Nicho é terra de ninguém em que está tudo valendo: um pouco de Buda, um pouco de energia, um pouco de ioga. Coluna de Luiz Fernando Pondé, via FSP:
Um
dos mercados mais intensos em termos de lifestyle é o de
espiritualidade. E um dos mais picaretas. Terra de ninguém em que está
tudo valendo: um pouco de Buda, um pouco de energia, um pouco de ioga,
um pouco de terapias alternativas e um pouco de comida orgânica cara.
Com as redes sociais, a inconsistência das propostas espirituais piorou
ainda mais.
A
palavra espiritualidade ganhou espaço na literatura teológica na
França, no século 17, e sempre era associada à expressão "ciência dos
santos", que significava, basicamente, a vida prática de quem tem
intimidade com Deus. Nasceu no universo mais restrito da Igreja
Católica.
A
ideia estava associada às transformações que uma pessoa passa ao longo
dos anos, tomados por comportamentos, regras e ambientes contidos dentro
das práticas cotidianas de cunho religioso institucional, saturado de
rituais litúrgicos.
Com
os anos, o componente institucional perdeu força, levando a palavra
espiritualidade a quase representar uma vida sem associação com cânones
teológicos tradicionais. Dito de forma simples: posso ter uma vida
espiritual sem nenhuma prática religiosa institucional, "curtindo cursos
sobre espiritualidade".
Ela
passou a ser uma versão light da vida religiosa. Mais ágil, leve, e sem
cobranças. A espiritualidade de marca contemporânea é mera moda de
ocasião.
Com
o crescimento do mercado religioso e a segmentação dos produtos
religiosos, principalmente para egressos de religiões tradicionais com
alto poder aquisitivo, espiritualidade quase se transformou num
lifestyle. Locais tradicionalmente ligados a tradições religiosas
passaram a oferecer spas espirituais, onde os consumidores brincam de
vida espiritual em momentos sabáticos. Regados a vinhos ou a alimentação
vegana de última geração.
Evolução
espiritual seria a transformação pela qual a vida interior e exterior
de uma pessoa passa, ao longo de muitos anos de exposição às demandas
prescritas pelo cânone específico de uma religião.
Essa
transformação a deixaria, supostamente, mais desapegada, mais sábia,
menos raivosa, devido ao aprofundamento deste mesmo cânone religioso que
prega tal transformação e ao enfrentamento dos nossos demônios.
A
chamada "noite escura da alma", narrada pelo místico espanhol João da
Cruz no século 16, é um exemplo clássico do enfrentamento desses
demônios, assim como da solidão do deserto, do medo do abandono e da
tristeza.
A
espiritualidade contemporânea é um produto de mercado para consumidores
entediados. Durante a pandemia, desesperados e solitários buscam
qualquer forma de espiritualidade que caiba no Zoom.
Religiões
como budismo e hinduísmo, originárias de destinos turísticos distantes e
caros, com aquela cara de exotismo que os europeus entediados já
buscavam no século 19, são as principais candidatas a alimentar essa
forma de espiritualidade de consumo.
Justamente
por sermos ignorantes de suas idiossincrasias e de suas misérias
sociais, essas formas de religiões são facilmente adaptadas aos bairros
da elite paulistana. E combinam com gurus bem-falantes.
Sempre
me pergunto como alguém pode assumir que, por exemplo, a Índia pode ser
um país espiritualizado quando as condições objetivas de vida por lá
são tão difíceis. Com isso não quero dizer que o país em si seja pior do
que outros centros de difusão de espiritualidades, mas sim pôr em
cheque aqueles que assumem que haja algo de evoluído na espiritualidade
do caminho do Dharma (vulgarmente conhecido como hinduísmo).
Não
existe mais evolução espiritual. Pelo menos não aquela associada às
modas de consumo. Evolução espiritual, historicamente, implica muito
sofrimento (a tal noite escura da alma), muita dor e muito
atravessamento do que justamente não queremos ver. Sem nenhuma promessa
de prosperidade.
O
filósofo Soren Kierkegaard dizia, no século 19, que toda forma
verdadeira de conhecimento começa com um entristecimento consigo mesmo.
Nada a ver com lifestyle. A espiritualidade passa por um doloroso
autoconhecimento e não por um workshop de fim de semana.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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