Jason Brennan afirma que a maioria dos eleitores contemporaneamente é ignorante em matéria de política, além de irracional, e que esta ignorância seria a causa de decisões incompetentes e, assim, se deveria restringir o direito ao voto destes cidadãos politicamente ignorantes e implementar um tipo de epistocracia. Ensaio de Denis Coitinho, publicado pelo Estado da Arte:
Em
11 de novembro de 1947, Churchill disse na Câmara dos Comuns do Reino
Unido que “A democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as
outras já experimentadas ao longo da história”. Naquele contexto de pós
Segunda Guerra Mundial, fazia sentido afirmar o valor da democracia
frente aos governos autoritários do nazismo e stalinismo que, entre
outras coisas, realizaram práticas eugenistas que exterminaram de
milhões de pessoas e que instituíram a censura e a perseguição política.
Mas, contemporaneamente, penso, temos muitas razões para colocar em
dúvida a legitimidade do regime democrático. Após o Brexit, a eleição de
Jair Bolsonaro e com a proximidade de mais uma eleição municipal no
Brasil, em que prefeitos e vereadores serão escolhidos sob uma certa
desconfiança de que o exercício de seus mandatos traga realmente maior
bem-estar para todos, bem como com a proximidade da eleição
norte-americana que pode dar um segundo mandato a Donald Trump, e isso
sem falar em certas manifestações populares no Brasil que pedem o
retorno da “intervenção militar” e o fechamento do Congresso e do
Supremo Tribunal Federal, é imperativo pensar sobre os limites do regime
democrático. Seria ele um regime que produz decisões incompetentes que
acabam produzido injustiças, o que traz por consequência o
questionamento sobre a sua legitimidade? Não seria mais atraente poder
contar com um regime político alternativo que garantisse melhores
resultados no campo econômico, da segurança pública, da saúde e educação
e da distribuição de renda, por exemplo?
Nesse
contexto, penso ser interessante fazer referência a crítica de Brennan à
democracia e a sua proposta epistocrática. Jason Brennan, em Against
Democracy (Princeton University Press, 2016), afirma que a maioria dos
eleitores contemporaneamente é ignorante em matéria de política, além de
irracional, e que esta ignorância seria a causa de decisões
incompetentes e, assim, se deveria restringir o direito ao voto destes
cidadãos politicamente ignorantes e implementar um tipo de epistocracia,
dado que, em um sistema democrático, a escolha dos governantes é uma
decisão política expressa por sufrágio universal (2016, p. 3-15). Ele
toma como ponto de partida a constatação de que a maior parte dos
cidadãos são ignorantes, apáticos e irracionais ou, em seus termos, são
hobbits ou hooligans, decidindo tribalisticamente, o que coloca em
dúvida a efetividade do próprio regime democrático. Ele defende uma tese
condicional, dizendo que se a epistocracia for melhor que a democracia,
então, devemos implementá-la, sendo um sistema político epistocrático o
que distribui o poder na proporção do conhecimento ou competência,
podendo assumir a forma de sufrágio restrito — isto é, restringindo o
voto dos ignorantes, votos adicionais para os mais competentes, sorteio e
processo de formação destes eleitores, veto epistocrático, de forma que
os mais competentes poderiam vetar certas leis, ou mesmo votos com
pesos diferentes entre os que sabem e os que ignoram os temas políticos
(2016, p. 15). E importante ressaltar que este tipo de epistocracia é
formulada a partir de um princípio antiautoritário, que diz que: “Quando
alguns cidadãos são moralmente irrazoáveis, ignorantes ou incompetentes
sobre política, isto justifica não permitir a eles o exercício da
autoridade política sobre os outros” (2016, p. 17).
(1)
Que a maior parte dos cidadãos que votam em democracias são ignorantes,
irracionais e desinformados sobre política. Eles são hobbits (apáticos e
ignorantes) ou hooligans (irracionais e tribalistas) e, infelizmente,
poucos são vulcanos (racionais).
(2)
Que a participação política tende a corromper, em vez de melhorar o
caráter intelectual e moral dos cidadãos e isso em razão dos viéses
cognitivos de tribalismo (preconceito intergrupal) e confirmação
(aceitação apenas das evidências que apoiam nossa perspectiva).
(3)
Que a política não dá poder aos indivíduos, mas ao eleitorado de forma
geral, isto é, aos grupos, influenciando pouco a atividade dos
políticos.
(4)
Que as liberdades políticas (direito de votar e concorrer a eleições)
não são fundamentais para o respeito próprio do indivíduo e são
distintas das liberdades civis de expressão, religiosa e de associação.
(5)
Que a legitimidade das decisões políticas deve estar subordinada à
competência e que a democracia tem pior desempenho que a epistocracia.
Seu
argumento parece partir da constatação de que a maior parte dos
cidadãos em uma democracia é ignorante em matéria de política, quando
não absolutamente irracional, o que criaria inimigos cívicos e que esta
ignorância originaria decisões políticas incompetentes, injustas e
ilegítimas, uma vez que em uma democracia a escolha dos governantes é
uma decisão expressa por sufrágio universal (um cidadão, um voto). Com
isso, dever-se-ia reconhecer que, como a democracia é incompetente para
resolver os problemas de paz, segurança e justiça, por exemplo, a
alternativa seria retirar o poder de voto dos cidadãos politicamente
ignorantes e implementar a epistocracia (2016, p. 1-22).
Por
mais que eu concorde com o objetivo geral de investigar os limites das
democracias contemporâneas, inclusive não tomando o sufrágio universal
como um axioma inquestionável e inegociável, penso que a proposta de
Brennan tem muitos equívocos. No que segue, gostaria de refletir
brevemente sobre a relação entre a restrição do voto e o autorrespeito, o
perigo da plutocracia, a conexão indevida entre competência e boa-fé ou
razoabilidade moral e a epistocracia idealizada. Vejamos.
O
primeiro problema que quero chamar atenção na proposta de Brennan é que
a restrição ao direito de votar e ser eleito para um cargo público pode
comprometer a autoestima dos cidadãos. Importante mencionar que Brennan
defende uma visão instrumentalista, em que o regime político que deve
ser preferido é o que oportuniza os melhores resultados, trazendo mais
justiça, eliminando tanto a pobreza como as guerras, por exemplo. Para
ele, a política não é um poema, valendo pelo que simboliza, mas é como
um martelo, importando por realizar bem a sua função. Também, é
importante destacar que seu objetivo não é o de excluir pessoas ou
limitar o seu poder como forma de expressar desrespeito aos indivíduos,
grupos ou mesmo raças. Ao contrário, ele pretende que esta restrição
produza resultados políticos melhores, ou seja, mais justos, podendo
melhor realizar o compromisso com a igualdade dos cidadãos, tomando os
interesses de todos com igual valor. O exemplo dado é que os votantes
nos EUA tendem a ser ignorantes quanto aos efeitos da guerra às drogas
para as minorias, de forma que ser duro com o crime tende a causar mais
prejuízo para as minorias, como pobres, negros e latinos. O ponto
defendido por ele é que um votante epistocrático poderia saber que a
política dos EUA relativa ao crime e as drogas é contraproducente e,
assim, a restrição do voto dos ignorantes acabaria trazendo os melhores
resultados para as próprias minorias (2016, p. 117).
Mesmo
com essa consideração em mente, é importante refletir se a democracia
teria também algum valor simbólico, além de instrumental. O direito de
votar não é tomado por nossas sociedades contemporâneas com um símbolo
da igualdade de todos, representando a própria dignidade humana igual?
Considerando o histórico de grupos que foram de fato excluídos do
processo eleitoral ao longo do tempo, tais como pobres, negros e
mulheres, para exemplificar, faz sentido ponderar se essa restrição à
participação política não implicaria em uma imagem de desigualdade. Não é
por acaso que um autor como John Rawls diz em A Theory of Justice
(Revised Edition, Harvard University Press, 1999) que a democracia é
essencial para expressar a igualdade pública dos cidadãos, e isto
significando distribuir igualmente os direitos fundamentais e liberdades
— entre eles, o direito de votar e ser eleito, possibilitando as bases
sociais do autorrespeito, que, inclusive, para ele, é o principal bem
primário e oportunizando o mesmo status aos cidadãos, o que será
fundamental para garantir a estabilidade social (1999, p. 477). Dessa
forma, é plausível pensar que essa restrição poderia gerar uma
assimetria entre os cidadãos com direito ao voto e ser eleito e os
cidadãos que não teriam estes direitos, o que possivelmente favoreceria a
inimizade cívica que é indesejada por todos. Poderia comprometer a sua
autoestima e, ainda mais, gerar um profundo ressentimento nesse grupo
excluído, uma vez que eles teriam as liberdades civis de expressão e de
associação asseguradas, mas não poderiam participar das eleições, o que
parece, inclusive, um contrassenso.
Um
segundo obstáculo que menciono é o perigo da plutocracia. A proposta
geral de Brennan é medir o conhecimento político e econômico dos
eleitores através de certos testes para identificar os que ignoram os
principais temas nesse domínio e ou excluí-los do processo eleitoral ou
reduzir o seu poder comparativo em relação aos mais competentes. Sem
entrar no mérito se testes padrões que apenas medem se o cidadão sabe
coisas do tipo “que partido controla o governo”, “o que foi a Guerra
Fria”, “quanto se gasta em ajuda internacional”, “que o livre mercado é
mais eficiente que o protecionismo” etc. significaria de fato ter
conhecimento político, a principal complicação que vejo é que são as
minorias, isto é, os pobres, negros, latinos e mulheres que apresentam
pior desempenho nestes tipos de testes, enquanto os homens, brancos,
ricos e escolarizados demonstram ter maior competência neste campo
(2016, p. 32-33). Isso já parece mostrar que para além do problema
demográfico, que constata que é provável que pessoas que pertençam a
grupos favorecidos adquiram mais poder político que as pessoas de grupos
desfavorecidos (2016, p. 315), ainda corremos o risco de ter um regime
plutocrata, onde aqueles que deterão o poder político necessariamente
serão os cidadãos mais ricos da sociedade. O ponto que quero chamar
atenção é que esta exclusão das minorias do processo eleitoral parece
injusta, uma vez que a sociedade em tela não oferece condições
econômicas equitativas para todos poderem desenvolver suas competências
ligadas a escolarização. Ao invés da exclusão, parece que o mais sensato
seria modificar a estrutura social e econômica de forma que ela
oferecesse condições equitativas em relação ao ambiente cognitivo,
possibilitando, por exemplo, para além do ensino básico para todos, o
ensino superior e acesso aos bens culturais. Parece injusto apenas
responsabilizar o cidadão por sua ignorância, sem considerar a
responsabilidade da própria sociedade pela desigualdade existente.
A
terceira dificuldade desta proposta é com a própria compreensão de
epistocracia. Tradicionalmente, desde Platão, se define a epistocracia
como o regime político exercido pelos sábios (reis filósofos) ou pelos
técnicos, numa versão mais contemporânea. Brennan está tomando, para
além da competência ou conhecimento formal, a boa-fé, ou a razoabilidade
moral ou o bom caráter, como condição presumida do direito de votar e
governar. Veja a definição de epistocracia dada por ele: “[…] um regime
político é epistocrático na medida em que o poder político é formalmente
distribuído de acordo com a competência, a habilidade e a boa-fé para
agir com base nessa habilidade” (2016, p. 14). Acontece que a boa-fé não
parece estar ligada necessariamente às condições cognitivas ou ao
conjunto de informações possuídas e, assim, um agente competente
politicamente poderia manifestar má-fé, desviando dinheiro público ou
mesmo vendendo seu voto no caso de ser um representante eleito. Veja que
os testes padrões que Brennan menciona não conseguem revelar o caráter
moral dos agentes. Eles apenas relevariam o conhecimento formal possuído
pelos cidadãos no campo da história, economia, ciência política ou
mesmo filosofia, entre outros. Aqui, parece que estamos diante de um
argumento falacioso, em que se está estabelecendo uma ligação
sub-reptícia entre competência e bom caráter ou boa-fé, de forma que
quem deveria ter o poder político seriam os cidadãos com mais
conhecimento e se saberia quem são os mais competentes através de certos
testes, mas apenas se está presumindo que quem tem conhecimento também
teria bom caráter. O problema é que está conexão não é necessária, uma
vez que podemos encontrar agentes que demostram possuir grande
conhecimento em temas políticos e econômicos, mas são mau caráter ou
expressam má-fé. Vejam os casos de corrupção. Geralmente o corrupto é
muito competente, mas o seu conhecimento estaria a serviço de um
empreendimento imoral, a saber, roubar o dinheiro público. Para se
pressupor esta conexão se deveria adotar uma concepção platônica de
sabedoria que também inclui o conhecimento do bem, o que não é o caso,
uma vez que Brennan trata do conhecimento político como pura técnica.
Então, se o critério da boa-fé deve ser utilizado como condição
presumida do direito de votar e governar, não consigo ver tão facilmente
as vantagens de um regime epistocrático e isso porque ele apenas
discriminaria os que sabem dos que não sabem, dando mais poder aos
primeiros. Mas, dado que competência e boa-fé podem estar dissociados,
como este regime garantiria maior bem-estar para os cidadãos?
Por
fim, é importante frisar que Brennan está comparando uma versão
realista de democracia, aliás, reduzindo os fatos empíricos da politica
apenas ao cenário norte-americano — o que metodologicamente não é
adequado — com uma versão idealizada da epistocracia. Mas, como saber se
a alternativa, que não é real, mas ideal, será melhor que o regime real
que estaria sendo abandonado? Dado que o próprio autor reconhece que o
melhor lugar para se viver atualmente são as democracias liberais e não
as ditaduras, oligarquias ou monarquias não constitucionais, penso que a
atitude mais prudente seja seguir o princípio conservador de Burke que
diz que se você não sabe o que colocar no lugar do modelo antigo, então,
é melhor conservá-lo, o que não impede, é claro, de realizarmos um
conjunto de reformas urgentes.
Ao
invés de um modelo com premissas tão diferentes, talvez a melhor
alternativa seja aprofundar os próprios valores democráticos e tentar
corrigir suas distorções e reconhecer que, no fim das contas, Churchill
ainda tem razão.
Winston Churchill no Royal Albert Hall, em 1944. |
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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