Ferris Bueller é tóxico e um bully, dizia o tuíte. A campanha de cancelamento não foi adiante (ainda). Mas achei melhor me precaver. Save Ferris! Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff Jr.:
Era
um sábado, há algumas semanas. Eu estava tranquilamente tomando meu
café e planejando um dia inteiro de merecido e necessário ócio. Depois
de dar uma volta no quarteirão para tentar sintetizar um pouco de
vitamina D, pretendia passar o dia montando um quebra-cabeça. Mas aí
tomei a estúpida decisão de ligar o celular, clicar na rede social e me
deparar com um tuíte que acabou com meu dia.
Dizia
o tuíte muito simplesmente que estava na hora de cancelar Ferris
Bueller – o personagem da melhor comédia de adolescente de todos os
tempos, “Curtindo a Vida Adoidado”. Por quê? Em tempos de redes sociais
as pessoas não sentem a menor necessidade de explicar os motivos. Os 280
caracteres do Twitter são uma abundância, porque o raciocínio das
pessoas não requer tantas palavras, conceitos, contextualizações, teses,
antíteses, sínteses. É o que é e pronto.
Dizia
o tuíte, pois, que Ferris Bueller, interpretado magistralmente por
Matthew Broderick naquela que é provavelmente a maior obra-prima de uma
fábrica de obras-primas chamada John Hughes, é um personagem tóxico e um
bully – palavrinha importada que podia muito bem ser substituída por
nosso velho conhecido “Valentão do Fundão”.
Ao
ler aquilo, encerrei na hora a amizade com a pessoa que retuitou a
opinião herege. Tudo tem limite. A pessoa pode defender o Lula, por
exemplo. Pode tentar argumentar que Stalin só queria o bem dos
camponeses soviéticos. Pode dizer (como disse, aliás) que Suplicy é o
político mais puro que existe no Brasil. E, às vezes, até porque
compreendo esses arroubos que nos fazem deixar registradas umas sinapses
meio tortas que nos escapam no sábado à noite, pode fazer alguma
associação esdrúxula entre RPG, Xuxa e a filosofia de Camus.
Mas
falar mal de Ferris Bueller está fora de cogitação. Porque Ferris
Bueller não é apenas o melhor personagem do melhor filme de adolescência
de todos os tempos. Ferris Bueller é, por vias tortas, um formador de
caráter. Ou você nunca quis ter um amigo que soubesse escolher o dia
perfeito para burlar o "sistema" e, assim, construir uma memória que
ecoará pela eternidade.
Hedonismo? Epicurismo? Estoicismo? Não! É Ferrisbuellerismo mesmo.
Ode à vida
Aqui
vou precisar me conter para não escrever uma tese de doutorado sobre o
filme a que assisti mais de 30 vezes. Mas desafio qualquer doutor em
semiótica ou toxicologista a encontrar algo no roteiro que seja outra
coisa que não uma ode à vida. Uma ode a um só dia perfeito. Que também é
uma ode à amizade, ao amor. E uma ode ao risco – que é algo que a
geração que quer cancelar Ferris Bueller simplesmente não compreende.
Até porque não tem nada a perder.
Ao
se fingir de doente para passar um dia na companhia da namorada e do
melhor amigo, Ferris Bueller vê a vida como ela deveria ser vista às
vezes: do alto. Hughes, aliás, transforma isso magistralmente em imagem
ao colocar os personagens no topo do prédio mais alto de Chicago. De lá,
as pessoas na rua parecem formiguinhas silenciosas, cada qual cumprindo
seu papel no mundo. Se a poesia desta cena lhe escapa, amigo, volte
duas casas e dê uma folheada no velho e bom Thoreau.
Mas
não estou aqui para intelectualizar "Curtindo a Vida Adoidado" e seu
protagonista, Ferris Bueller. Estou aqui mais para enaltecer a
simplicidade da juventude, hoje perdida entre mil e uma causas
políticas. Bueller, aliás, é só um curioso que não está nem aí para os
“ismos”, como ele mesmo diz no começo do filme. Ele só quer almoçar num
restaurante chique, assistir a um jogo de beisebol, visitar um museu,
sentir o vento no rosto a bordo de uma Ferrari. Por um dia, um único dia
apenas, ele quer se sentir vivo, nem que para isso tenha de suportar
algumas semanas de castigo.
Ferris
Bueller é a personificação de algo que esses moços, moças e moces da
cultura do cancelamento desconhecem: a relação entre risco e recompensa.
Uma relação que até aqui moveu o mundo, dando origem a homens
bem-sucedidos e também a fracassados. Mas nunca a homens inertes que
passam o dia comendo batata frita no sofá, os dedos ensandecidos
percorrendo as redes sociais, falando da importância de ficar em casa,
de se proteger, senão o coronavírus te pega, te pega daqui, te pega de
lá. Só há um tipo de gente que foge do risco: o covarde.
Ferris
Bueller é a rebeldia virtuosa de alguém que sabe que o verdadeiro
aprendizado não vem dos punhos cerrados gritando slogans vazios para uma
plateia de zumbis. O verdadeiro aprendizado, e a beleza da vida, está
em invadir um desfile para agradecer aos alemães por toda a alegria, mas
também por toda a dor (all the joy and pain) – duas coisas sem as quais
é difícil encontrar motivo para viver. E depois pôr a cidade inteira
para dançar aos som dos Beatles. Sem que haja por trás disso qualquer
pauta política.
Para
usar o mote falso que confere um quê de humor negro ao filme: Salvem
Ferris! Salvem sua irresponsabilidade ousada, inteligente, engraçada,
inconsequente. Salvem sua capacidade de arriscar, de ganhar num momento
para perder no outro. Salvem seus pecadilhos sem vítimas. Salvem Ferris!
Antes não haja mais nada que valha a pena ser salvo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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