domingo, 27 de setembro de 2020

E chegamos à era dos ciborgues

 



O século 20 foi o século da física. Agora estamos no século do cérebro. Artigo de Dagomir Marquezi para a Oeste:


Escrevo estas linhas sem usar as mãos. Estou ditando o que meu pensamento cria para um microfone. O que eu digo sai digitado direto na página em branco.

Há 5 mil anos os homens dependem das mãos para escrever — no barro, na pedra, no papiro, no papel, no computador. Cinco milênios depois, basta você ter um programa gratuito como o Google Docs e as mãos no teclado não são mais necessárias. Diga o que quer escrever. As palavras surgirão na tela, como se digitadas por um fantasma.

Imagine um escritor cheio de ideias com um problema neurológico que o impeça de usar as mãos. Agora ele está livre para criar sua obra, com a ajuda de um simples microfone. É um feito notável. Mas o mais impressionante está por acontecer. Você aceitaria implantar um conector em seu cérebro?

A resposta imediata a uma pergunta dessas costuma ser: “Nunca!”. Mas eletrodos já estão sendo implantados no interior de crânios humanos desde 1997. É um procedimento conhecido como DBS (deep brain stimulation, ou estímulo cerebral profundo). Esses pequenos aparelhos são instalados no cérebro de pessoas com epilepsia, por exemplo. Quando o ataque epilético está para acontecer, o conector contra-ataca com uma descarga que o anula. O paciente nem fica sabendo. Procedimentos DBS já são usados para suavizar ou anular a doença de Parkinson, transtornos obsessivo-compulsivos (TOC), dores crônicas e depressão profunda.

Três startups americanas estão buscando algo bem mais complexo: a conexão completa entre humanos e suas máquinas por meio de uma BCI (ou interface cérebro-computador). Com uma conexão dessas, eu não precisaria nem ditar este texto para um microfone. Eu o escreveria só com meu pensamento.

Uma das empresas que seguem essa trilha é a Neuralink, parte do complexo de empresas de alta tecnologia do superempresário Elon Musk. A Neuralink desenvolveu o “Link”, um eletrodo do tamanho de uma moeda com 2 centímetros de diâmetro. Ele é implantado em contato direto com o cérebro.

Abrir um buraco na cabeça pode parecer assustador, mas o procedimento teoricamente não precisa nem de anestesia geral. Deverá ser realizado por cirurgiões-robôs desenhados especialmente para essa tarefa. Instalado o Link, minúsculos fios no aparelho entrarão em contato com o cérebro e captarão seus impulsos nervosos. Imediatamente o implante os transformará em sinais digitais e os transmitirá (via Bluetooth) para um computador, tablet ou celular. E os limites entre um cérebro e um computador deixarão de existir. Seremos oficialmente ciborgues.

O Neuralink usa um princípio neurológico chamado “ação potencial”. Digamos que você está com sede. Seu cérebro processa sua necessidade e envia impulsos para uma série de músculos e nervos de seus braços e mãos. Com esses impulsos, você segura um copo, enche-o de água e o leva até a boca.

Se você quer andar, outros impulsos fazem com que seus músculos se contraiam e alternem os movimentos das pernas de forma que você se desloque. E se você não tem as pernas? E se elas não conseguem se movimentar? O impulso de seu cérebro continua sendo gerado — ainda que sem resultado prático. Por isso é chamado de “ação potencial”.

Essas ordens transmitidas pelos neurônios e nervos geram um pequeno campo magnético. O papel do Neuralink vai ser captar seu desejo por meio desse campo magnético, transformá-lo em sinais digitais e transmiti-lo (por exemplo) a um aparelho que movimente suas pernas. E os deficientes poderão caminhar só com a força do pensamento, como num milagre bíblico.

Musk deixou claro que a prioridade da Neurolink é atuar na cura de deficiências (visuais, sonoras, táteis e motoras). O que implica, claro, riscos inéditos. Se um cérebro puder ser alimentado com impulsos elétricos digitalizados, então ele também poderá ser hackeado. “Nós entendemos que aparelhos médicos precisam ser seguros”, garante o site da Neuralink. “A segurança será construída em cada camada do produto, usando forte criptografia, engenharia defensiva e extensa auditoria de segurança.”

A Neuralink ainda dá seus primeiros passos como empresa. Oferece empregos em sua sede na Califórnia para gente altamente qualificada nos ramos de engenharia, biologia e robótica. Suas duas concorrentes também estão bem no início de todo o processo, lutando para conseguir investimentos num ramo industrial que ainda está no berço.

Uma dessas concorrentes é a Kernel, criada por Bryan Johnson, ex-missionário e ex-empresário do ramo de finanças. Enquanto a Neuralink está bem focada em aplicações ligadas a medicina e saúde, a Kernel se abre para outras áreas de pesquisa — como bem-estar, aprendizado, atenção, emoção, foco, meditação e desenvolvimento de potencial. “Nosso principal objetivo é acelerar e melhorar o conhecimento sobre o cérebro humano”, já declarou Bryan Johnson. “O século 20 foi o século da física. Dividimos o átomo, fomos até a Lua e examinamos as bordas e origens do universo. O século 21 será o século do cérebro, da mente e da inteligência.”

Ao contrário da Neuralink, os procedimentos da Kernel não são invasivos: capacetes com sensores substituem a implantação do eletrodo por cirurgia. Sem hesitação, Johnson afirma que “estamos para entrar na mais significativa revolução na história da raça humana. Uma revolução numa escala jamais vista está chegando. Vai bater na nossa porta em quinze a vinte anos”.

A terceira empresa é a CTRL-Labs. Mais modesta em seus objetivos, a companhia está desenvolvendo uma pulseira que possibilita controlar aparelhos digitais com a mente. A estratégia é começar com produtos de alto consumo, levantar capital suficiente e só então entrar no mercado de medicina. O primeiro campo de atuação da empresa envolve realidade virtual e games. Há um ano, a CTRL-Labs foi comprada (por uma quantia entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão) pela Facebook. (Facebook com controle da mente? É o combustível perfeito para alimentar futuras teorias da conspiração.)

Thomas Reardon, CEO da CRTL-Labs, aponta para um aspecto fundamental desse novo campo: “O que você pode fazer com seus neurônios não é um problema da ciência, é um problema de sua imaginação”. A frase reúne a grandeza e a miséria dessa nova fase da existência humana. Teremos nosso potencial mental multiplicado e nossas ações serão, literalmente, rápidas como o pensamento. O que faremos com esse novo poder?

Filmes, séries e artigos alarmistas vão inevitavelmente dar um tom negativo a esse avanço. Zumbis com um buraco no crânio estarão a serviço de tecnopsicopatas. Ladrões dominarão a mente de suas vítimas para assaltos a distância. Governos totalitários escravizarão sua população com o uso de implantes cerebrais. “Especialistas” serão procurados para atestar que essa nova tecnologia será mais um perigo terrível para nossos filhos.

Grandes avanços científicos são sempre acompanhados de grandes temores. Alguns são justificáveis. Outros, apenas uma reação assustada ao desconhecido. Problemas acontecerão, claro. Mas focar só os problemas é apagar as luzes de uma era de extrema riqueza da civilização humana.

Estamos chegando a um ponto em que libertaremos nossa mente dos limites de nosso corpo. As possibilidades dessa nova era vão dar, sim, muito mais poder a potenciais criminosos e terroristas. Mas também darão mais poder à pessoa que gostaria de se levantar de sua cadeira de rodas. Assim como a quem queira descobrir a cura de doenças graves, salvar espécies em extinção ou combater criminosos e terroristas.

O problema, como sempre, não é a nova tecnologia em si. É o uso que vamos fazer dela. Quanto mais gente vencer o medo inicial e pensar de forma positiva e construtiva, mais chances teremos de usar essa nova conquista para resolver os grandes problemas do mundo e curtir melhor esse futuro que se abre. “A mente é como um paraquedas”, dizia o músico Frank Zappa. “Só funciona quando está aberta.”
 
 
BLOG  ORLANDO TAMBOAI

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