Nem toda mentira é fake news, escreve Bruna Frascolla na Gazeta. De fato, boatos e fofocas são tão velhos quanto a humanidade:
No
começo, até existia um motivo para usar a expressão fake news. Ou
melhor, dois. Um é que a internet trouxe blogues mequetrefes que se
autodenominavam jornais. Então a pessoa de idade mais avançada, que
sempre atrelou confiabilidade às letras de tipografia, ou que não sabe
que é muito fácil fazer um site, vê o blogue e acha que é um jornal
sério.
Um
site obscuro pôs na boca de Deltan Dallagnol a frase “Não temos provas,
mas temos convicção”, um cineasta divulgou nas redes sociais, e a
mentira se espalhou feito brotoeja. Isto é uma novidade da internet: a
facilidade de se fazer um jornal falso para espalhar mentiras.
O
outro motivo é que, com a internet, acontece muito de as pessoas verem
manchetes sem lerem as matérias. Com o jornal impresso, quem lia apenas a
manchete não recortava o pedacinho de papel onde estava apenas a
manchete e saía mostrando pros outros.
Ou
olhávamos para a manchete, e não repassávamos, ou comprávamos o jornal e
líamos com vagar, para depois conversar na pracinha, no carteado, no
bar. Hoje, é possível fazer uma manchete sensacionalista, as pessoas
compartilharem nas redes sociais, e ninguém ler o corpo da matéria.
Manchetes são feitas para fisgar, e umas são apelativas demais.
Uma
capa famosa do jornal humorístico O Pasquim trazia em letras garrafais:
TODO PAULISTA É BICHA. Uma vez fisgado, o leitor atraído veria as
letrinhas miúdas entre as garrafais: “Todo paulista que não gosta de
mulher é bicha.” É como se hoje, diante dessa capa, ninguém chegasse a
ler as letrinhas, e ficasse compartilhando nas redes que todo paulista é
bicha.
Então
estes dois fenômenos são novos e talvez merecessem um nome novo para
designá-los: o jornal falso que engana as pessoas, e a meia-verdade na
manchete de uma matéria que nunca será lida.
O e-mail era o zap-zap
Mas
as autoridades deram pra chamar boato de zap-zap de fake news. O
exemplo paradigmático costuma ser uma mamadeira de sex-shop que seria
entregue às crianças pelos ideólogos de gênero do PT. Não há nada de
atípico nisso que justifique o novo nome – nem mesmo o fato de se dar
através da internet.
Pelo
e-mail da internet discada, e do começo da banda larga, chegava uma
profusão de bobagens que recebemos hoje pelo WhatsApp. Os famigerados
arquivos .pps traziam mensagens motivacionais de coraçãozinho, ou piadas
bestas.
O
tio antipetista obsessivo mandava slides que provavam a inépcia de Lula
quando era moda comentar cada declaraçãozinha dele, com preferência
pelas estabanadas.
Em
texto, às vezes com figurinhas ou letras piscando, chegavam lendas
urbanas, testemunhos de chupa-cabra, obscuros pedidos de depósito
bancário, correntes que previam as maiores maldições aos que não a
encaminhassem para n pessoas.
E
ainda tinha as caras de meninos perebentos, que deveriam ser repassadas
para que, misteriosamente, fundos fossem arrecadados a cada e-mail
reenviado.
Desse
rol, acho que só as correntes de maldição saíram de moda. O chupa-cabra
e demais criaturas estranhas migraram da roça sem eletricidade para o
smartphone sem dificuldade.
Novidade,
mesmo, são as filmagens e fotos de execução, que os donos das favelas
mandam para seus moradores, ou antes súditos. Mas, como se sabe, as
nossas autoridades entendem que pode matar, pode ocultar cadáver, pode
coagir moradores, pode acabar com o direito de ir e vir. O que não pode é
ser politicamente incorreto, porque aí sim se ferem os direitos
humanos.
Nossa Senhora da Ciência cura fake news
A
essa altura do campeonato, o brasileiro terá aprendido que a Ciência é
uma senhora que tem muitas opiniões fortes e contundentes, mas que nunca
dá as caras. Em vez disso, tem uma porção de porta-vozes por aí. Ao que
parece, ela fala muito, mas não diz qual deles é o seu verdadeiro
representante.
Neste
país, Átila Iamarino ganhou notoriedade prometendo milhões de mortos em
prazo recorde, e se tornou porta-voz oficial da Senhora Ciência no
Brasil. Pouco importa que ele tenha errado feio: valem os ares de
sacerdote anunciando o apocalipse e pregando sacrifícios, tudo para
vencer o Capiroto laico dos ateus progressistas, isto é, Bolsonaro. No
lugar dos pagadores de promessa tradicionais, temos os fiéis ateus de
Nossa Senhora da Ciência, que fazem castos votos de clausura até sabe
Deus quando.
Agora,
a face redonda de Átila Iamarino aparece nas TVs para nos iluminar mais
uma vez. O Tribunal Superior Eleitoral também tomou esse sacerdote como
porta-voz. Didático, compara as fake news a um vírus: têm agentes
transmissores; as pessoas saem passando para os parentes (ou “grupo
familiar”, como ele diz), e no fim temos um “grande número de pessoas
contaminadas”. E no fim, quem morre?
Ela
mesmo, a democracia: “Essa divulgação de boatos e notícias falsas é
letal para a democracia”. O homem dá três nomes para uma só coisa (fake
news, boatos e notícias falsas), em seguida usa uma expressão cujo
significado muito peão não conhece (“é letal para”). Não seria mais
simples dizer, desde o começo, que a boataria mata a democracia? Seria.
Pra
que serve, afinal, essa propaganda? Se fosse para atingir o maior
número de pessoas, haveria algum esforço para falar numa linguagem que
peão e doutor entendem.
Polzonoff
acha que esse povo todo que fala para a bolha quer só aplausos. Eu
tenho minhas dúvidas. Em todo esquema tem safado e trouxa. O difícil é
determinar os limites entre safadeza e abestalhamento, ou até que ponto o
safado não é capaz de se autoiludir, e até que ponto o trouxa não tem
uma leve desconfiança – rapidamente abafada – de levar vantagem com as
coisas que diz.
Tenho
certeza de que a propaganda do TSE foi feita para soar bonito. Soando
bonito se convence todo o mundo? Depende do que se entende por “todo o
mundo”. Falando bonito, convence-se toda a bolha dos bem-pensantes já
convertidos.
E
os não-convertidos? Há os “bolsonaristas”. Mas eles não têm salvação
por via racional, porque são obscurantistas possuídos por algum Belzebu.
Quem sabe olhando pra cara de Átila não têm uma experiência mística e
se convertem?
O
que me espanta nisso tudo é a ausência do peão. O Brasil não se divide
entre os devotos de Nossa Senhora da Ciência e os obscurantistas
adoradores do Coiso. A maioria não está nem aí pra isso.
É fêi que dói
No
longínquo começo do ano, lá antes da covid, um bebê brincava com o
controle remoto quando parou na imagem de um pastor neopentecostal
pulando ao som da sanfona, cantando que “fake news é fêi que dói/ O
inimigo é mentiroso/ Jesus Cristo é meu herói/ Ele está na rede ele é um
vírus e quer navegar/ Está sempre online atrás do seu wi-fi pra o
detonar/ E o WhatsApp veio pra roubar sua atenção”
Pois
é. Do outro lado da guerra de anjos e demônios, um neopentecostal
absorveu o linguajar cientificista dos bem-pensantes e traduziu no
popular as mesmas ideias, antes mesmo da pandemia.
Tal
como para o bem-pensante, fake news é uma coisa que dá no celular e
parece um vírus, mas é coisa do demo. Então só Jesus na causa. E só aí
repousa a discordância; afinal, os bem-pensantes sabem que Jesus é coisa
de obscurantista, de quem não tem Ciência no coração. De quem vai pra
rua sem máscara, e comete genocídio.
Ateus que não sabem ser laicos
Da
minha condição de ateia não-militante, digo que prefiro religioso
assumido a esse povo que enruste a religiosidade e faz essas gambiarras
pra ter fé. Imerso em milênios de pensamento, o religioso aprendeu a
separar fé de razão e ciência.
Isso
está na própria noção de laicismo: as coisas da fé são de natureza
privada, e as da razão estão sujeitas ao escrutínio público. A razão une
os homens de todo credo; a ciência não admite autoridade que não a da
razão e da experiência. Mas quando esses ateus confusos entram em cena
se arrogando a posse da ciência, a discussão fica impraticável.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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