sexta-feira, 30 de outubro de 2020
O pai, o filho e o deboche.
Napoleão Nunes Maia, ministro do STJ. |
Nomeação de filho de ministro do STJ ao CNJ une Centrão e o PT. Qual é a surpresa? J. R. Guzzo, em sua coluna no Estadão:
De
safadeza em safadeza, e com a regularidade das marés, a aglomeração de
vossas excelências e outros peixes graúdos que ocupa os galhos mais
altos das nossas “instituições” está varrendo da vida pública brasileira
os últimos átomos de constrangimento, na hora de fazer o mal, que ainda
possam resistir aqui e ali nessas cumieiras. A ideia geral de que não
se deve praticar certas coisas em público, porque “pega mal”, parece
caminhar rapidamente para a extinção; daqui a pouco vai ficar mais fácil
achar um mico-leão dourado. O que está valendo é o exato contrário.
Existe
uma opção entre o certo e o errado, nesse ou naquele assunto? Então
vamos fazer o que está errado. Acaba de acontecer, mais uma vez, com a
decisão da Câmara dos Deputados de nomear o filho do ministro Napoleão Nunes Maia, proprietário de uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça,
para o Conselho Nacional de Justiça. Pode parecer uma piada, e é uma
piada – mas foi precisamente isso o que houve, porque nesse bioma a
regra em vigor é “cada um cuida de si, e todos cuidam de todos”. E se
aplicação da regra requerer que se cometa um deboche? Paciência; que
venha o deboche, então, e depois a gente se arruma. Nem se perdeu tempo,
nesse caso, com a nomeação de algum concunhado do ministro Napoleão, ou
o primo em terceiro grau, ou a sobrinha do colega que despacha na sala
ao lado – foi o filho mesmo, direto.
É
um desses casos em que o insulto se soma à injúria: como essa gente tem
a coragem de nomear o filho de um ministro para o Conselho que está
encarregado de julgar o comportamento do pai? Ninguém fica com vergonha –
o pai, o filho e os 364 deputados que montaram e aprovaram essa
tramoia? Ninguém, obviamente, tanto que o rapaz – cujas credenciais de
jurista são iguais a três vezes zero – foi para o CNJ, numa operação conjunta do Centrão (cujo presidente discursou em plenário a favor do seu preferido) e do PT.
Qual a surpresa? Em coisas assim (“fundo eleitoral”, etc.) Centrão e PT
estão sempre juntos. Na verdade, essa modalidade de trapaça é a
preferida por nove entre dez magnatas da nossa vida pública: ninguém
sabe direito o que é “CNJ”, nem se importa em saber – ou seja, é o lugar
ideal para uma vigarice.
Depois
de uns ruídos na hora da escolha, o assunto cai em exercício findo e
todos os interessados ficam em paz. Por que iriam se preocupar com
alguma coisa? A nomeação não poderia vir numa hora melhor para o
ministro Napoleão. Daqui há dois meses ele será obrigado a se aposentar
do STJ – e a partir daí poderá ser acusado de corrupção pela Lava Jato.
Nessas horas, nada como um filho no Conselho Nacional de Justiça. O
respeito intransigente às “instituições” vai salvar o couro de todo o
mundo.
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O mito da transferência de votos do mito
Fator Bolsonaro? Candidato que faz arminha não tem vez na eleição municipal de 2020. Artigo de Alexandre Borges para a Gazeta do Povo:
Parece
que foi ontem. Bastava colocar “major” ou “pastor” antes do nome, fazer
arminha com as mãos ou dizer o slogan integralista “Deus, Pátria e
Família” para receber uma torrente de votos. Menos de dois anos depois, o
brasileiro dá sinais que pode ter mudado de ideia sobre a política e,
se for o caso, será o fato mais notável da eleição municipal de 2020.
No
Rio de Janeiro, o deputado federal mais votado, Hélio Lopes (PSL),
companheiro de todas as horas do “mito”, obteve inacreditáveis 345.234
votos. Apenas dois anos antes, “Hélio Negão” ou “Hélio Bolsonaro”, como
ficou conhecido, havia tentado uma vaga de vereador em Nova Iguaçu,
cidade da região metropolitana do Rio, conquistando 480 votos. O amigo
inseparável de Bolsonaro simboliza com perfeição a “onda” eleitoral de
2018, quando nomes totalmente desconhecidos, alguns já recusados pelo
eleitor como Hélio Lopes em Nova Iguaçu, quebraram recordes e mexeram
profundamente com o tabuleiro político do país. E agora?
Ao
analisar o desempenho dos candidatos “arminha” ou governistas deste
ano, a duas semanas do primeiro turno, a onda parece ter passado, mesmo
com o presidente registrando seus mais altos índices de popularidade
desde o início do mandato.
O
candidato que canta hino nacional com uma bandeira do Brasil ou foto de
Bolsonaro ao fundo, o que se coloca radicalmente contra “vacina
chinesa”, que trata qualquer crítica ao governo como crime de
lesa-pátria ou que diz que, se não for eleito, o país será dominado para
sempre pelo comunismo internacional, não tem despontado nas pesquisas
como líder nas principais cidades do país.
Em
São Paulo, o neobolsonarista Celso Russomanno largou na frente, como
fez em 2012 e 2016, mas dá indicativos do mesmo tipo de queda ocorrida
nas eleições passadas e, segundo noticiado, já se posicionou a favor da
vacina que arrepia os pelos mais recônditos do eleitor bolsonarista e
tirou o presidente do seu jingle de campanha. O atual prefeito Bruno
Covas, afilhado político do arqui-inimigo João Doria, segue caminhando
com chances reais de reeleição. Russomanno tem eleitorado próprio, nunca
fez arminha com a mão, conta com a estrutura do partido ligado à Igreja
Universal e, mesmo com todo este aparato, não é aposta segura de
vitória para nenhum analista.
No
Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM) segue para o terceiro mandato,
ameaçado de longe pela ex-delegada pedetista Martha Rocha. O atual
prefeito, Marcelo Crivella, candidato de Bolsonaro na cidade que é o
berço do bolsonarismo, que conta com a mesma máquina evangélica do
Republicanos, partido de dois dos filhos do presidente (Flávio e
Carlos), patina nas pesquisas e até sua presença no segundo turno é
incerta. Suas chances são ainda menores que as de Russomanno.
Em
Porto Alegre, centro e esquerda dominam com folga as primeiras posições
e não há qualquer indício de vitória de um candidato remotamente ligado
ao presidente. Em Curitiba, Rafael Greca (DEM) segue com tranquilidade
para a reeleição, assim como Alexandre Kalil (PSD) em Belo Horizonte.
Nenhum dos dois, mesmo em partidos da base do governo, não devem em nada
suas prováveis vitórias ao governo federal. Em Salvador, Bruno Reis
(DEM), também virtualmente eleito, deve o resultado inteiramente ao
padrinho ACM Neto.
No
Recife, João Campos (PSB) lidera com tranquilidade, com Marília Arraes
(PT), Delegada Patrícia (Podemos) e Mendonça Filho (DEM) lutando por
vaga no segundo turno. Mendonça, ex-ministro de Temer, recebeu a maior
doação eleitoral do país até o momento, do empresário e ex-czar das
privatizações do governo Salim Mattar, mas sua tentativa de colar a
imagem com a do presidente não deu resultado até agora e seu desempenho
não é animador. Em Fortaleza, o líder Coronel Wagner (PROS) é, de todos
os citados, o mais próximo do presidente, mas sua eleição é fruto da
lógica da política cearense e o aporte de votos de Bolsonaro é ínfimo.
Quando
o Datafolha perguntou aos eleitores de quatro capitais (São Paulo, Rio
de Janeiro, Belo Horizonte e Recife) se votariam no candidato indicado
por Bolsonaro, apenas 16% deles disseram seguir as ordens do capitão.
Antigos aliados que romperam com o presidente, como Joice Hasselmann
(PSL-SP), recordista de votos em 2018, parecem completamente
desidratados eleitoralmente até agora.
Se
a eleição presidencial fosse hoje, Bolsonaro estaria no segundo turno e
só teria como adversário com chances reais de vitória seu ex-ministro e
desafeto Sérgio Moro. É um político inegavelmente popular, mesmo
trocando aos poucos parte do eleitorado mais escolarizado e ideológico
por eleitores de baixa renda beneficiados por programas
assistencialistas, seguindo os passos e alguns métodos de Lula em 2006.
A
despeito da força política do presidente, sua popularidade não tem se
mostrado proporcional à capacidade de eleger aliados ou candidatos
identificados, queira ele ou não, com a sua imagem. Se a tendência se
confirmar, a “onda” de candidatos que “pegam carona” em Bolsonaro pode
ser o primeiro mito a cair em 2020.
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O fracasso da França em impedir a radicalização do Islã
Macron está empregando uma organização indissociável das duas ameaças que ele próprio diz que a França tem que enfrentar: a influência teocrática estrangeira maligna e o crescimento do ultraconservadorismo islâmico na França. Artigo de Martha Lee para a National Review, traduzido para a Gazeta:
No
dia 2 de outubro, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou medidas
para conter o que ele chama de “separatismo islâmico”. De acordo com
Macron, “o problema é essa ideologia que afirma que suas leis são
superiores às da República”. Exatamente duas semanas mais tarde, um
muçulmano checheno decapitou um professor que tinha mostrado aos alunos
cartuns da revista satírica Charlie Hebdo que riam de Maomé. O Poder
Executivo agora tem apoio para uma ação agressiva contra o islamismo. O
ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, declarou que a França
agora está “em guerra”.
Apesar
dessa retórica, e apesar de muitos admirarem a postura mais agressiva,
as novas medidas de Macron envolvem delegar uma “responsabilidade
imensa” a uma instituição associada ao islamismo. Mais uma vez, um
governo ocidental se equivoca quanto à periculosidade do islamismo.
À
primeira vista, o anúncio de Macron parece expressar uma posição
inédita de um governo ocidental contra a ameaça da radicalização
islâmica. Em seu pronunciamento da comuna de Les Mureaux, Macron
descreveu o separatismo islâmico como um projeto “religioso e político”
que defende “transgressões” dos valores republicanos. Ele disse que o
separatismo islâmico geralmente resulta na formação de uma
“contrassociedade” na qual crianças são tiradas das escolas e atividades
culturais são usadas como pretexto para ensinar princípios que “não se
adequam” às leis da República. É uma “doutrinação” que nega os
princípios franceses da “igualdade entre homens e mulheres” e “dignidade
humana”.
A
solução, para Macron, está no controle. Instituições de caridade e
mesquitas, por exemplo, terão de dar publicidade às doações, sobretudo
doações vindas do exterior. Atualmente, a maioria das igrejas e
sinagogas francesas já são administradas por organizações religiosas
registradas, mas 90% das mesquitas do país optaram por serem
classificadas como “organizações culturais”, uma distinção jurídica que
lhes permite revelar pouca coisa aos auditores do governo. Macron
pretende criar novas medidas para pressionar as chamadas organizações
culturais a se registrarem como grupos religiosos.
Macron
enfatizou sua crença na importância de libertar o islamismo francês da
influência estrangeira. Ele reiterou sua decisão de pôr fim ao sistema
de “imãs secundários”, no qual clérigos turcos, argelinos e marroquinos
podem imigrar para a França a fim de assumir o controle das mesquitas.
Entre
as novas medidas estão ainda a criação de planos “anti-putsch” — uma
tentativa de proteger os comitês de liderança das mesquitas da usurpação
por extremistas. (Nem Macron nem qualquer outra autoridade explicou o
que acontecerá às mesquitas já controladas por movimentos islâmicos
extremistas como o Salafis ou Tablighi Jamaat, ou quem seriam seus
sucessores).
Aos
americanos, a proposta de regulamentação agressiva de instituições
religiosas pode soar como algo extraordinário. Mas ainda que os
anti-islamitas mais militantes possam considerar as medidas de Macron um
passo na direção certa, seu “objetivo de formam e promover (...) uma
geração de imãs e intelectuais” defendendo “um Islã totalmente
compatível com os valores da República” é equivocado. Porque o governo
estará transferindo boa parte da responsabilidade para uma organização
associada ao islamismo.
Impostos sobre peregrinação a Meca
Boa
parte do projeto será administrado pelo Conseil français du culte
musulman (CFCM), organização criada pelo Ministério do Interior da
França em 2003 para representar os muçulmanos do país. O CFCM, que agirá
como intermediário do Estado, será responsável por certificar programas
de treinamento de imãs e os próprios imãs, além de escreverem uma
declaração que os imãs terão de assinar para não perderem a
certificação. Tudo isso, explica o governo, será financiado com impostos
cobrando de muçulmanos que realizam a peregrinação a Meca.
Que
Islã, então, o CFCM promoverá? A instituição é conhecida por suas
divisões, compreendendo membros de diferentes federações, algumas
associadas a regimes estrangeiros, como o Marrocos, Argélia, Turquia e
Comores. A organização também incluir o grupo Musulmans de France
(conhecido como UOIF), organização francesa fundada por membros da
Irmandade Muçulmana, e o movimento islâmico turco Millî Görüş, que
mantém laços com o regime de Ancara.
No
passado, o CFCM foi muito criticado por seu caráter subrepresentativo e
por suas disputas internas. Pior, os chamados islamitas exercem grande
controle sobre a organização. Ainda que alguns representantes do CFCM
sejam eleitos, o sistema eleitoral em si recompensa mesquitas 0 que
geralmente são financiadas ou administradas por islamitas — com uma
quantidade maior de delegados. O fato de o governo usar o CFCM para esse
projeto exclui a maioria dos muçulmanos franceses e também vozes
reformistas e teólogos não-islamitas, muitos dos quais reclamavam que os
teólogos linha-dura do UOIF haviam tomado completamente a instituição.
É
difícil imaginar que o CFCM se aterá em desenvolver o “Islã
esclarecido”. Ano passado, o CFCM foi criticado por declarar o hijab (o
véu muçulmano) uma obrigação religiosa. Isso marcou uma guinada clara
rumo ao islamismo radical, já que antes a organização reconhecia a
existência de um debate em torno da questão.
O
CFCM é atualmente liderado pelo proeminente líder muçulmano francês
Mohammad Moussaoui, que é próximo do regime marroquino, afiliado à
Irmandade Muçulmana, e também pelo ativista Abdallah Zekri. Zekri e
Moussaoui também fazem parte da Fondation pour l’islam de France (FIF),
organização que receberá 10 milhões de euros em dinheiro do governo para
seu envolvimento com os projetos de Macron.
Tanto
Zekri quanto Moussaoui são conhecidos por justificar ou menosprezar a
ameaça do islamismo. No começo do ano, Zekri esteve em meio a um
escândalo por ter justificado ameaças de morte enviadas a um adolescente
que denunciava o Islã.
Quanto
a Moussaoui, ao ser entrevistado pela senadora francesa Jacqueline
Eustache como parte da investigação do Senado sobre a radicalização
islâmica, ele repetiu a velha ladainha de que os islamitas não têm nada a
ver com o Islã e se apropriaram tanto do termo quanto da religião em
si. Ele deixou claro seu raciocínio ao tentar evitar questões sobre a
Irmandade Muçulmana e a influência Salafi em certas regiões da França.
Diante da insistência da senadora Eustache, ele disse que grupos não
deveriam ser rejeitados por completo com base na ideologia e encorajou o
combate às ideias, não às pessoas.
Assim,
é de nos perguntarmos: que ideólogos linha-dura o CFCM se recusará a
rejeitar como parceiros nos esforços de contrarradicalização do governo?
Ligações suspeitas
Macron
não foi o primeiro a sugerir que o CFCM cuidasse da certificação de
imãs. Na verdade, pouco depois dos ataques terroristas de 2015 em Paris,
o próprio CFCM expressou sua vontade de cuidar das certificações. Em
2016, meses antes da eleição de Macron, o então presidente do CFCM,
Anouar Kbibech, mencionou que o CFCM estava buscando esse objetivo
tentando “harmonizar” um currículo diferente do usado pelos institutos
privados, entre eles o Institut Européen des Sciences Humaines (IESH),
da Irmandade Muçulmana.
O
IESH foi fundado por membros do UOIF, também ligado à Irmandade
Muçulmana. Seus programas acadêmicos foram criados por teólogos, entre
os quais o clérigo linha-dura e apoiador de bombardeios suicidas Yusuf
Al-Qaradawi. Seus alunos mais promissores continuam a jurar fidelidade à
Irmandade Muçulmana. Entre os formados pelo IESH estão um recrutador do
ISIS na Síria. E o IESH recebe centenas de milhares de dólares da Qatar
Charity (QC), que tem conexões com o terrorismo. Em 2007, Mohamed
Karmous, tesoureiro da escola, foi preso pelas autoridades suíças
enquanto levava €50 mil em dinheiro da QC para o IESH.
Então
talvez agora se entenda por que o IESH ficou tão entusiasmado com o
anúncio de Macron. Na verdade, o diretor do IESH, Larabi Becheri,
recentemente disse a um jornalista que a intenção de Macron quanto ao
treinamento de imãs era o sonho do IESH. Becheri disse que aprovava o
plano, descrevendo o CFCM como “a organização mais legítima para isso”.
Para
alguns secularistas, os planos de Macron de trabalhar juntamente com o
CFCM seriam melhores do que a ideia original dele de firmar um acordo
segundo o qual a separação entre mesquita e Estado deixaria de ser
aplicada e o Estado treinaria os clérigos diretamente. Hoje Macron
insiste em dizer que o Estado francês não se envolveria com esses
programas de treinamento. Ao contrário, apenas o CFCM seria responsável
por criar um “Islã esclarecido” na França. Mas essa não é toda a
verdade.
É
o governo que escolheu delegar essa “responsabilidade imensa” ao CFCM. É
o governo que participou das negociações com a Arábia Saudita para
tratar da questão do Hajj (peregrinação a Meca). E é o governo que
prometeu continuar exercendo uma “pressão imensa” sobre o CFCM para
regulamentar os imãs franceses. A invenção do novo Islã francês será uma
iniciativa liderada pelo governo e administrada pelos islamitas.
Claro
que o plano conta com oposições de vários tipos. Outros islamitas
franceses condenam não só as novas medidas propostas por Macron como
também a retórica por ele usada. Alguns acusam Macron de ser oportunista
e de focar no islamismo para evitar o confronto com outros movimentos
“realmente” separatistas, citando a desigualdade econômica e a
discriminação. Enquanto isso, Salafis linha-dura e da linhagem mais pura
encorajam os muçulmanos a abandonarem o país, dizendo que os
imperfeitos países muçulmanos são melhores do que a França.
Macron
também enfrenta críticas dos dois lados do espectro político. O
presidente do La France Insoumise, principal partido de extrema-esquerda
francês, chamou a fala de Macron de “discurso de ódio contra
muçulmanos”. E na direita muitos estão chateados com Macron porque ele
não foi ousado o bastante, tomando “poucas medidas fortes e corajosas”.
Ainda
que tenha sido importante o fato de Macron usar explicitamente a
palavra “islamismo” e não hesitar em mencionar grupos como a Irmandade
Muçulmana como uma ameaça (evitando o erro comum de se ater apenas aos
jihadistas Salafi), algumas das medidas por ele propostas parecem
aumentar o problema da radicalização e do extremismo islamita. Os
legisladores deveriam perceber uma coisa óbvia: os islamitas não são
bons parceiros quando se trata de lutar contra o islamismo.
Depois
do ataque recente a um professor, a polícia francesa prendeu várias
pessoas envolvidas no caso, inclusive um imã que teria estimulado uma
campanha online contra o professor. As autoridades francesas também
fecharam uma mesquita por compartilhar nas redes sociais um vídeo
atacando o professor.
Contrarradicalização
Portanto,
até mesmo as ações policiais mostram que o microgerenciamento do
treinamento dos imãs proposto por Macron é uma obsessão estranha por um
programa de contrarradicalização. O problema do islamismo não está no
futuro; é uma realidade atual e próspera – encontrada nas mesquitas
controladas pela Irmandade Muçulmana e pelos Salafis franceses, nos
grupos comunitários e nas organizações de ativistas.
Seria
melhor que o governo se ativesse às instituições e indivíduos
extremistas que já operam em toda a França. Usando a legislação secular,
o Estado poderia tomar medidas mais agressivas para incapacitar as
redes islamitas – prejudicando-as financeiramente, impedindo que contem
com apoio externo e contendo sua infiltração e exploração de todas as
facetas da sociedade francesa.
Muita
coisa poderia ser feita se o governo aceitasse algumas das sugestões
recentemente publicadas pelo Senado francês. Entre as sugestões estão o
banimento de clérigos extremistas como Yusuf al-Qaradawi, o treinamento
de policiais franceses para monitorarem os movimentos islamitas e a
criação de sistemas para alertar os governos locais de mesquitas e
clérigos islamitas próximos. Programas de treinamento explicando para as
autoridades locais as várias vertentes violentas ou não do islamismo
ativas em toda a França também são recomendados.
O
secularismo francês e o controle governamental sobre a expressão
política são bem diferentes do que se vê nos Estados Unidos. Legalmente,
já é possível fechar instituições radicais e multar indivíduos por
discurso de ódio. Mas os governos franceses têm evitado usar esses
expedientes. O governo também poderia dar mais atenção à investigação de
instituição de caridade islâmicas que apoiam financeiramente vários
movimentos islamitas, fechando-as sem hesitação se descobrir conexões
com o extremismo.
Ao
escolher o CFCM para levar a cabo seus planos de reforma islâmica,
Macron está empregando uma organização indissociável das duas ameaças
que o próprio Macron diz que a França tem que enfrentar: a influência
teocrática estrangeira maligna e o crescimento do ultraconservadorismo
islâmico na França. Já é bastante difícil para o governo francês
monitorar movimentos islamitas em todo o país e intervir quando
necessário. A tentativa de reformar o islamismo francês está destinada
ao fracasso e desviará a atenção de problemas mais urgentes. No caos, os
extremistas prosperarão.
Martha Lee é pesquisadora do Islamist Watch, projeto do Middle East Forum.
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Por que Lise Meitner não ganhou o Nobel?
A
questão posta no título — ou a questão mais geral, para quem vai o
Nobel? — nunca teve resposta simples, e pelo que se observa com o
andamento da física contemporânea, será ainda mais difícil nos próximos
anos. Astronomia, astrofísica e física de altas energias talvez sejam as
mais vibrantes e efervescentes áreas da física atual. Os próximos
laureados deverão continuar saindo dessas áreas, a menos que apareça
algo extraordinariamente inovador em alguma outra área.
Não
pretendo, neste ensaio, discutir os trabalhos dos ganhadores do Prêmio
Nobel de Física (PNF) deste ano, até porque veículos dos mais diferentes
tipos já estão fazendo isso, e para apresentações mais especializadas,
recomendo os textos da profa. Thaisa Storchi Bergmann, do Instituto de
Física da UFRGS[1] e do prof. George Matsas, do Instituto de Física
Teórica da UNESP[2]. No seu canal do YouTube o IF-UFRGS disponibiliza o
colóquio apresentado pela profa. Thaísa Storchi Bergman sobre “O Prêmio
Nobel de Física de 2020 e a história da busca pelos Buracos Negros
Supermassivos no Universo”[3]. Pretendo aqui apenas fazer uma reflexão
em torno da questão posta no título. Recentemente, Hood fez uma incursão
mais geral, em torno da questão que coloquei no início deste ensaio,
para quem vai o Nobel?, olhando para as possibilidades futuras[4]. É uma
boa oportunidade para ver a questão também em retrospectiva. Não há
dúvidas de que a física está ingressando para valer na era que os
sociólogos da ciência há muito tempo denominam grande ciência, uma
expressão introduzida nos anos 1960 por Derek de Solla Price, cofundador
da sociologia da ciência, ao lado de Robert Merton. Para uma breve
discussão dessa ideia recomendo o artigo do prof. Peter Schulz[5]. Price
dizia que 10% dos cientistas publicavam 90% dos artigos. Nem naquela
época isso era verdade, e muito menos o é na atualidade da astronomia,
da astrofísica e principalmente da física de altas energias. Por
exemplo, duas equipes totalizando 1500 cientistas estiveram envolvidas
na detecção de buracos negros com massas intermediárias[4], e artigos
recentes com resultados obtidos no CERN (acrônimo para Conseil Européen
pour la Recherceh Nucléaire) têm mais de mil autores. Essa é a dimensão
da grande ciência atual: investimentos astronômicos e equipes
gigantescas, o que aumenta a proporção de cientistas nas grandes
descobertas.
Acredita-se
que no espaço da pequena ciência, com a participação máxima de meia
dúzia de cientistas por artigo, é razoavelmente simples atribuir valores
relativos da importância de cada um, o que leva à definição do líder da
pesquisa. Em ensaios anteriores[6], [7], mostrei que isso não é bem
assim, e mesmo na pequena ciência, a questão que intitula este ensaio
sempre causou embaraços na concessão dos PN. A história está cheia de
casos ilustrativos, como o de Lise Meitner, talvez o mais exemplar de
todos, e objeto principal deste ensaio. Há diversos critérios para se
abordar eventuais injustiças na concessão do PN. Um deles é o sempre
presente sentimento nacionalista. Muitos brasileiros, eu incluso, não
perdoam a Academia Sueca de Ciências pelo não compartilhamento do PNF de
1950 entre Cecil Powell e César Lattes, quem sabe incluindo também
Giuseppe Occhialini.
Na
tarde do dia seguinte à morte de Lattes, em 8 de março de 2005, recebi
um telefone do chefe de redação do jornal Zero Hora (Porto Alegre),
solicitando um obituário para o Caderno Cultura do dia 12. Era
quarta-feira, e eu tinha que entregar o texto na tarde de sexta. Dois
dias para juntar, rever a literatura e escrever a matéria. Fiz o que
pude para escrever Cesar Lattes e o Nobel tungado[8]. Quando iniciei
esta série de ensaios sobre o PN, aqui no Estado da Arte, pensei em
ampliar o texto de ZH, mas imediatamente vi que eu teria pouco a
contribuir, uma vez que a partir de 2005 muitos trabalhos importantes
foram publicados em diversos veículos. Em uma busca rápida que fiz no
Google Acadêmico encontrei duas dezenas de artigos pós-2005. Para os
leitores interessados em uma leitura mais aprofundada, sugiro os livros
de Francisco Caruso, Alfredo Marques e Amós Troper[9], e Cássio Leite
Vieira[10].
Obituário de Cesar Lattes |
Ponderando a importância científica
Um
critério básico para a atribuição de valores relativos da participação
de alguém em um trabalho de equipe é o que se busca quando se deve
premiar um, ou no máximo três cientistas que contribuíram para
determinada área de conhecimento. Tenta-se descobrir o líder, e se seus
colaboradores tiveram participação do mesmo nível, ou de nível
secundário. Nem sempre essa ponderação é consensual, e como veremos, foi
claramente falha no caso Lise Meitner. Alguém pode pensar no Índice de
Citação Científica (SCI na sigla em inglês), criado por Eugene Garfield
nos anos 1960. Mas, de acordo com Stván Hargittai[11], embora o número
de citações seja importante, para os comitês do PN esse indicador é mais
uma curiosidade do que um fator decisivo. E qual o critério usado pelos
comitês do PN e pela Academia Sueca de Ciências (ASC) para definir as
premiações? Não há um critério definido. Há um procedimento burocrático
até se chegar ao PN, mas cada um que participa do processo define seus
critérios.
Um
resumo muito interessante sobre esses procedimentos foi apresentado por
Peter Rodgers, às vésperas da premiação de 2000[12]. Ao longo de seus
120 anos de existência, os comitês do PN devem ter passado por algumas
mudanças, mas a essência continua a mesma. Portanto, salvo diferenças
quantitativas, como número de cientistas convidados a fazer indicações,
número de respostas recebidas pelos comitês, número de indicados ao
prêmio, etc., o cenário geral é esse descrito por Rodgers referente ao
ano de 2000, para o PN de física. A ASC enviou mais de duas mil cartas a
físicos do mundo inteiro, convidando-os a indicar candidatos para o
PNF. Deve ter recebido algo em torno de 300 indicações, que o comitê,
constituído por cinco professores de universidades suecas, reduziu para
10 ou 15. Na carta-convite eles pedem para os convidados não tornarem
públicas suas indicações.
Cada
uma dessas 10 ou 15 indicações foi enviada para um ou dois
especialistas na área, cujos relatórios são estudados pelo comitê. A
partir daí o comitê decide quem deverá ser premiado e envia sua
recomendação para os membros da classe de física da ASC (aproximadamente
40 membros). Em reunião, a classe de física discute a indicação e
elabora um relatório para os membros de todas as áreas do conhecimento
da ASC (350 suecos e 164 estrangeiros). O relatório pode estar de acordo
com a recomendação do comitê, ou não. Eles podem até fazer outra
indicação. Em uma reunião fechada, geralmente no início de outubro, a
ASC reúne-se para fazer a indicação. Toda a documentação referente ao
processo deve permanecer secreta durante 50 anos, após o que, parte da
documentação poderá ser consultada por historiadores da ciência
credenciados.
Alguns
princípios para a concessão do PN são questionados por parte da
comunidade científica. Por exemplo, a premiação por uma descoberta
específica, e não pela obra de uma vida inteira. Muita gente acredita
que esse princípio impediu o físico alemão Arnold Sommerfeld de ser
premiado. Atualmente, com os grandes projetos de física sendo
desenvolvidos por equipes enormes, questiona-se o impedimento de premiar
organizações, como o CERN, onde praticamente toda a pesquisa de física
de alta energia é realizada. Finalmente, o princípio segundo o qual no
máximo três pessoas podem compartilhar a premiação. Talvez esse
princípio fosse um problema neste ano, caso Stephen Hawking estivesse
vivo. Claramente o comitê de física decidiu, neste ano, premiar os
buracos negros. Daí porque escolheram Roger Penrose, o principal teórico
da área, ainda vivo, que mostrou que o buraco negro é uma robusta
previsão da teoria da relatividade geral, e dois astrofísicos
observacionais, Andrea Ghez e Reinhard Genzel pela descoberta de um
objeto compacto e supermassivo (um buraco negro) no centro de nossa
galáxia. Mas, Hawking ficaria de fora? Quem cederia o lugar? Penrose,
Genzel ou Andrea Ghez? A considerar o que escreveu Penrose para o
obituário do amigo[13], talvez até ele cedesse seu lugar para Hawking.
Penrose começa citando o famoso astrofísico inglês Lord Martin John
Rees:
Poucos dos sucessores de Einstein fizeram mais para aprofundar nossos insights sobre gravidade, espaço e tempo.
Depois,
Penrose passa a destacar a vida acadêmica de Hawking. Aos 32 anos foi
eleito para a Royal Society. Aos 37 é nomeado professor Lucasiano de
matemática em Cambridge. Trata-se da mais famosa cátedra inglesa,
ocupada por Isaac Newton e Paul Dirac. Foi um dos primeiros a mostrar
como flutuações quânticas podem explicar a distribuição de galáxias no
universo. Finalmente, Penrose vaticina:
Hawking não foi, talvez, o maior físico de sua época, mas em cosmologia ele era uma figura superior. Não existe um critério perfeito para o valor científico, mas Hawking ganhou o Prêmio Einstein, o prêmio Wolf, a medalha Copley e o prêmio de Física Fundamental. O prêmio Nobel, no entanto, lhe escapou.
Caso
similar é o de Rosalind Elsie Franklin, que faleceu quatro anos antes
da concessão do PN em fisiologia e medicina de 1962, pela descoberta da
estrutura molecular do DNA. A pergunta é a mesma: no lugar de quem
Rosalind Franklin entraria? Eu penso como Hargittai[11]; ela entraria no
lugar de Maurice Wilkins. A história é interessantíssima, e longa,
razão pela qual merece um ensaio específico, que já está a caminho. Para
o assunto não ficar aqui totalmente no ar, convém destacar alguns dados
em torno do PN em fisiologia e medicina de 1962. Os ganhadores foram
Francis Harry Compton Crick, James Dewey Watson e Maurice Hugh Frederick
Wilkins. O primeiro artigo no assunto é de Watson e Crick, em 1953. No
ano seguinte, Franklin e R. G. Gosling publicaram seu primeiro trabalho
sobre raios-X do DNA. Também em 1954, Wilkins e colaboradores fizeram o
mesmo. Dos três ganhadores, o único que mencionou Rosalind Franklin na
conferência Nobel, foi Maurice Wilkins, justamente aquele que
provavelmente perderia o prêmio se ela estivesse viva.
Uma introdução ao caso Lise Meitner
Repito
o que escrevi acima, opinião compartilhada por praticamente todos os
historiadores da ciência: é difícil saber se o caso Meitner configura a
maior injustiça na concessão do PN, mas é certo que ele é o mais notório
na literatura historiográfica. Inúmeros são os artigos publicados sobre
o assunto, principalmente pela professora de química do Sacramento City
College, na Califórnia, que reuniu seus estudos no livro Lise Meitner: a
life in physics[14]. Quem também dedicou-se à análise desse caso foi
István Hargittai[11].
Tudo
que sabemos sobre a concessão do PN é a relação de indicados e a
relação de quem os indicou. As discussões nas reuniões dos comitês,
assim como da Academia são secretas. Há quem diga que os relatórios são
destruídos, mas não isso não é oficialmente reconhecido. Ocasionalmente,
um ou outro membro desses comitês e da Academia quebram o sigilo, mas
isso não constitui fonte historiográfica, embora seja usada em algumas
publicações. Assim, para analisar a pertinência ou não da decisão da
ASC, costuma-se analisar a vida acadêmica dos ganhadores e dos
rejeitados e suas repercussões na comunidade científica. Quem assim
procede costuma indicar como se comportaria caso fosse membro de um
comitê, ou da Academia. É o que farei a seguir.
O
PN de química de 1944, anunciado em 1945, foi concedido a Otto Hahn
pela descoberta da fissão de núcleos pesados. Vejamos do que se trata, e
quem esteve envolvido com isso.
Desde
o início do século, Ernest Rutherford vinha bombardeando diferentes
materiais com partículas alfa emitidas com altas energias por alguns
núcleos atômicos. Foi assim que em 1911 ele teve a ideia do modelo
atômico, posteriormente elaborado por Niels Bohr. Nesse modelo, o átomo
era constituído de um núcleo, muito pequeno e muito massivo, em torno do
qual giravam os elétrons. Anos depois, em 1919, Rutherford descobriu o
próton, ocasião em que imaginou que no interior do núcleo deveria também
haver uma partícula neutra, com massa similar à do próton. Essa
partícula foi descoberta em 1932, por James Chadwick, seu colaborador, e
recebeu o nome de nêutron. No mesmo ano, o casal Irène e Frédéric
Joliot-Curie realizaram experimentos que levaram à descoberta da
radioatividade artificial produzida pelo bombardeio de núcleos com
nêutrons[7]. A partir de então, diversos experimentos foram realizados
com bombardeio de nêutrons, inicialmente por Enrico Fermi e seus
colaboradores, em Roma, que começaram a bombardear urânio. Assim que
tomou conhecimentos dos resultados obtidos por Fermi, em 1934, Lise
Meitner procurou Otto Hahn e lhe propôs retomarem a colaboração que
estava interrompida fazia quase uma década. É importante destacar esse
fato: fazia quase uma década que Meitner e Hahn não colaboravam
cientificamente. Qual é a importância disso? É que quando começaram os
questionamentos sobre a não concessão do PN, chegaram a alegar que ela
não passava de uma auxiliar de Otto Hahn, e que este era de fato o líder
da pesquisa. Então, para confrontar esse preconceito, vale a pena
mencionar, nem que seja brevemente, o que os dois fizeram até o ano de
1934.
Lise
obteve seu doutorado em física na Universidade de Viena, em 1905, com
uma tese sobre condução do calor em materiais inomogêneos. Logo depois
do doutorado começou a se interessar por problemas da radioatividade,
como a deflexão das partículas alfa ao atravessar os materiais, aquele
problema que estava começando a ser investigado por Rutherford. Seu
primeiro trabalho nessa área foi publicado em 1906, na Physikalische
Zeitschrift, sobre a absorção dos raios alfa e beta. Publicaria mais
dois trabalhos na mesma revista, sobre o mesmo assunto, antes de se
mudar para Berlim em 1907, onde teve como mentor Max Planck, e fez
amizade com jovens cientistas que entrariam para a história da física:
James Franck, Gustav Hertz, Max von Laue, Otto Stern, Max Born, Niels
Bohr, Erwin Schrödinger e Albert Einstein. Mais importante que isso, do
ponto de vista profissional, foi seu encontro com o químico Otto Hahn,
quatro meses mais novo que ela, e que estava à procura de um físico para
auxiliá-lo em experimentos sobre radioatividade. Depois de ter ouvido
piadas de seus colegas de faculdade, que consideravam aberração uma
mulher fazer curso superior, ela teve que enfrentar a primeira
dificuldade profissional por ser mulher. O chefe de Hahn, Hermann Emil
Fischer, PN de química de 1902, não permitia que mulheres trabalhassem
em seu laboratório. Contornaram o problema instalando os equipamentos
numa velha carpintaria, onde foi permitido que ela trabalhasse. Essa
situação perdurou até 1909, quando estudos acadêmicos na Alemanha foram
permitidos às mulheres. Em 1912 foi criado o Kaiser-Wilhelm Institut für
Chemie, em Berlim-Dahlem, uma zona rural nos arredores de Berlim. Ali
no KWI, Lise trabalhou durante 25 anos.
Estabeleceu-se
uma frutífera colaboração entre os dois jovens cientistas, com 30
artigos publicados entre 1907 e 1925. Em 1918 eles publicaram o primeiro
trabalho que desembocaria na descoberta do protactínio, o elemento
químico 91. A partir de 1921, Meitner começa a realizar estudos sem a
participação direta de Hahn. Ela estava mais interessada nos
experimentos de vanguarda da física nuclear, enquanto seu colega
continuava concentrado no refinamento de técnicas radioquímicas. Então,
ao mesmo tempo que publicava com Hahn, ela publicava sozinha artigos
mais fundamentais. Na prestigiada Zeitschrift für Physik, ela publicou,
em 1921, um sobre os diferentes tipos de decaimento radioativo e a
possibilidade de sua interpretação a partir da estrutura central. No
mesmo ano ela publicou nos anais da Sociedade Kaiser Wilhelm para o
Avanço da Ciência, um artigo com fundamentos básicos sobre
radioatividade e constituição atômica. É essa diferença entre os perfis
acadêmicos de Meitner e Hahn, que aparentemente os envolvidos na
indicação e seleção do PN de química de 1944 não levaram em conta. Hahn
era um químico de primeira grandeza, assim como Meitner era uma física
da mesma ordem. Se complementavam na prolífera parceria que fizeram ao
longo de décadas. Por isso os dois mereciam ganhar o PN, de química ou
de física.
A
partir de 1926, os dois tomam definitivamente rumos científicos
diferentes, e desaparecem os trabalhos em parceria. O primeiro trabalho
de Meitner dessa fase completamente independente apareceu ainda em 1925,
na Zeitschrift für Physik, sobre a radiação gama da série do actínio, e
a prova de que os raios gama só são emitidos depois que o átomo decai.
Entre 1925 e 1933, Meitner e seus colaboradores publicaram 25 artigos,
sem a participação de Hahn. Se a história fosse interrompida em 1933,
casualmente o mesmo ano em que Hitler assume a chancelaria alemã,
veríamos que Lise Meitner era uma cientista independente, com produtiva
vida acadêmica. Não é por menos que já em 1924 ela fora indicada ao PN
de química, juntamente com Hahn.
Agora,
em relação ao PN de química de 1944, façamos um exercício mental
supondo que a história começa em 1934. Conforme já adiantei, o nêutron
tinha sido descoberto em 1932, e Enrico Fermi começara a bombardear
núcleos de diferentes elementos químicos com nêutrons. Seu primeiro
trabalho sobre o bombardeio de urânio foi publicado em 1934, na Nature.
Sua hipótese era a possibilidade de obtenção de elementos transurânicos.
Foi isso que animou Lise Meitner e a levou a convidar Otto Hahn para
refazer a parceria científica[15]:
Achei esses experimentos tão fascinantes que, logo após a publicação de seus relatos em Nuovo Cimento e Nature, persuadi Otto Hahn a renovar nossa colaboração direta, interrompida há vários anos, com o objetivo de investigar esses problemas.
Com
a colaboração do jovem doutor em química, Fritz Strassmann, Lise
Meitner e Otto Hahn publicam o primeiro trabalho da nova parceria em
1935. Nesse trabalho, publicado na Die Naturwissenschaften, Hahn e
Meitner apresentaram algumas observações sobre os produtos de
transformação artificial do urânio. Entre 1935 e 1938, essa equipe
publicou 17 trabalhos. Quando tudo caminhava razoavelmente bem, porque
embora de origem judaica, Lise estava escapando da perseguição nazista
porque era austríaca e não trabalhava em órgão do governo Alemão, uma
vez que o KWI era uma instituição privada. Mas, quando em março de 1938 a
Áustria foi ocupada pela Alemanha, Lise teve que fugir para não sofrer
os efeitos das leis raciais da Alemanha nazista. Em julho ela fugiu para
a Suécia, e lá ficou trabalhando por 22 anos no Instituto Nobel para
Física, em Estocolmo, sob a direção de Manne Siegbahn, PN de física de
1924.
Em
dezembro de 1938, Otto e Fritz realizaram o experimento que resultou na
descoberta da fissão nuclear. Vamos ouvir Lise contando essa
história[15]:
Hahn me escreveu no Natal de 1938 descrevendo os surpreendentes resultados de seus últimos experimentos. Eu estava em Kungalv, na costa oeste da Suécia, passando alguns dias de férias de Natal com Otto Frisch, que viera de Copenhague. Naturalmente, fiquei muito empolgada com a carta de Hahn e, nela, ele me perguntou o que eu, como física, achava dos resultados. Ao ler a carta, fiquei completamente entusiasmada e pasma, e também – para falar a verdade – inquieta. Eu conhecia muito bem o extraordinário conhecimento e habilidade química de Hahn e Strassmann para duvidar por um segundo da exatidão de seus resultados inesperados. Esses resultados, eu percebi, haviam aberto um caminho científico inteiramente novo – e também percebi o quanto havíamos nos desviado de nosso trabalho anterior!
Lise Meitner: (A) Viena, 1906; (B) Catholic University of America, 1946; (C) Aeroporto de Viena, 1953; (D) Com Otto Hahn, 1912. |
O caminho para a fissão nuclear
Aqueles
resultados obtidos por Hahn e Strassmann e publicados em janeiro de
1939, na Die Naturwissenschatfen, aceleraram a corrida nuclear,
freneticamente iniciada em 1934, com a participação dos mais importantes
cientistas da área. É isso que acontece com uma pesquisa de grande
impacto. Os experimentalistas correram para a confirmação experimental
dos resultados, enquanto os teóricos começaram a esboçar a explicação.
Com a ajuda do seu sobrinho Otto Frisch, Lise Meitner saiu na frente. Em
menos de um ano, mais de cem artigos foram publicados sobre o assunto,
por vários pesquisadores europeus. E não foi pequeno o impacto. Na
história moderna, apenas a descoberta dos raios-X teve tanto impacto em
curto intervalo de tempo. Mas, por que tanto interesse? Para melhor
apreciar essa interessante história, e minimamente compreender a razão
do interesse, é importante ter ideia da extraordinária complexidade dos
fenômenos nucleares. Tentarei apresentar essa ideia em linguagem
simples, sem recorrer aos conceitos mais complicados.
Todos
sabem que o átomo tem um núcleo, com prótons (carga elétrica positiva) e
nêutrons, em torno do qual orbitam elétrons (carga elétrica negativa).
Estou desprezando o fato de que prótons e nêutrons são constituídos de
quarks. Podemos desprezar essas partículas elementares para elaborar um
cenário mais simples, sem qualquer prejuízo para a explicação dos
fenômenos estudados nos anos 1930 e 1940. O átomo mais simples, sob
todos os aspectos, é o hidrogênio. Um próton e um elétron. A
possibilidade da existência desse par foi explicada no modelo de Bohr.
Para formar o hélio, colocamos mais um próton no núcleo, e mais um
elétron em volta. Com duas cargas positivas o núcleo não pode existir.
Os prótons se repeliriam. O que fazer? Aí vem a magia do nêutron. Ele
não tem carga elétrica, mas é capaz de evitar que os prótons se afastem.
O nêutron é quem dá a liga do núcleo. Então, no núcleo do hélio existem
dois nêutrons para equilibrar o sistema. Assim segue a tabela
periódica. Um próton a mais, alguns nêutrons a mais. Chega um momento
que é tanto próton junto, que não há nêutron que os segure. Isso
acontece com os materiais radioativos. Eles começam a se livrar de
prótons e nêutrons para diminuir o “estresse” no interior do núcleo.
Essa liberação, conhecida como decaimento nuclear, que se constitui na
essência da radioatividade, se dá de várias maneiras. Ora liberam um par
com dois prótons e dois nêutrons, igualzinho ao núcleo de hélio,
inicialmente denominado partícula alfa; ora liberam elétrons,
inicialmente denominados partícula beta; ora liberam energia sob a forma
de raios gama. Dito assim, parece simples. Não é! A descrição de cada
um desses processos, para determinados tipos de átomos é muito complexa.
O fato é que o processo de decaimento faz determinado elemento químico
desaparecer
Sem
nenhuma aparente necessidade, alguns átomos com mesmo número de
prótons, têm mais nêutrons do que o necessário para manter o equilíbrio
nuclear. Parece um defeito da natureza. Por exemplo, aparentemente o
átomo de hidrogênio não precisa de nêutron no seu núcleo, mas existe um
hidrogênio com um nêutron, e outro com dois nêutrons. O primeiro é
conhecido como deutério, e o segundo é o trício. Esses átomos com mesmo
número de prótons e diferentes números de nêutrons são conhecidos como
isótopos. Taí uma palavra-chave importante na física nuclear: isótopos!
Praticamente todos os processos nucleares geram diferentes isótopos. Por
exemplo, o urânio mais abundante é o U-238 (92%), com 92 prótons e 146
nêutrons. Depois vem o U-235 (0,7%), com 143 nêutrons e o U-234
(0,005%), com 142 nêutrons.
Essa
liberação de partículas alfa, beta e raios gama, ou seja, o processo de
decaimento nuclear, pode resultar no desaparecimento de um elemento
químico e o surgimento de outro, ou na substituição de um isótopo por
outro. O notável nesse processo, é que todos os elementos radioativos
terminam chegando no chumbo. Ou seja, todo decaimento radioativo inicia
em determinado elemento e termina no chumbo. Dito de outro modo, todas
as cadeias radioativas têm o elemento chumbo no final. Mas, quanto tempo
dura esse processo? A rigor, o processo é infindável. Portanto, em vez
do tempo de duração, o mais importante é saber a velocidade do
decaimento. Essa velocidade é determinada por uma propriedade típica de
cada elemento, conhecida como meia-vida, que marca o tempo em que a
metade dos átomos do elemento existentes na amostra inicial deixam de
existir. Por exemplo, se um elemento A tem meia-vida de 1 hora, isso
significa que ao final de 1 hora só teremos a metade da quantidade dos
átomos inicialmente contidos na amostra. Ao final da segunda hora, só
teremos ¼ dessa quantidade, e assim por diante. Enfim, cada elemento
radioativo é caraterizado pela quantidade de prótons (seu número
atômico), pela quantidade de nêutrons, que define o isótopo, e sua
meia-vida.
Esses
fundamentos são suficientes para o leitor, mesmo sem uma formação em
física, acompanhar a narrativa a seguir. Mas, é preciso dizer mais uma
coisa, um complicador. O processo de decaimento não é único. Por
exemplo, partindo do urânio, o decaimento chega ao chumbo seguindo mais
de um caminho, como ilustra a figura abaixo. Esses diferentes caminhos
impõem muitas dificuldades aos pesquisadores. Hoje, os físicos e
químicos nucleares entendem todos esses processos, mas nos anos 1930 e
1940 isso era um mistério. A busca pela identificação dos elementos
químicos e a explicação do fenômeno era um tiro no escuro. De um lado,
era indispensável o talento de um químico como Hahn, para a preparação
de boas amostras e o domínio de técnicas analíticas. Por isso ele
mereceu o PN de química. De outro lado, era necessário o talento de um
físico como Meitner, para explicar os resultados obtidos. Por isso ela
mereceria ganhar o PN de química ou de física.
O
urânio decai até chegar ao chumbo por vários caminhos. Quando chega no
Po218 (A), o decaimento pode ir para o Pb214, ou para o At218 (B). A
partir daí várias são as possibilidades de decaimento. |
Voltemos
a 1932, quando o nêutron foi descoberto. Até aquele momento, todos os
experimentos com bombardeio atômico, eram feitos com partículas alfa ou
com prótons. Pelo fato de serem positivamente carregadas, essas
partículas quase não penetram no núcleo, porque são repelidas pelos
prótons. Já o nêutron pode penetrar no núcleo praticamente sem
perturbação. Explica-se, portanto, o entusiasmo de Fermi com a
descoberta de Chadwick. Era um mundo inexplorado para os cientistas
nucleares. Explica-se, portanto, a corrida desenfreada, que estimulou
Lise Meitner a procurar Otto Hahn e propor-lhe retomar a colaboração
científica. Tratava-se de uma corrida de gigantes: Niels Bohr, Enrico
Fermi, Irène Joliot-Curie estavam entre os competidores. Todos
ganhadores de PN e disponibilizando de boas instalações de pesquisa e
competentes colaboradores, assim como Meitner e Hahn, que contavam com
as colaborações de Strassmann e Frisch.
Fermi
foi o pioneiro dessa fase, com seu icônico artigo de 1934, mas
encaminhou a questão equivocadamente. Para ele, o bombardeio de urânio
com nêutrons só podia produzir elementos transurânicos, ou seja,
elementos com número atômico superior a 92, último elemento da tabela
periódica até início de 1940. Como veremos a seguir, o bombardeio
resultava em bário e lantânio, os produtos da fissão nuclear, muito mais
leves do que o urânio. A massa que sobrava nesta reação era
transformada em energia, uma energia capaz de destruir uma cidade, como
ficou evidente em Hiroshima e Nagasaki. Mas, até a descoberta e a
compreensão do mecanismo da fissão nuclear poucos desconfiavam desse
poder destrutivo.
Todavia,
como é muito frequente na pesquisa científica, essa conjectura
equivocada de Fermi foi confirmada por Hahn e Meitner no primeiro
trabalho que eles publicaram sobre o assunto, em 1935. Em 1962, Meitner
escreveu um texto para o boletim da International Atomic Energy Agency
(IAEA), no qual confessa que começou acreditando na hipótese de Fermi,
mas achava muito estranho a existência de uma longa cadeia de
desintegração, aumentando a carga nuclear sem aumentar a massa. Fermi
tinha muita confiança nos seus resultados e desviou seu olhar para outra
linha pesquisa. Mas, Hahn, Meitner e Irène Curie tinham lá suas
desconfianças. Passaram quatro anos obtendo resultados divergentes. Em
cada experimento apareciam vários produtos, com diferentes meias-vidas,
que ninguém sabia bem identificar. Era uma geléia geral descomunal.
Seguindo a hipótese de Fermi, todos buscavam explicações na
possibilidade de elementos transurânicos, mas as contas não fechavam. Um
trabalho chave nessa história foi publicado em outubro de 1937, por
Irène Curie e seu colaborador Paul Savitch.
Usando
refinadas técnicas experimentais, Irène e Paul descobriram um produto
não observado nas pesquisas anteriores. Ele tinha uma vida-média de três
horas e meia, e segundo os autores deveria ser um isótopo do tório. Em
janeiro de 1938, eles publicam outro trabalho afirmando que não se
tratava de um isótopo de tório. Eles dizem que se trata de algo
quimicamente parecido com o lantânio, mas que eles acham que é um
elemento transurânico. Na verdade, tratava-se de uma mistura de bário e
lântanio. Se Irène tivesse percebido isso, provavelmente descobriria a
fissão nuclear alguns meses antes de Hahn e Strassmann. Ela perdeu, pela
segunda vez a oportunidade de fazer uma descoberta importante. Ela
estava próxima de descobrir a fissão nuclear, mas bobeou. A outra vez
foi em 1932, quando seus experimentos mostravam a existência do nêutron e
ela, juntamente com seu marido Frédéric Joliot-Curie pensavam que se
tratava de um raio gama. Chadwick papou o PN de física de 1935[7]. O
grande mérito desses trabalhos de Irène e Savitch foi desviar o foco dos
transurânicos para os elementos abaixo do urânio, abrindo o caminho
para a descoberta da fissão.
Quando
esses resultados estavam em discussão, Lise Meitner teve que fugir da
Alemanha, em julho de 1938. Os trabalhos ficaram por conta de Otto Hahn e
Strassmann. No início de janeiro de 1939, eles publicam na
Naturwissenschaften, o artigo que originou a supracitada carta enviada
por Hahn a Meitner. Intitulado Sobre a detecção e comportamento dos
metais alcalino-terrosos produzidos quando o urânio é irradiado com
nêutrons, esse é o artigo da descoberta da fissão nuclear. Com esse
experimento, realizado em meados de dezembro, eles mostraram que urânio
bombardeado com nêutrons produz, essencialmente, bário e lantânio, dois
elementos bem mais leves que urânio. Para quem sabia ler nas entrelinhas
da ciência, estava claro: a diferença entre a massa do urânio e dos
produtos da reação (bário e lantânio) se transformaria em uma fabulosa
quantidade de energia. Era o que dizia a equação de Einstein,
inocentemente deduzida no contexto da teoria da relatividade especial,
mas que agora apontava para a bomba atômica.
Pioneiros da fissão nuclear. |
O que mais, além do experimento de Hahn e Strassmann?
A
ninguém resta dúvida que o experimento de Hahn e Strassmann aceleraria a
corrida nuclear. Meitner teve o privilégio de ser informada antes da
publicação do artigo. Estava ao lado do sobrinho, Otto Frisch, entre
camadas de neve do rigoroso inverno dinamarquês. Imediatamente fizeram
uma análise teórica dos resultados. Em parceria ou sozinhos, escreveram
alguns artigos em 1939. Historicamente, talvez os mais importantes sejam
os dois artigos enviados à Nature, em 16 de janeiro. No primeiro,
assinado por Meitner e Frisch, com título Disintegration of Uranium by
Neutrons: a New Type of Nuclear Reaction, eles partem de uma ideia
lançada por Niels Bohr em 1936, conhecida como modelo da gota líquida, e
apresentam a primeira explicação teórica da fissão nuclear. O núcleo de
um elemento pesado, como urânio, comporta-se como uma gota de um
líquido qualquer, sob forte tensão interna. Adição de um determinado
valor de energia, de forma violenta, como ocorre no bombardeio de
nêutrons, a gota pode ser dividida em duas menores. A partir desse
modelo clássico, eles apresentaram uma boa descrição do fenômeno
descoberto por Hahn e Strassmann. O segundo artigo, assinado por Frisch,
é importante porque é nesse artigo que ele usa a expressão nuclear
fission para denominar o fenômeno. A inspiração veio da biologia.
Fission já era usado na biologia para se referir à divisão celular.
Em
20 de janeiro foi a vez de Niels Bohr enviar seu trabalho sobre a
fissão, para a Nature, no qual ele detalha alguns aspectos do cenário
desenhado por Meitner e Frisch. Fermi, como não poderia ser diferente,
também foi rápido no gatilho. Em 16 de fevereiro enviou uma carta para o
editor da Physical Review, em coautoria com cinco colaboradores,
apresentando resultados preliminares dos experimentos realizados por
eles, após conhecimento do trabalho de Hahn e Strassmann. Fermi estava
interessado na determinação da alta energia liberada após a fissão.
Finalmente,
um dado sobre o impacto da descoberta da fissão nuclear. Entre 1934 e
1938, o número de trabalhos publicados por ano sobre o bombardeio de
núcleos com nêutrons sempre esteve abaixo de 10. Em 1939 foram
publicados 104 trabalhos.
O Prêmio Nobel escorrega pelos dedos de Lise Meitner
Algumas
pessoas, envolvidas ou não com o processo de indicação do PN naqueles
anos, chegaram a afirmar que Lise Meitner era apenas uma auxiliar de
Otto Hahn. Esse tipo de argumento foi usado em vários outros casos, como
o de Cesar Lattes. A história de vários equívocos e injustiças na
concessão do PN sugere que poucos envolvidos no processo se dão ao
trabalho de uma análise detalhada da produção científica dos candidatos
ao prêmio. Sem contar que eventualmente o comitê solicita o parecer de
alguém que pouco conhece o assunto. Por exemplo, em 1921 o comitê de
física solicita ao professor de oftalmologia da Universidade de Uppsala,
Allvar Gullstrand, um relatório sobre a teoria da relatividade para
aprovar ou não a indicação de Einstein. O relatório, altamente crítico
em relação à teoria da relatividade, contém vários equívocos
conceituais[16]. Einstein foi premiado naquele ano, por que também havia
sido indicado pelo trabalho sobre o efeito fotoelétrico, e o relatório
elaborado por Svante Augus Arrhenius foi amplamente favorável. No caso
Meitner, a impressão que eu tenho é que deram pouca atenção à leitura de
sua obra científica. Pelo que está dito acima, vê-se a independência
científica de Lise Meitner, e pelas citações na literatura, depreende-se
o respeito que o seu trabalho tinha da comunidade científica. Vendo a
história em retrospecto, fica claro que Strassmann e Frisch eram de fato
auxiliares de Hahn e Meitner.
A
tabela abaixo mostra as indicações que Otto Hahn e Lise Meitner tiveram
para o PN de física ou de química, entre 1924 e 1948. Mesmo não tendo
conhecimento das alegações de quem os indicou, nem dos comentários
apresentados nas reuniões dos comitês e da ASC, a partir da tabela
podemos desenhar um cenário muito interessante. Entre 1924 e 1926, Hahn e
Meitner foram repetidamente indicados para o PN de química, juntos ou
separados, por personalidades de peso no mundo científico da época, e
hoje ícones da história da ciência, como Planck e Nernst. A partir de
1937 eles começam a ser indicados também para o PN de física. Aqui cabe
um comentário de relevância histórica. Quando a ASC concedeu o PN de
física de 1903 a Becquerel e ao casal Curie, pela descoberta da
radioatividade, o comitê de química ficou incomodado, porque
consideravam que a radioatividade era um assunto da química[7]. Todavia,
a descoberta e a explicação da fissão nuclear resultaram da habilidade
experimental de químicos e o do conhecimento teórico de físicos. Aliás,
esse seria aspecto mais importante para justificar o compartilhamento do
prêmio entre Hahn e Meitner. A tabela mostra que vários físicos
importantes consideravam que a descoberta também pertencia à área da
física. Entre os que indicaram Meitner para o PN de física, podemos
destacar Bohr, Laue, Heisenberg, Compton, Franck e Louis de Broglie,
todos ganhadores do PN de física.
Então,
por que o PN fugiu das mãos de Lise Meitner? Ninguém sabe. Como os
comentários apresentados nas reuniões dos comitês e da ASC são secretos,
o que restam são as especulações da literatura. Claramente, Strassmann
não foi incluído na premiação de Hahn, porque todos sabiam que se
tratava de um jovem auxiliar de pesquisa. Mas este não era o caso de
Meitner. Há quem considere a importância acadêmica de Hahn, superior à
de Meitner, pelo seu envolvimento no programa nuclear alemão[17], mas
esse aspecto não foi levado em consideração pelos famosos físicos que a
indicaram em várias oportunidades. Há também quem especule que Siegbahn,
o diretor do Instituto Nobel para Física, em Estocolmo, onde Meitner
trabalhava, não gostava do seu estilo de pesquisa. Nesse sentido, é
interessante observar que ele indicou Hahn para o PN de física de 1943,
sendo ele, Siegbahn, PN de física de 1924, sendo Hahn químico e Meitner
física. Hargittai[11] acha que Lise Meitner ganhou mais prestígio tendo
sido excluída do PN, do que se tivesse ganho. Além de prêmios ganhos em
vários países, ela foi homenageada com a denominação do elemento químico
sintético 109, o meitnério. Mas é um fato histórico que ela ficou muito
amargurada com sua exclusão, tanto do PN de química, quanto do PN de
física. Em sua detalhada biografia de Lise Meitner, Ruth Sime também
sugere que Siegbahn, por pura inveja, foi o principal empecilho[14].
De
acordo com Sime, o comitê de química do PN e a classe de química da ASC
resolveram adiar a concessão do prêmio de 1944, para avaliar melhor a
colaboração de outros na descoberta da fissão. Depois da guerra, o
comitê decidiu reconsiderar a concessão do prêmio, algo até então
inédito na história do PN. No início de outubro de 1945 começaram a
circular boatos de que Lise estava no PN de química de 1944, ou no de
física de 1945. Foi uma decepção geral quando, em 16 de novembro a ASC
anunciou Hahn para o prêmio de química, e Wolfgang Pauli para o de
física. Em Farm Hall, onde cientistas alemães (incluindo Hahn) estavam
presos[17], a alegria foi geral, mas na Suécia, os amigos de Meitner
ficaram furiosos.
Oskar
Klein, físico sueco recém-eleito para a ASC, rasgou a lei do silêncio e
informou Bohr sobre os detalhes da tempestuosa reunião que resultou na
indicação de Hahn. Por sua importância histórica, concluo este ensaio
com algumas dessas informações. Os químicos Theodor Svedberg e Arne
Westgren já tinham alertado para a importância das contribuições de
Meitner e Frisch, mas a ASC achou muito complicado alterar a decisão
tomada em 1944. A sensação de Klein era que a ASC não queria dar a
impressão de estar sendo manipulada pelos EUA. É bom lembrar que a
Segunda Guerra Mundial tinha chegado ao fim em agosto de 1945, e que
Hahn tinha participado do projeto nuclear alemão e estava preso em Farm
Hall, na Inglaterra, com Heisenberg, Strassmann e outros cientistas
alemãs. Depois de muita discussão, uma pequena maioria votou para não
alterar a indicação de 1944. Provavelmente Meitner foi excluída por
causa da regra das três pessoas. Klein acha que se Meitner fosse
incluída, seria difícil excluir Strassmann e Frisch. Não concordo com
essa afirmação. Pelo que mostrei acima, estava claro que Lise Meitner
era uma cientista independente, ao passo que Strassmann e Frisch eram,
neste caso, apenas auxiliares.
Notas:
[1]
T. S. Bergmann, “Explicando o prêmio Nobel de Física de 2020,”
Instituto de Física – UFRGS, 2020. [Online]. Available:
https://www.if.ufrgs.br/if/explicando-o-premio-nobel-de-fisica-de-2020/.
[Accessed: 10-Oct-2020].
[2]
G. Matsas, “Penrose, Genzel e Ghez dividem o Prêmio Nobel de Física
2020 por sua pesquisa em buracos negros,” Sociedade Brasileira de
Física, 2020. [Online]. Available:
http://www.sbfisica.org.br/v1/home/index.php/pt/acontece/1182-penrose-genzel-e-ghez-dividem-o-premio-nobel-de-fisica-2020-por-sua-pesquisa-em-buracos-negros.
[Accessed: 10-Oct-2020].
[3]
T. S. Bergmann, “O Prêmio Nobel de Física de 2020 e a história da busca
pelos Buracos Negros Supermassivos no Universo,” Instituto de Física –
UFRGS, 2020. [Online]. Available:
https://www.youtube.com/user/Institutodefisica. [Accessed: 20-Oct-2020].
[4] M. Hood, “In an era of team science, are Nobels out of step?,” Phys Org, 2020.
[5] P. Schulz, “Ciência pequena, média ou grande,” Jornal da Unicamp, 2018.
[6] C. A. dos Santos, “A mística e o glamour do Prêmio Nobel,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 26-Jul-2020.
[7] C. A. dos Santos, “O Nobel na família Curie,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 30-Aug-2020.
[8] C. A. dos Santos, “Cesar Lattes e o Nobel tungado,” Zero Hora, Porto Alegre, p. 2, 12-Mar-2005.
[9] F. Caruso, A. Marques, and A. Troper, Cesar Lattes, a descoberta do méson pi e outras histórias. Rio de Janeiro: CBPF, 1999.
[10]
C. L. Vieira, Um mundo inteiramente novo se revelou: uma história da
técnica das emulsões nucleares. São Paulo: Livraria da Física, 2012.
[11] S. Hargittai, The road to Stockholm. Nobel prizes, Science, and scientists. Oxford: Oxford University Press, 2002.
[12] P. Rodgers, “Countdown to the nobel prize,” Phys. World, vol. October, 2000.
[13] R. Penrose, “Stephen Hawking,” Entornos, vol. 31, no. 1, pp. 257–260, 2018.
[14] R. L. Sime, Lise Meitner: A life in physics. Berkeley: University of California Press, 1996.
[15] L. Meitner, “Right and wrong roads to the discovery of nuclear energy,” IAEA Bull., vol. 4, pp. 6–8, 1962.
[16] A. Pais, “Sutil é o Senhor . . .”. A ciência e a vida de Albert Einstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
[17] C. A. dos Santos, “O contexto científico da peça Copenhagen – Parte 2,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 12-Jun-2020.
[18]
Nobel-Prize-Org, “Nomination and Selection of Nobel Laureates,” Nobel
Prize Organization, 2020. [Online]. Available:
https://www.nobelprize.org/nomination/. [Accessed: 20-Jun-2020].
Agradeço ao professor Luiz Fernando Ziebell, do Instituto de Física da UFRGS, pela cuidadosa leitura do manuscrito.
Carlos
Alberto dos Santos é professor aposentado pelo Instituto de Física da
UFRGS. Foi Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA e pesquisador
visitante sênior do Instituto Mercosul de Estudos Avançados. Premiado
com o Jabuti em 2016 (3º. Lugar na categoria Ciências da Natureza,
Matemática e Meio Ambiente), atualmente é professor visitante no
Instituto de Física da UFAL.
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A ideia do ano: uma nova Constituição brasileira vai mudar tudo - para melhor, claro.
Tive uma ideia! Que tal uma nova Constituição no Brasil? Está tudo tão calmo mesmo. Paulo Polzonoff Jr., vai Gazeta do Povo:
É
raro eu usar este adjetivo, ainda mais acompanhando o nome de um
político, mas não é hora para meias-palavras: o deputado Ricardo Barros é
um gênio. Só mesmo alguém com uma inteligência avantajada, só mesmo um
visionário, só mesmo alguém que pensa com o lado esquerdo do cérebro
(ops) para, em pleno Ano da Graça de 2020, propor a elaboração de uma
nova Constituição brasileira.
Barros,
ex-ministro de Dilma que atua como líder do governo Bolsonaro (vai
entender!), talvez tenha se inspirado na minirrevolução chilena. Mas, se
fosse para apostar, diria que ele se inspirou mesmo em Hugo Chávez e
outros grandes constitucionalistas latino-americanos. Essa gente cheia
de boas intenções e que tem certeza de que o problema de países pobres,
atrasados e violentos como o Brasil é o que está registrado, em
português semi-inteligível e rigorosamente de acordo com as regras da
ABNT, num livrinho.
Não
será uma tarefa fácil. Ainda mais num país tão conflagrado e dividido
como o Brasil. Mas tenho certeza de que Barros, um homem à frente do seu
tempo, previu as intermináveis discussões nas redes sociais, as laudas e
mais laudas escritas sobre cada um dos zilhares de artigos, todas as
reviradas de olhos da apresentadora enfadada do telejornal e
principalmente o anseio por um documento que, de uma vez por todas,
deixe claro quem é que manda neste país: o Judiciário.
Tom e forma
Mas
me adianto. Porque um dos desafios dos novos constituintes será
justamente escolher o tom e a forma mais adequados para a Carta Magna do
século XXI. Os reacionários sugerem a repetição da formalidade do texto
constitucional, com seus outrossins e por conseguintes. Mas felizmente
temos jovens lideranças que impedirão essa aberração e, aqui e ali,
distribuirão emojis por todo o texto. “Todo mundo é igual perante a
lei”, emoji de coração. “Não pode matar o amiguinho”, emoji de raivinha.
“É assegurado a todos o direito à livre expressão”, emoji de
gargalhada.
Uma
das minhas esperanças em relação à Novíssima Constituição do Brasil é
que ela seja sincerona. Uma Constituição que tenha artigos como “São
vedados aos servidores públicos salários maiores do que os dos ministros
do Supremo Tribunal Federal – mas se quiser pode”. Ou ainda: “É
assegurada a separação entre os poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário – mas cabe ao STF a decisão final sobre tudo”. Ou: "Manda
quem pode e obedece quem tem juízo".
O
maior perigo enfrentado pela ideia de uma Constituição muderna e
antenada com o nosso tempo é a possibilidade de que o texto seja
contaminado por ideias “sérias”, voltadas para o Bem Comum. É possível
que, entre os novos constituintes, o povo-que-não-sabe-votar escolha
esse tipo de gente que se diz sensata, mas que todos sabemos serem
fascistas. Gente que, na contramão do Espírito do Tempo, vai propor uma
Constituição magrinha como a estadunidense, que se limite a proteger o
indivíduo do Estado.
Direitos, direitos, direitos,...
Quando
todos sabemos que a Constituição serve para garantir direitos,
direitos, direitos, direitos, direitos, direitos. E para proibir todo e
qualquer tipo de dissidência ou discordância, que são apenas duas
palavras que começam com “d” e que servem para ocultar todo o ódio da
sociedade opressora racista, machista e transfóbica. Se a Nova
Constituição não for escrita em linguagem não-binária, o Brasil estará
perdendo uma grande oportunidade.
Aliás,
fica aqui a minha sugestão ao deputado Ricardo Barros para que ao menos
parte da Nova Constituição seja elaborada pelo povo. É, democracia
diretaça mesmo. Talvez se possa organizar um grande sorteio de artigos e
incisos e parágrafos elaborados por simples camponeses, por expoentes
do pensamento facebookiano, por jogadores de futebol e até por (arght)
jornalistas.
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Mais quatro anos de Trump
Não só pensamos que Trump ganhará, como cremos que poderá mesmo aumentar a sua vantagem, transformando estados democratas em 2016 em estados republicanos; por exemplo o Nevada, o Minnesota e New Hampshire. Afonso Moura para o Observador:
Ele
não se candidataria. Mas candidatou-se. Ele não ganharia a primária
republicana. Mas ganhou. Ele não conseguiria vencer a maravilhosa
Hillary. Mas venceu. Quando 2016 presenciou a vitória de Donald J. Trump
não podia acreditar naquilo que estava perante os seus olhos. Depois da
vitória do Brexit, assistíamos agora à vitória dum outsider no país
mais influente do mundo. A eleição presidencial americana de 3 de
Novembro será um evento seguido por todo o globo – o que se passa nos
Estados Unidos costuma vir a influenciar decisivamente os destinos do
planeta.
Veremos
nós a reeleição de Trump ou a eleição de Biden? Se acreditarmos naquilo
que a mídia, principalmente a mainstream e europeia, nos transmite uma
coisa é certa – a vitória de Trump parece impossível. Só que como diz o
adágio anglófono fool me once, shame on you, fool me twice, shame on me.
Tradução livre: à segunda só cai quem quer.
Será
Joe Biden um candidato melhor do que Hillary Clinton? Tenho as minhas
dúvidas. Não é segredo para ninguém que em 2016 o DNC (Democratic
National Committee) fez a vida a negra – perdoem-me a expressão – a
Sanders e deu um empurrãozinho à Hillary. Só o futuro dirá se a mesma
coisa não ocorreu contra o senador do Vermont nesta primária. O partido
democrata encontra-se mergulhado num dilema insolúvel, o fosso entre a
estrutura partidária, essencialmente centrista e moderada, e a base,
cada vez mais reivindicativa e radical, amplia-se ano após ano.
Recordemo-nos que em 2016 Bernie Sanders ganhou na primária dois estados
importantes que os democratas perderiam para Trump, dois estados do
Rust Belt, Michigan e Wisconsin. O discurso proteccionista de Donald
Trump foi chave para conquistar esses dois estados.
Nos
Estados Unidos da América vigora um sistema de colégio eleitoral
(Electoral College) que tem como número mágico o 270, ou seja, o
candidato vencedor tem que chegar a esse número ou ultrapassá-lo. Os
candidatos focam-se em vencer os estados individualmente, quem vence um
estado recebe todos os eleitores desse estado (tirando algumas excepções
pouco relevantes). E a importância dos estados varia, dois exemplos: a
Flórida vale 29, enquanto o Minnesota vale 10.
Joe
Biden sofre da descredibilização da classe política, tal como Hillary
Clinton. Trump diz em bastantes dos seus comícios que não é um político e
isso, por mais estranho que possa parecer a um europeu, é extremamente
sedutor para um votante norte-americano, independentemente das suas
preferências políticas. Na Europa – principalmente na continental –
existe uma glorificação dos políticos que os americanos não compreendem,
para eles os homens podem actuar para o bem da comunidade através da
sua cidadania, não precisam de ser eleitos. Trump também se gaba
frequentemente de que não precisa da política para nada, de que tinha
uma boa vida antes de se lançar na política. Alguém pode negar isto?
Dificilmente. É complicado ver uma vantagem de Biden face a Trump neste
ponto. Alguns dirão que isto é superficial já que Trump faz parte da
elite norte-americana, porém há uma diferença crucial entre fazer parte
da elite norte-americana e fazer parte da elite política
norte-americana.
A
desordem e os estragos provocados pelos manifestantes depois da morte
de George Floyd terão consequências negativas para o partido democrata. A
complacência do mesmo com as milícias trotskistas e spartakistas
(conhecidas como ANTIFA) convenceu bastantes moderados que não gostam de
Trump a votar nele. Dados recentes dizem que Trump tem índices de
aprovação com os Afro-americanos impensáveis para um republicano
(veja-se a Rasmussen Reports por exemplo). É altamente plausível que
Trump seja o republicano com os maiores índices de aprovação das últimas
quatro décadas nessa comunidade. Cidadãos afro-americanos viram alguns
dos seus negócios serem destruídos durante as manifestações, a
reprovação face a esses actos por parte do partido democrata foi para
eles demasiado tardia e pouco convincente.
Há
quem pense que a gestão da pandemia de Donald Trump custar-lhe-á a
eleição. Desenganem-se, esse pensamento simplista só é esmagadoramente
maioritário entre os nova-iorquinos e os californianos. Os americanos,
povo economicista de matriz calvinista, realizam-se através do trabalho.
A destruição da economia para estancar a pandemia é um preço que muitos
não querem pagar. Enquanto o católico vive para o prazer, o calvinista
vive para trabalhar. Basta comparar Rodrigo Borgia com João Calvino.
Dir-me-ão que estas identidades estão ultrapassadas, e que a
secularização das nossas sociedades arrumou com esta questão. Erro
crasso. Esta fetichização do trabalho persiste dentro do espírito
norte-americano, mesmo que diluída ou subterrânea. Para um calvinista é
no trabalho que Deus nos abre a porta à salvação e que um homem se
dignifica. Acreditem que muitos americanos terão isso em mente na hora
de votar, e aqueles que querem bloquear o trabalho para preservar a
saúde serão punidos.
Contrariamente
ao que se diz, Trump é menos belicista do que Biden, como já tinha sido
menos belicista do que a esposa de Bill Clinton. O candidato
republicano usa o argumento de trazer tropas americanas para casa antes
do Natal, deixando críticas severas à indústria do armamento e a alguns
generais que defendem as guerras a todo o custo. Seguidamente a isto diz
à sua plateia que a América anda a construir países estrangeiros em vez
de reconstruir as estruturas decrépitas no seu próprio território.
Juntemos a isto a questão da transição energética, na qual Biden tem uma
posição versátil. É fantástico salvar o planeta mas quando isso é
sinónimo de perder o nosso emprego a coisa complica-se. O candidato
democrata tenta atingir um justo meio aristotélico, dizendo que é
preciso começar a transição sem descurar o emprego. Trump tem uma
posição diferente, o desemprego deve ser evitado, a transição energética
não é uma das suas prioridades.
A
política – ou se preferirem o político – é conflitual por essência,
Carl Schmitt sabia-o e Chantal Mouffe tem feito bastante para
relembrar-nos desse facto desconfortável. Quando Biden se coloca numa
posição conciliadora ele está a amputar as suas chances de sucesso.
Trump, animal político, sabe que é lançando achas para a fogueira e
exacerbando as divisões que se ganha. Fê-lo em 2016 e está a fazê-lo em
2020.
Se
adicionarmos à corrida a entrada de Amy Coney Barrett no tribunal mais
importante da América (Supreme Court) e o portátil do inferno (laptop
from hell) – que contém informações comprometedoras sobre Joe Biden e o
seu filho Hunter – a Casa Branca parece afastar-se cada vez mais do
partido democrata.
Dias
antes do derradeiro dia ainda está tudo em aberto. Biden pode ganhar,
Trump pode ganhar, o resultado pode não ser sabido. É possível que o
vencedor não seja declarado imediatamente e a tensão alastrar-se-á;
alguns dizem mesmo que poderá não se saber o vencedor no início de 2021.
A eleição pode ser decidida pelo tal tribunal, o Supreme Court, como em
2000 quando Bush ganhou a Gore.
Todavia
seria incorrecto não dar ao leitor a nossa previsão, sabendo que esta é
falível. Não só pensamos que Trump ganhará, como cremos que poderá
mesmo aumentar a sua vantagem, transformando estados democratas em 2016
em estados republicanos; por exemplo o Nevada, o Minnesota e New
Hampshire. Resta-nos desejar uma boa madrugada aos que seguirão a
contenda e aconselhamo-los a fazerem pipocas, esta eleição será tão
apaixonante como os melhores clássicos de Hollywood.
BLOG ORLANDO TAMBOSI