Meitner e Hahn, que aparentemente os envolvidos na indicação e seleção do PN de química de 1944 não levaram em conta. Hahn era um químico de primeira grandeza, assim como Meitner era uma física da mesma ordem. Se complementavam na prolífera parceria que fizeram ao longo de décadas. Por isso os dois mereciam ganhar o PN, de química ou de física.

A partir de 1926, os dois tomam definitivamente rumos científicos diferentes, e desaparecem os trabalhos em parceria. O primeiro trabalho de Meitner dessa fase completamente independente apareceu ainda em 1925, na Zeitschrift für Physik, sobre a radiação gama da série do actínio, e a prova de que os raios gama só são emitidos depois que o átomo decai. Entre 1925 e 1933, Meitner e seus colaboradores publicaram 25 artigos, sem a participação de Hahn. Se a história fosse interrompida em 1933, casualmente o mesmo ano em que Hitler assume a chancelaria alemã, veríamos que Lise Meitner era uma cientista independente, com produtiva vida acadêmica. Não é por menos que já em 1924 ela fora indicada ao PN de química, juntamente com Hahn.

Agora, em relação ao PN de química de 1944, façamos um exercício mental supondo que a história começa em 1934. Conforme já adiantei, o nêutron tinha sido descoberto em 1932, e Enrico Fermi começara a bombardear núcleos de diferentes elementos químicos com nêutrons. Seu primeiro trabalho sobre o bombardeio de urânio foi publicado em 1934, na Nature. Sua hipótese era a possibilidade de obtenção de elementos transurânicos. Foi isso que animou Lise Meitner e a levou a convidar Otto Hahn para refazer a parceria científica[15]:
Achei esses experimentos tão fascinantes que, logo após a publicação de seus relatos em Nuovo Cimento e Nature, persuadi Otto Hahn a renovar nossa colaboração direta, interrompida há vários anos, com o objetivo de investigar esses problemas.
Com a colaboração do jovem doutor em química, Fritz Strassmann, Lise Meitner e Otto Hahn publicam o primeiro trabalho da nova parceria em 1935. Nesse trabalho, publicado na Die Naturwissenschaften, Hahn e Meitner apresentaram algumas observações sobre os produtos de transformação artificial do urânio. Entre 1935 e 1938, essa equipe publicou 17 trabalhos. Quando tudo caminhava razoavelmente bem, porque embora de origem judaica, Lise estava escapando da perseguição nazista porque era austríaca e não trabalhava em órgão do governo Alemão, uma vez que o KWI era uma instituição privada. Mas, quando em março de 1938 a Áustria foi ocupada pela Alemanha, Lise teve que fugir para não sofrer os efeitos das leis raciais da Alemanha nazista. Em julho ela fugiu para a Suécia, e lá ficou trabalhando por 22 anos no Instituto Nobel para Física, em Estocolmo, sob a direção de Manne Siegbahn, PN de física de 1924.

Em dezembro de 1938, Otto e Fritz realizaram o experimento que resultou na descoberta da fissão nuclear. Vamos ouvir Lise contando essa história[15]:
Hahn me escreveu no Natal de 1938 descrevendo os surpreendentes resultados de seus últimos experimentos. Eu estava em Kungalv, na costa oeste da Suécia, passando alguns dias de férias de Natal com Otto Frisch, que viera de Copenhague. Naturalmente, fiquei muito empolgada com a carta de Hahn e, nela, ele me perguntou o que eu, como física, achava dos resultados. Ao ler a carta, fiquei completamente entusiasmada e pasma, e também – para falar a verdade – inquieta. Eu conhecia muito bem o extraordinário conhecimento e habilidade química de Hahn e Strassmann para duvidar por um segundo da exatidão de seus resultados inesperados. Esses resultados, eu percebi, haviam aberto um caminho científico inteiramente novo – e também percebi o quanto havíamos nos desviado de nosso trabalho anterior!
Lise Meitner: (A) Viena, 1906; (B) Catholic University of America, 1946; (C) Aeroporto de Viena, 1953; (D) Com Otto Hahn, 1912.

O caminho para a fissão nuclear

Aqueles resultados obtidos por Hahn e Strassmann e publicados em janeiro de 1939, na Die Naturwissenschatfen, aceleraram a corrida nuclear, freneticamente iniciada em 1934, com a participação dos mais importantes cientistas da área. É isso que acontece com uma pesquisa de grande impacto. Os experimentalistas correram para a confirmação experimental dos resultados, enquanto os teóricos começaram a esboçar a explicação. Com a ajuda do seu sobrinho Otto Frisch, Lise Meitner saiu na frente. Em menos de um ano, mais de cem artigos foram publicados sobre o assunto, por vários pesquisadores europeus. E não foi pequeno o impacto. Na história moderna, apenas a descoberta dos raios-X teve tanto impacto em curto intervalo de tempo. Mas, por que tanto interesse? Para melhor apreciar essa interessante história, e minimamente compreender a razão do interesse, é importante ter ideia da extraordinária complexidade dos fenômenos nucleares. Tentarei apresentar essa ideia em linguagem simples, sem recorrer aos conceitos mais complicados.

Todos sabem que o átomo tem um núcleo, com prótons (carga elétrica positiva) e nêutrons, em torno do qual orbitam elétrons (carga elétrica negativa). Estou desprezando o fato de que prótons e nêutrons são constituídos de quarks. Podemos desprezar essas partículas elementares para elaborar um cenário mais simples, sem qualquer prejuízo para a explicação dos fenômenos estudados nos anos 1930 e 1940. O átomo mais simples, sob todos os aspectos, é o hidrogênio. Um próton e um elétron. A possibilidade da existência desse par foi explicada no modelo de Bohr. Para formar o hélio, colocamos mais um próton no núcleo, e mais um elétron em volta. Com duas cargas positivas o núcleo não pode existir. Os prótons se repeliriam. O que fazer? Aí vem a magia do nêutron. Ele não tem carga elétrica, mas é capaz de evitar que os prótons se afastem. O nêutron é quem dá a liga do núcleo. Então, no núcleo do hélio existem dois nêutrons para equilibrar o sistema. Assim segue a tabela periódica. Um próton a mais, alguns nêutrons a mais. Chega um momento que é tanto próton junto, que não há nêutron que os segure. Isso acontece com os materiais radioativos. Eles começam a se livrar de prótons e nêutrons para diminuir o “estresse” no interior do núcleo. Essa liberação, conhecida como decaimento nuclear, que se constitui na essência da radioatividade, se dá de várias maneiras. Ora liberam um par com dois prótons e dois nêutrons, igualzinho ao núcleo de hélio, inicialmente denominado partícula alfa; ora liberam elétrons, inicialmente denominados partícula beta; ora liberam energia sob a forma de raios gama. Dito assim, parece simples. Não é! A descrição de cada um desses processos, para determinados tipos de átomos é muito complexa. O fato é que o processo de decaimento faz determinado elemento químico desaparecer

Sem nenhuma aparente necessidade, alguns átomos com mesmo número de prótons, têm mais nêutrons do que o necessário para manter o equilíbrio nuclear. Parece um defeito da natureza. Por exemplo, aparentemente o átomo de hidrogênio não precisa de nêutron no seu núcleo, mas existe um hidrogênio com um nêutron, e outro com dois nêutrons. O primeiro é conhecido como deutério, e o segundo é o trício. Esses átomos com mesmo número de prótons e diferentes números de nêutrons são conhecidos como isótopos. Taí uma palavra-chave importante na física nuclear: isótopos! Praticamente todos os processos nucleares geram diferentes isótopos. Por exemplo, o urânio mais abundante é o U-238 (92%), com 92 prótons e 146 nêutrons. Depois vem o U-235 (0,7%), com 143 nêutrons e o U-234 (0,005%), com 142 nêutrons.

Essa liberação de partículas alfa, beta e raios gama, ou seja, o processo de decaimento nuclear, pode resultar no desaparecimento de um elemento químico e o surgimento de outro, ou na substituição de um isótopo por outro. O notável nesse processo, é que todos os elementos radioativos terminam chegando no chumbo. Ou seja, todo decaimento radioativo inicia em determinado elemento e termina no chumbo. Dito de outro modo, todas as cadeias radioativas têm o elemento chumbo no final. Mas, quanto tempo dura esse processo? A rigor, o processo é infindável. Portanto, em vez do tempo de duração, o mais importante é saber a velocidade do decaimento. Essa velocidade é determinada por uma propriedade típica de cada elemento, conhecida como meia-vida, que marca o tempo em que a metade dos átomos do elemento existentes na amostra inicial deixam de existir. Por exemplo, se um elemento A tem meia-vida de 1 hora, isso significa que ao final de 1 hora só teremos a metade da quantidade dos átomos inicialmente contidos na amostra. Ao final da segunda hora, só teremos ¼ dessa quantidade, e assim por diante. Enfim, cada elemento radioativo é caraterizado pela quantidade de prótons (seu número atômico), pela quantidade de nêutrons, que define o isótopo, e sua meia-vida.

Esses fundamentos são suficientes para o leitor, mesmo sem uma formação em física, acompanhar a narrativa a seguir. Mas, é preciso dizer mais uma coisa, um complicador. O processo de decaimento não é único. Por exemplo, partindo do urânio, o decaimento chega ao chumbo seguindo mais de um caminho, como ilustra a figura abaixo. Esses diferentes caminhos impõem muitas dificuldades aos pesquisadores. Hoje, os físicos e químicos nucleares entendem todos esses processos, mas nos anos 1930 e 1940 isso era um mistério. A busca pela identificação dos elementos químicos e a explicação do fenômeno era um tiro no escuro. De um lado, era indispensável o talento de um químico como Hahn, para a preparação de boas amostras e o domínio de técnicas analíticas. Por isso ele mereceu o PN de química. De outro lado, era necessário o talento de um físico como Meitner, para explicar os resultados obtidos. Por isso ela mereceria ganhar o PN de química ou de física.


O urânio decai até chegar ao chumbo por vários caminhos. Quando chega no Po218 (A), o decaimento pode ir para o Pb214, ou para o At218 (B). A partir daí várias são as possibilidades de decaimento.

Voltemos a 1932, quando o nêutron foi descoberto. Até aquele momento, todos os experimentos com bombardeio atômico, eram feitos com partículas alfa ou com prótons. Pelo fato de serem positivamente carregadas, essas partículas quase não penetram no núcleo, porque são repelidas pelos prótons. Já o nêutron pode penetrar no núcleo praticamente sem perturbação. Explica-se, portanto, o entusiasmo de Fermi com a descoberta de Chadwick. Era um mundo inexplorado para os cientistas nucleares. Explica-se, portanto, a corrida desenfreada, que estimulou Lise Meitner a procurar Otto Hahn e propor-lhe retomar a colaboração científica. Tratava-se de uma corrida de gigantes: Niels Bohr, Enrico Fermi, Irène Joliot-Curie estavam entre os competidores. Todos ganhadores de PN e disponibilizando de boas instalações de pesquisa e competentes colaboradores, assim como Meitner e Hahn, que contavam com as colaborações de Strassmann e Frisch.

Fermi foi o pioneiro dessa fase, com seu icônico artigo de 1934, mas encaminhou a questão equivocadamente. Para ele, o bombardeio de urânio com nêutrons só podia produzir elementos transurânicos, ou seja, elementos com número atômico superior a 92, último elemento da tabela periódica até início de 1940. Como veremos a seguir, o bombardeio resultava em bário e lantânio, os produtos da fissão nuclear, muito mais leves do que o urânio. A massa que sobrava nesta reação era transformada em energia, uma energia capaz de destruir uma cidade, como ficou evidente em Hiroshima e Nagasaki. Mas, até a descoberta e a compreensão do mecanismo da fissão nuclear poucos desconfiavam desse poder destrutivo.

Todavia, como é muito frequente na pesquisa científica, essa conjectura equivocada de Fermi foi confirmada por Hahn e Meitner no primeiro trabalho que eles publicaram sobre o assunto, em 1935. Em 1962, Meitner escreveu um texto para o boletim da International Atomic Energy Agency (IAEA), no qual confessa que começou acreditando na hipótese de Fermi, mas achava muito estranho a existência de uma longa cadeia de desintegração, aumentando a carga nuclear sem aumentar a massa. Fermi tinha muita confiança nos seus resultados e desviou seu olhar para outra linha pesquisa. Mas, Hahn, Meitner e Irène Curie tinham lá suas desconfianças. Passaram quatro anos obtendo resultados divergentes. Em cada experimento apareciam vários produtos, com diferentes meias-vidas, que ninguém sabia bem identificar. Era uma geléia geral descomunal. Seguindo a hipótese de Fermi, todos buscavam explicações na possibilidade de elementos transurânicos, mas as contas não fechavam. Um trabalho chave nessa história foi publicado em outubro de 1937, por Irène Curie e seu colaborador Paul Savitch.

Usando refinadas técnicas experimentais, Irène e Paul descobriram um produto não observado nas pesquisas anteriores. Ele tinha uma vida-média de três horas e meia, e segundo os autores deveria ser um isótopo do tório. Em janeiro de 1938, eles publicam outro trabalho afirmando que não se tratava de um isótopo de tório. Eles dizem que se trata de algo quimicamente parecido com o lantânio, mas que eles acham que é um elemento transurânico. Na verdade, tratava-se de uma mistura de bário e lântanio. Se Irène tivesse percebido isso, provavelmente descobriria a fissão nuclear alguns meses antes de Hahn e Strassmann. Ela perdeu, pela segunda vez a oportunidade de fazer uma descoberta importante. Ela estava próxima de descobrir a fissão nuclear, mas bobeou. A outra vez foi em 1932, quando seus experimentos mostravam a existência do nêutron e ela, juntamente com seu marido Frédéric Joliot-Curie pensavam que se tratava de um raio gama. Chadwick papou o PN de física de 1935[7]. O grande mérito desses trabalhos de Irène e Savitch foi desviar o foco dos transurânicos para os elementos abaixo do urânio, abrindo o caminho para a descoberta da fissão.

Quando esses resultados estavam em discussão, Lise Meitner teve que fugir da Alemanha, em julho de 1938. Os trabalhos ficaram por conta de Otto Hahn e Strassmann. No início de janeiro de 1939, eles publicam na Naturwissenschaften, o artigo que originou a supracitada carta enviada por Hahn a Meitner. Intitulado Sobre a detecção e comportamento dos metais alcalino-terrosos produzidos quando o urânio é irradiado com nêutrons, esse é o artigo da descoberta da fissão nuclear. Com esse experimento, realizado em meados de dezembro, eles mostraram que urânio bombardeado com nêutrons produz, essencialmente, bário e lantânio, dois elementos bem mais leves que urânio. Para quem sabia ler nas entrelinhas da ciência, estava claro: a diferença entre a massa do urânio e dos produtos da reação (bário e lantânio) se transformaria em uma fabulosa quantidade de energia. Era o que dizia a equação de Einstein, inocentemente deduzida no contexto da teoria da relatividade especial, mas que agora apontava para a bomba atômica.

Pioneiros da fissão nuclear.

O que mais, além do experimento de Hahn e Strassmann?

A ninguém resta dúvida que o experimento de Hahn e Strassmann aceleraria a corrida nuclear. Meitner teve o privilégio de ser informada antes da publicação do artigo. Estava ao lado do sobrinho, Otto Frisch, entre camadas de neve do rigoroso inverno dinamarquês. Imediatamente fizeram uma análise teórica dos resultados. Em parceria ou sozinhos, escreveram alguns artigos em 1939. Historicamente, talvez os mais importantes sejam os dois artigos enviados à Nature, em 16 de janeiro. No primeiro, assinado por Meitner e Frisch, com título Disintegration of Uranium by Neutrons: a New Type of Nuclear Reaction, eles partem de uma ideia lançada por Niels Bohr em 1936, conhecida como modelo da gota líquida, e apresentam a primeira explicação teórica da fissão nuclear. O núcleo de um elemento pesado, como urânio, comporta-se como uma gota de um líquido qualquer, sob forte tensão interna. Adição de um determinado valor de energia, de forma violenta, como ocorre no bombardeio de nêutrons, a gota pode ser dividida em duas menores. A partir desse modelo clássico, eles apresentaram uma boa descrição do fenômeno descoberto por Hahn e Strassmann. O segundo artigo, assinado por Frisch, é importante porque é nesse artigo que ele usa a expressão nuclear fission para denominar o fenômeno. A inspiração veio da biologia. Fission já era usado na biologia para se referir à divisão celular.

Em 20 de janeiro foi a vez de Niels Bohr enviar seu trabalho sobre a fissão, para a Nature, no qual ele detalha alguns aspectos do cenário desenhado por Meitner e Frisch. Fermi, como não poderia ser diferente, também foi rápido no gatilho. Em 16 de fevereiro enviou uma carta para o editor da Physical Review, em coautoria com cinco colaboradores, apresentando resultados preliminares dos experimentos realizados por eles, após conhecimento do trabalho de Hahn e Strassmann. Fermi estava interessado na determinação da alta energia liberada após a fissão.

Finalmente, um dado sobre o impacto da descoberta da fissão nuclear. Entre 1934 e 1938, o número de trabalhos publicados por ano sobre o bombardeio de núcleos com nêutrons sempre esteve abaixo de 10. Em 1939 foram publicados 104 trabalhos.

O Prêmio Nobel escorrega pelos dedos de Lise Meitner

Algumas pessoas, envolvidas ou não com o processo de indicação do PN naqueles anos, chegaram a afirmar que Lise Meitner era apenas uma auxiliar de Otto Hahn. Esse tipo de argumento foi usado em vários outros casos, como o de Cesar Lattes. A história de vários equívocos e injustiças na concessão do PN sugere que poucos envolvidos no processo se dão ao trabalho de uma análise detalhada da produção científica dos candidatos ao prêmio. Sem contar que eventualmente o comitê solicita o parecer de alguém que pouco conhece o assunto. Por exemplo, em 1921 o comitê de física solicita ao professor de oftalmologia da Universidade de Uppsala, Allvar Gullstrand, um relatório sobre a teoria da relatividade para aprovar ou não a indicação de Einstein. O relatório, altamente crítico em relação à teoria da relatividade, contém vários equívocos conceituais[16]. Einstein foi premiado naquele ano, por que também havia sido indicado pelo trabalho sobre o efeito fotoelétrico, e o relatório elaborado por Svante Augus Arrhenius foi amplamente favorável. No caso Meitner, a impressão que eu tenho é que deram pouca atenção à leitura de sua obra científica. Pelo que está dito acima, vê-se a independência científica de Lise Meitner, e pelas citações na literatura, depreende-se o respeito que o seu trabalho tinha da comunidade científica. Vendo a história em retrospecto, fica claro que Strassmann e Frisch eram de fato auxiliares de Hahn e Meitner.

A tabela abaixo mostra as indicações que Otto Hahn e Lise Meitner tiveram para o PN de física ou de química, entre 1924 e 1948. Mesmo não tendo conhecimento das alegações de quem os indicou, nem dos comentários apresentados nas reuniões dos comitês e da ASC, a partir da tabela podemos desenhar um cenário muito interessante. Entre 1924 e 1926, Hahn e Meitner foram repetidamente indicados para o PN de química, juntos ou separados, por personalidades de peso no mundo científico da época, e hoje ícones da história da ciência, como Planck e Nernst. A partir de 1937 eles começam a ser indicados também para o PN de física. Aqui cabe um comentário de relevância histórica. Quando a ASC concedeu o PN de física de 1903 a Becquerel e ao casal Curie, pela descoberta da radioatividade, o comitê de química ficou incomodado, porque consideravam que a radioatividade era um assunto da química[7]. Todavia, a descoberta e a explicação da fissão nuclear resultaram da habilidade experimental de químicos e o do conhecimento teórico de físicos. Aliás, esse seria aspecto mais importante para justificar o compartilhamento do prêmio entre Hahn e Meitner. A tabela mostra que vários físicos importantes consideravam que a descoberta também pertencia à área da física. Entre os que indicaram Meitner para o PN de física, podemos destacar Bohr, Laue, Heisenberg, Compton, Franck e Louis de Broglie, todos ganhadores do PN de física.

Então, por que o PN fugiu das mãos de Lise Meitner? Ninguém sabe. Como os comentários apresentados nas reuniões dos comitês e da ASC são secretos, o que restam são as especulações da literatura. Claramente, Strassmann não foi incluído na premiação de Hahn, porque todos sabiam que se tratava de um jovem auxiliar de pesquisa. Mas este não era o caso de Meitner. Há quem considere a importância acadêmica de Hahn, superior à de Meitner, pelo seu envolvimento no programa nuclear alemão[17], mas esse aspecto não foi levado em consideração pelos famosos físicos que a indicaram em várias oportunidades. Há também quem especule que Siegbahn, o diretor do Instituto Nobel para Física, em Estocolmo, onde Meitner trabalhava, não gostava do seu estilo de pesquisa. Nesse sentido, é interessante observar que ele indicou Hahn para o PN de física de 1943, sendo ele, Siegbahn, PN de física de 1924, sendo Hahn químico e Meitner física. Hargittai[11] acha que Lise Meitner ganhou mais prestígio tendo sido excluída do PN, do que se tivesse ganho. Além de prêmios ganhos em vários países, ela foi homenageada com a denominação do elemento químico sintético 109, o meitnério. Mas é um fato histórico que ela ficou muito amargurada com sua exclusão, tanto do PN de química, quanto do PN de física. Em sua detalhada biografia de Lise Meitner, Ruth Sime também sugere que Siegbahn, por pura inveja, foi o principal empecilho[14].

De acordo com Sime, o comitê de química do PN e a classe de química da ASC resolveram adiar a concessão do prêmio de 1944, para avaliar melhor a colaboração de outros na descoberta da fissão. Depois da guerra, o comitê decidiu reconsiderar a concessão do prêmio, algo até então inédito na história do PN. No início de outubro de 1945 começaram a circular boatos de que Lise estava no PN de química de 1944, ou no de física de 1945. Foi uma decepção geral quando, em 16 de novembro a ASC anunciou Hahn para o prêmio de química, e Wolfgang Pauli para o de física. Em Farm Hall, onde cientistas alemães (incluindo Hahn) estavam presos[17], a alegria foi geral, mas na Suécia, os amigos de Meitner ficaram furiosos.

Oskar Klein, físico sueco recém-eleito para a ASC, rasgou a lei do silêncio e informou Bohr sobre os detalhes da tempestuosa reunião que resultou na indicação de Hahn. Por sua importância histórica, concluo este ensaio com algumas dessas informações. Os químicos Theodor Svedberg e Arne Westgren já tinham alertado para a importância das contribuições de Meitner e Frisch, mas a ASC achou muito complicado alterar a decisão tomada em 1944. A sensação de Klein era que a ASC não queria dar a impressão de estar sendo manipulada pelos EUA. É bom lembrar que a Segunda Guerra Mundial tinha chegado ao fim em agosto de 1945, e que Hahn tinha participado do projeto nuclear alemão e estava preso em Farm Hall, na Inglaterra, com Heisenberg, Strassmann e outros cientistas alemãs. Depois de muita discussão, uma pequena maioria votou para não alterar a indicação de 1944. Provavelmente Meitner foi excluída por causa da regra das três pessoas. Klein acha que se Meitner fosse incluída, seria difícil excluir Strassmann e Frisch. Não concordo com essa afirmação. Pelo que mostrei acima, estava claro que Lise Meitner era uma cientista independente, ao passo que Strassmann e Frisch eram, neste caso, apenas auxiliares.


Notas:

[1] T. S. Bergmann, “Explicando o prêmio Nobel de Física de 2020,” Instituto de Física – UFRGS, 2020. [Online]. Available: https://www.if.ufrgs.br/if/explicando-o-premio-nobel-de-fisica-de-2020/. [Accessed: 10-Oct-2020].

[2] G. Matsas, “Penrose, Genzel e Ghez dividem o Prêmio Nobel de Física 2020 por sua pesquisa em buracos negros,” Sociedade Brasileira de Física, 2020. [Online]. Available: http://www.sbfisica.org.br/v1/home/index.php/pt/acontece/1182-penrose-genzel-e-ghez-dividem-o-premio-nobel-de-fisica-2020-por-sua-pesquisa-em-buracos-negros. [Accessed: 10-Oct-2020].

[3] T. S. Bergmann, “O Prêmio Nobel de Física de 2020 e a história da busca pelos Buracos Negros Supermassivos no Universo,” Instituto de Física – UFRGS, 2020. [Online]. Available: https://www.youtube.com/user/Institutodefisica. [Accessed: 20-Oct-2020].

[4] M. Hood, “In an era of team science, are Nobels out of step?,” Phys Org, 2020.

[5] P. Schulz, “Ciência pequena, média ou grande,” Jornal da Unicamp, 2018.

[6] C. A. dos Santos, “A mística e o glamour do Prêmio Nobel,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 26-Jul-2020.

[7] C. A. dos Santos, “O Nobel na família Curie,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 30-Aug-2020.

[8] C. A. dos Santos, “Cesar Lattes e o Nobel tungado,” Zero Hora, Porto Alegre, p. 2, 12-Mar-2005.

[9] F. Caruso, A. Marques, and A. Troper, Cesar Lattes, a descoberta do méson pi e outras histórias. Rio de Janeiro: CBPF, 1999.

[10] C. L. Vieira, Um mundo inteiramente novo se revelou: uma história da técnica das emulsões nucleares. São Paulo: Livraria da Física, 2012.

[11] S. Hargittai, The road to Stockholm. Nobel prizes, Science, and scientists. Oxford: Oxford University Press, 2002.

[12] P. Rodgers, “Countdown to the nobel prize,” Phys. World, vol. October, 2000.

[13] R. Penrose, “Stephen Hawking,” Entornos, vol. 31, no. 1, pp. 257–260, 2018.

[14] R. L. Sime, Lise Meitner: A life in physics. Berkeley: University of California Press, 1996.

[15] L. Meitner, “Right and wrong roads to the discovery of nuclear energy,” IAEA Bull., vol. 4, pp. 6–8, 1962.

[16] A. Pais, “Sutil é o Senhor . . .”. A ciência e a vida de Albert Einstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

[17] C. A. dos Santos, “O contexto científico da peça Copenhagen – Parte 2,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 12-Jun-2020.

[18] Nobel-Prize-Org, “Nomination and Selection of Nobel Laureates,” Nobel Prize Organization, 2020. [Online]. Available: https://www.nobelprize.org/nomination/. [Accessed: 20-Jun-2020].

Agradeço ao professor Luiz Fernando Ziebell, do Instituto de Física da UFRGS, pela cuidadosa leitura do manuscrito.

Carlos Alberto dos Santos é professor aposentado pelo Instituto de Física da UFRGS. Foi Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA e pesquisador visitante sênior do Instituto Mercosul de Estudos Avançados. Premiado com o Jabuti em 2016 (3º. Lugar na categoria Ciências da Natureza, Matemática e Meio Ambiente), atualmente é professor visitante no Instituto de Física da UFAL.
 
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A ideia do ano: uma nova Constituição brasileira vai mudar tudo - para melhor, claro.

 



Tive uma ideia! Que tal uma nova Constituição no Brasil? Está tudo tão calmo mesmo. Paulo Polzonoff Jr., vai Gazeta do Povo:


É raro eu usar este adjetivo, ainda mais acompanhando o nome de um político, mas não é hora para meias-palavras: o deputado Ricardo Barros é um gênio. Só mesmo alguém com uma inteligência avantajada, só mesmo um visionário, só mesmo alguém que pensa com o lado esquerdo do cérebro (ops) para, em pleno Ano da Graça de 2020, propor a elaboração de uma nova Constituição brasileira.

Barros, ex-ministro de Dilma que atua como líder do governo Bolsonaro (vai entender!), talvez tenha se inspirado na minirrevolução chilena. Mas, se fosse para apostar, diria que ele se inspirou mesmo em Hugo Chávez e outros grandes constitucionalistas latino-americanos. Essa gente cheia de boas intenções e que tem certeza de que o problema de países pobres, atrasados e violentos como o Brasil é o que está registrado, em português semi-inteligível e rigorosamente de acordo com as regras da ABNT, num livrinho.

Não será uma tarefa fácil. Ainda mais num país tão conflagrado e dividido como o Brasil. Mas tenho certeza de que Barros, um homem à frente do seu tempo, previu as intermináveis discussões nas redes sociais, as laudas e mais laudas escritas sobre cada um dos zilhares de artigos, todas as reviradas de olhos da apresentadora enfadada do telejornal e principalmente o anseio por um documento que, de uma vez por todas, deixe claro quem é que manda neste país: o Judiciário.

Tom e forma

Mas me adianto. Porque um dos desafios dos novos constituintes será justamente escolher o tom e a forma mais adequados para a Carta Magna do século XXI. Os reacionários sugerem a repetição da formalidade do texto constitucional, com seus outrossins e por conseguintes. Mas felizmente temos jovens lideranças que impedirão essa aberração e, aqui e ali, distribuirão emojis por todo o texto. “Todo mundo é igual perante a lei”, emoji de coração. “Não pode matar o amiguinho”, emoji de raivinha. “É assegurado a todos o direito à livre expressão”, emoji de gargalhada.

Uma das minhas esperanças em relação à Novíssima Constituição do Brasil é que ela seja sincerona. Uma Constituição que tenha artigos como “São vedados aos servidores públicos salários maiores do que os dos ministros do Supremo Tribunal Federal – mas se quiser pode”. Ou ainda: “É assegurada a separação entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário – mas cabe ao STF a decisão final sobre tudo”. Ou: "Manda quem pode e obedece quem tem juízo".

O maior perigo enfrentado pela ideia de uma Constituição muderna e antenada com o nosso tempo é a possibilidade de que o texto seja contaminado por ideias “sérias”, voltadas para o Bem Comum. É possível que, entre os novos constituintes, o povo-que-não-sabe-votar escolha esse tipo de gente que se diz sensata, mas que todos sabemos serem fascistas. Gente que, na contramão do Espírito do Tempo, vai propor uma Constituição magrinha como a estadunidense, que se limite a proteger o indivíduo do Estado.

Direitos, direitos, direitos,...

Quando todos sabemos que a Constituição serve para garantir direitos, direitos, direitos, direitos, direitos, direitos. E para proibir todo e qualquer tipo de dissidência ou discordância, que são apenas duas palavras que começam com “d” e que servem para ocultar todo o ódio da sociedade opressora racista, machista e transfóbica. Se a Nova Constituição não for escrita em linguagem não-binária, o Brasil estará perdendo uma grande oportunidade.

Aliás, fica aqui a minha sugestão ao deputado Ricardo Barros para que ao menos parte da Nova Constituição seja elaborada pelo povo. É, democracia diretaça mesmo. Talvez se possa organizar um grande sorteio de artigos e incisos e parágrafos elaborados por simples camponeses, por expoentes do pensamento facebookiano, por jogadores de futebol e até por (arght) jornalistas.
 
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Mais quatro anos de Trump

 



Não só pensamos que Trump ganhará, como cremos que poderá mesmo aumentar a sua vantagem, transformando estados democratas em 2016 em estados republicanos; por exemplo o Nevada, o Minnesota e New Hampshire. Afonso Moura para o Observador:


Ele não se candidataria. Mas candidatou-se. Ele não ganharia a primária republicana. Mas ganhou. Ele não conseguiria vencer a maravilhosa Hillary. Mas venceu. Quando 2016 presenciou a vitória de Donald J. Trump não podia acreditar naquilo que estava perante os seus olhos. Depois da vitória do Brexit, assistíamos agora à vitória dum outsider no país mais influente do mundo. A eleição presidencial americana de 3 de Novembro será um evento seguido por todo o globo – o que se passa nos Estados Unidos costuma vir a influenciar decisivamente os destinos do planeta.

Veremos nós a reeleição de Trump ou a eleição de Biden? Se acreditarmos naquilo que a mídia, principalmente a mainstream e europeia, nos transmite uma coisa é certa – a vitória de Trump parece impossível. Só que como diz o adágio anglófono fool me once, shame on you, fool me twice, shame on me. Tradução livre: à segunda só cai quem quer.

Será Joe Biden um candidato melhor do que Hillary Clinton? Tenho as minhas dúvidas. Não é segredo para ninguém que em 2016 o DNC (Democratic National Committee) fez a vida a negra – perdoem-me a expressão – a Sanders e deu um empurrãozinho à Hillary. Só o futuro dirá se a mesma coisa não ocorreu contra o senador do Vermont nesta primária. O partido democrata encontra-se mergulhado num dilema insolúvel, o fosso entre a estrutura partidária, essencialmente centrista e moderada, e a base, cada vez mais reivindicativa e radical, amplia-se ano após ano. Recordemo-nos que em 2016 Bernie Sanders ganhou na primária dois estados importantes que os democratas perderiam para Trump, dois estados do Rust Belt, Michigan e Wisconsin. O discurso proteccionista de Donald Trump foi chave para conquistar esses dois estados.

Nos Estados Unidos da América vigora um sistema de colégio eleitoral (Electoral College) que tem como número mágico o 270, ou seja, o candidato vencedor tem que chegar a esse número ou ultrapassá-lo. Os candidatos focam-se em vencer os estados individualmente, quem vence um estado recebe todos os eleitores desse estado (tirando algumas excepções pouco relevantes). E a importância dos estados varia, dois exemplos: a Flórida vale 29, enquanto o Minnesota vale 10.

Joe Biden sofre da descredibilização da classe política, tal como Hillary Clinton. Trump diz em bastantes dos seus comícios que não é um político e isso, por mais estranho que possa parecer a um europeu, é extremamente sedutor para um votante norte-americano, independentemente das suas preferências políticas. Na Europa – principalmente na continental – existe uma glorificação dos políticos que os americanos não compreendem, para eles os homens podem actuar para o bem da comunidade através da sua cidadania, não precisam de ser eleitos. Trump também se gaba frequentemente de que não precisa da política para nada, de que tinha uma boa vida antes de se lançar na política. Alguém pode negar isto? Dificilmente. É complicado ver uma vantagem de Biden face a Trump neste ponto. Alguns dirão que isto é superficial já que Trump faz parte da elite norte-americana, porém há uma diferença crucial entre fazer parte da elite norte-americana e fazer parte da elite política norte-americana.

A desordem e os estragos provocados pelos manifestantes depois da morte de George Floyd terão consequências negativas para o partido democrata. A complacência do mesmo com as milícias trotskistas e spartakistas (conhecidas como ANTIFA) convenceu bastantes moderados que não gostam de Trump a votar nele. Dados recentes dizem que Trump tem índices de aprovação com os Afro-americanos impensáveis para um republicano (veja-se a Rasmussen Reports por exemplo). É altamente plausível que Trump seja o republicano com os maiores índices de aprovação das últimas quatro décadas nessa comunidade. Cidadãos afro-americanos viram alguns dos seus negócios serem destruídos durante as manifestações, a reprovação face a esses actos por parte do partido democrata foi para eles demasiado tardia e pouco convincente.

Há quem pense que a gestão da pandemia de Donald Trump custar-lhe-á a eleição. Desenganem-se, esse pensamento simplista só é esmagadoramente maioritário entre os nova-iorquinos e os californianos. Os americanos, povo economicista de matriz calvinista, realizam-se através do trabalho. A destruição da economia para estancar a pandemia é um preço que muitos não querem pagar. Enquanto o católico vive para o prazer, o calvinista vive para trabalhar. Basta comparar Rodrigo Borgia com João Calvino. Dir-me-ão que estas identidades estão ultrapassadas, e que a secularização das nossas sociedades arrumou com esta questão. Erro crasso. Esta fetichização do trabalho persiste dentro do espírito norte-americano, mesmo que diluída ou subterrânea. Para um calvinista é no trabalho que Deus nos abre a porta à salvação e que um homem se dignifica. Acreditem que muitos americanos terão isso em mente na hora de votar, e aqueles que querem bloquear o trabalho para preservar a saúde serão punidos.

Contrariamente ao que se diz, Trump é menos belicista do que Biden, como já tinha sido menos belicista do que a esposa de Bill Clinton. O candidato republicano usa o argumento de trazer tropas americanas para casa antes do Natal, deixando críticas severas à indústria do armamento e a alguns generais que defendem as guerras a todo o custo. Seguidamente a isto diz à sua plateia que a América anda a construir países estrangeiros em vez de reconstruir as estruturas decrépitas no seu próprio território. Juntemos a isto a questão da transição energética, na qual Biden tem uma posição versátil. É fantástico salvar o planeta mas quando isso é sinónimo de perder o nosso emprego a coisa complica-se. O candidato democrata tenta atingir um justo meio aristotélico, dizendo que é preciso começar a transição sem descurar o emprego. Trump tem uma posição diferente, o desemprego deve ser evitado, a transição energética não é uma das suas prioridades.

A política – ou se preferirem o político – é conflitual por essência, Carl Schmitt sabia-o e Chantal Mouffe tem feito bastante para relembrar-nos desse facto desconfortável. Quando Biden se coloca numa posição conciliadora ele está a amputar as suas chances de sucesso. Trump, animal político, sabe que é lançando achas para a fogueira e exacerbando as divisões que se ganha. Fê-lo em 2016 e está a fazê-lo em 2020.

Se adicionarmos à corrida a entrada de Amy Coney Barrett no tribunal mais importante da América (Supreme Court) e o portátil do inferno (laptop from hell) – que contém informações comprometedoras sobre Joe Biden e o seu filho Hunter – a Casa Branca parece afastar-se cada vez mais do partido democrata.

Dias antes do derradeiro dia ainda está tudo em aberto. Biden pode ganhar, Trump pode ganhar, o resultado pode não ser sabido. É possível que o vencedor não seja declarado imediatamente e a tensão alastrar-se-á; alguns dizem mesmo que poderá não se saber o vencedor no início de 2021. A eleição pode ser decidida pelo tal tribunal, o Supreme Court, como em 2000 quando Bush ganhou a Gore.

Todavia seria incorrecto não dar ao leitor a nossa previsão, sabendo que esta é falível. Não só pensamos que Trump ganhará, como cremos que poderá mesmo aumentar a sua vantagem, transformando estados democratas em 2016 em estados republicanos; por exemplo o Nevada, o Minnesota e New Hampshire. Resta-nos desejar uma boa madrugada aos que seguirão a contenda e aconselhamo-los a fazerem pipocas, esta eleição será tão apaixonante como os melhores clássicos de Hollywood.
 
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