O século 20 foi o século da física. Agora estamos no século do cérebro. Artigo de Dagomir Marquezi para a Oeste:
Escrevo
estas linhas sem usar as mãos. Estou ditando o que meu pensamento cria
para um microfone. O que eu digo sai digitado direto na página em
branco.
Há
5 mil anos os homens dependem das mãos para escrever — no barro, na
pedra, no papiro, no papel, no computador. Cinco milênios depois, basta
você ter um programa gratuito como o Google Docs e as mãos no teclado
não são mais necessárias. Diga o que quer escrever. As palavras surgirão
na tela, como se digitadas por um fantasma.
Imagine
um escritor cheio de ideias com um problema neurológico que o impeça de
usar as mãos. Agora ele está livre para criar sua obra, com a ajuda de
um simples microfone. É um feito notável. Mas o mais impressionante está
por acontecer. Você aceitaria implantar um conector em seu cérebro?
A
resposta imediata a uma pergunta dessas costuma ser: “Nunca!”. Mas
eletrodos já estão sendo implantados no interior de crânios humanos
desde 1997. É um procedimento conhecido como DBS (deep brain
stimulation, ou estímulo cerebral profundo). Esses pequenos aparelhos
são instalados no cérebro de pessoas com epilepsia, por exemplo. Quando o
ataque epilético está para acontecer, o conector contra-ataca com uma
descarga que o anula. O paciente nem fica sabendo. Procedimentos DBS já
são usados para suavizar ou anular a doença de Parkinson, transtornos
obsessivo-compulsivos (TOC), dores crônicas e depressão profunda.
Três
startups americanas estão buscando algo bem mais complexo: a conexão
completa entre humanos e suas máquinas por meio de uma BCI (ou interface
cérebro-computador). Com uma conexão dessas, eu não precisaria nem
ditar este texto para um microfone. Eu o escreveria só com meu
pensamento.
Uma
das empresas que seguem essa trilha é a Neuralink, parte do complexo de
empresas de alta tecnologia do superempresário Elon Musk. A Neuralink
desenvolveu o “Link”, um eletrodo do tamanho de uma moeda com 2
centímetros de diâmetro. Ele é implantado em contato direto com o
cérebro.
Abrir
um buraco na cabeça pode parecer assustador, mas o procedimento
teoricamente não precisa nem de anestesia geral. Deverá ser realizado
por cirurgiões-robôs desenhados especialmente para essa tarefa.
Instalado o Link, minúsculos fios no aparelho entrarão em contato com o
cérebro e captarão seus impulsos nervosos. Imediatamente o implante os
transformará em sinais digitais e os transmitirá (via Bluetooth) para um
computador, tablet ou celular. E os limites entre um cérebro e um
computador deixarão de existir. Seremos oficialmente ciborgues.
O
Neuralink usa um princípio neurológico chamado “ação potencial”.
Digamos que você está com sede. Seu cérebro processa sua necessidade e
envia impulsos para uma série de músculos e nervos de seus braços e
mãos. Com esses impulsos, você segura um copo, enche-o de água e o leva
até a boca.
Se
você quer andar, outros impulsos fazem com que seus músculos se
contraiam e alternem os movimentos das pernas de forma que você se
desloque. E se você não tem as pernas? E se elas não conseguem se
movimentar? O impulso de seu cérebro continua sendo gerado — ainda que
sem resultado prático. Por isso é chamado de “ação potencial”.
Essas
ordens transmitidas pelos neurônios e nervos geram um pequeno campo
magnético. O papel do Neuralink vai ser captar seu desejo por meio desse
campo magnético, transformá-lo em sinais digitais e transmiti-lo (por
exemplo) a um aparelho que movimente suas pernas. E os deficientes
poderão caminhar só com a força do pensamento, como num milagre bíblico.
Musk
deixou claro que a prioridade da Neurolink é atuar na cura de
deficiências (visuais, sonoras, táteis e motoras). O que implica, claro,
riscos inéditos. Se um cérebro puder ser alimentado com impulsos
elétricos digitalizados, então ele também poderá ser hackeado. “Nós
entendemos que aparelhos médicos precisam ser seguros”, garante o site
da Neuralink. “A segurança será construída em cada camada do produto,
usando forte criptografia, engenharia defensiva e extensa auditoria de
segurança.”
A
Neuralink ainda dá seus primeiros passos como empresa. Oferece empregos
em sua sede na Califórnia para gente altamente qualificada nos ramos de
engenharia, biologia e robótica. Suas duas concorrentes também estão
bem no início de todo o processo, lutando para conseguir investimentos
num ramo industrial que ainda está no berço.
Uma
dessas concorrentes é a Kernel, criada por Bryan Johnson,
ex-missionário e ex-empresário do ramo de finanças. Enquanto a Neuralink
está bem focada em aplicações ligadas a medicina e saúde, a Kernel se
abre para outras áreas de pesquisa — como bem-estar, aprendizado,
atenção, emoção, foco, meditação e desenvolvimento de potencial. “Nosso
principal objetivo é acelerar e melhorar o conhecimento sobre o cérebro
humano”, já declarou Bryan Johnson. “O século 20 foi o século da física.
Dividimos o átomo, fomos até a Lua e examinamos as bordas e origens do
universo. O século 21 será o século do cérebro, da mente e da
inteligência.”
Ao
contrário da Neuralink, os procedimentos da Kernel não são invasivos:
capacetes com sensores substituem a implantação do eletrodo por
cirurgia. Sem hesitação, Johnson afirma que “estamos para entrar na mais
significativa revolução na história da raça humana. Uma revolução numa
escala jamais vista está chegando. Vai bater na nossa porta em quinze a
vinte anos”.
A
terceira empresa é a CTRL-Labs. Mais modesta em seus objetivos, a
companhia está desenvolvendo uma pulseira que possibilita controlar
aparelhos digitais com a mente. A estratégia é começar com produtos de
alto consumo, levantar capital suficiente e só então entrar no mercado
de medicina. O primeiro campo de atuação da empresa envolve realidade
virtual e games. Há um ano, a CTRL-Labs foi comprada (por uma quantia
entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão) pela Facebook. (Facebook com
controle da mente? É o combustível perfeito para alimentar futuras
teorias da conspiração.)
Thomas
Reardon, CEO da CRTL-Labs, aponta para um aspecto fundamental desse
novo campo: “O que você pode fazer com seus neurônios não é um problema
da ciência, é um problema de sua imaginação”. A frase reúne a grandeza e
a miséria dessa nova fase da existência humana. Teremos nosso potencial
mental multiplicado e nossas ações serão, literalmente, rápidas como o
pensamento. O que faremos com esse novo poder?
Filmes,
séries e artigos alarmistas vão inevitavelmente dar um tom negativo a
esse avanço. Zumbis com um buraco no crânio estarão a serviço de
tecnopsicopatas. Ladrões dominarão a mente de suas vítimas para assaltos
a distância. Governos totalitários escravizarão sua população com o uso
de implantes cerebrais. “Especialistas” serão procurados para atestar
que essa nova tecnologia será mais um perigo terrível para nossos
filhos.
Grandes
avanços científicos são sempre acompanhados de grandes temores. Alguns
são justificáveis. Outros, apenas uma reação assustada ao desconhecido.
Problemas acontecerão, claro. Mas focar só os problemas é apagar as
luzes de uma era de extrema riqueza da civilização humana.
Estamos
chegando a um ponto em que libertaremos nossa mente dos limites de
nosso corpo. As possibilidades dessa nova era vão dar, sim, muito mais
poder a potenciais criminosos e terroristas. Mas também darão mais poder
à pessoa que gostaria de se levantar de sua cadeira de rodas. Assim
como a quem queira descobrir a cura de doenças graves, salvar espécies
em extinção ou combater criminosos e terroristas.
O
problema, como sempre, não é a nova tecnologia em si. É o uso que vamos
fazer dela. Quanto mais gente vencer o medo inicial e pensar de forma
positiva e construtiva, mais chances teremos de usar essa nova conquista
para resolver os grandes problemas do mundo e curtir melhor esse futuro
que se abre. “A mente é como um paraquedas”, dizia o músico Frank
Zappa. “Só funciona quando está aberta.”
BLOG ORLANDO TAMBOAI
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