De sua casa perto de San Francisco, na Califórnia, o ativista digital falou por vídeo ao editor Marcelo Marthe, de Veja:
As redes representam de fato uma ameaça à humanidade, como faz crer o documentário?
Não é um exagero? Se a tecnologia continuar levando o mundo para o
caminho atual, a ameaça existencial será concreta. A lógica das redes
destrói a noção de uma realidade compartilhada por todos, ao fragmentar
as pessoas em bolhas sem contato entre si. Se você não tem uma realidade
em comum com as pessoas a sua volta, terá violência. As redes servem
para fornecer a cada grupo um espelho de autoafirmação, e não para
informar.
Essas bolhas de opinião dentro das redes são culpadas pela polarização de hoje? As
inteligências artificiais das redes criam uma espécie de túnel da
realidade que leva as pessoas cada vez mais para o interior de suas
próprias bolhas. Por definição, personalização é lucrativo, e
polarização também, porque você dá à pessoa uma versão extrema da
própria realidade. Se uma adolescente começa a ver vídeos de dietas no
YouTube, o aplicativo vai mostrar mais vídeos de dietas. O YouTube não
sabe se são bons ou ruins, apenas calcula se as ofertas vão prender a
atenção.
Não é alarmismo sustentar que todos somos manipulados pelas redes sociais? Evoluímos
para nos importarmos com coisas como a aprovação social. Se muitas
pessoas falam coisas ruins sobre mim no Twitter ou no Instagram, isso
machuca. Mesmo que haja milhares de comentários positivos, se houver
dois negativos, eu só terei olhos para os negativos. Quando as redes
usam essa suscetibilidade para seus propósitos, isso é manipular. Se
você tenta se afastar no Instagram ou do Facebook, eles mandam e-mails
para fazer você voltar. É como um traficante de drogas perguntando se
você não quer um pouco mais de cocaína.
O vício nas redes e a dependência química se equivalem? Os
traficantes são apenas uma metáfora — mas que funciona. O ponto é: você
se sente no controle quando olha o TikTok, o Facebook e o YouTube, ou
entra para dar uma olhada e uma hora depois não sabe por que continuou
ali? Isso é um sintoma de que a humanidade perdeu o controle do próprio
destino. Se eles controlam nossa informação, eles controlam nossas
ações. Se quisermos retomar o controle, precisamos reconhecer que eles
controlam mais a gente do que nós controlamos a tecnologia.
Como as redes afetam nosso bem-estar? Está
muito claro que as empresas de mídias sociais não são construídas para
que as pessoas se sintam realizadas em viver suas vidas. Nós valemos
mais para o Facebook se formos viciados, distraídos, indignados,
polarizados, narcisistas e desinformados do que se vivermos livremente
de maneira rica, e não grudados nas telas. Uma pessoa que acampa com os
amigos ou passa horas jogando futebol não é tão rentável para o Facebook
como aquelas que passam a maior parte do tempo preocupadas com a
aprovação social desse sistema.
Percebe algum movimento das empresas para mudar essa lógica?
As companhias nunca vão mudar seu modelo por conta própria. Isso só vai
acontecer com uma pressão externa poderosa e regulamentações
governamentais. Espero que o filme crie um desejo coletivo, e que as
pessoas acordem. Muitos primeiros-ministros, senadores, membros do
Parlamento britânico e líderes de empresas de tecnologia assistiram ao
documentário e estão respondendo positivamente. Funcionários dessas
empresas veem o filme e sabem que é a verdade.
No Brasil, as fake news são um problema muito debatido, mas sem solução. Como lidar com elas?
É um problema grave. Vi um estudo mostrando que, na última eleição
brasileira, mais de 80% das pessoas tiveram acesso a pelo menos uma fake
news antes de Jair Bolsonaro ser eleito presidente. Agora mesmo há
pessoas mal-intencionadas tentando manipular eleições nos Estados Unidos
e na África. A terceira guerra mundial não se dará com armas e munição,
mas com bombardeios de informação.
Como evitar isso?
É complicado. Nós acreditamos no que queremos acreditar, porque
queremos afirmação. Um dos atalhos da mente é deduzir que, se todos
acreditam em algo e dizem que é verdade, então deve ser verdade.
Precisamos dar um passo para trás e nos questionar se podemos confiar em
qualquer informação que se espalhe de modo viral. Separar a verdade da
mentira cabe a nós.
Um dos conselhos do filme é checar tudo o que se lê nas redes. Qual a importância da imprensa profissional nesse esforço?
As redes, especialmente o Facebook e o Twitter, transformaram a
imprensa: agora, o jornalismo precisa se enquadrar em posts virais para
ganhar visibilidade. Até os bons jornalistas têm de entrar no jogo e
exagerar alguns aspectos dos fatos. As pessoas precisam de fontes de
informação que as tratem como consumidores que pagam por uma assinatura e
têm de ser respeitados.
Como é sua relação com o celular e as redes sociais hoje?
Eu uso o mínimo possível. Estou no Twitter e no Facebook, mas não os
utilizo muito, e sou muito consciente do que compartilho. Tenho um
perfil no Instagram que, após ficar desativado por oito anos, ganhou 30
000 seguidores na semana passada, por causa do filme. Mas meu conselho
é: se você puder sair das redes, saia.
Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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