Bônus natalino de R$ 1 mil e vale-refeição durante as férias estão na
lista de “direitos” dos servidores da estatal ineficiente — uma lista
maior que a da Amazon. Artigo de Dagomir Marquezi para a revista Oeste:
O primeiro sistema postal conhecido transportou mensagens no Egito 2
mil anos antes de Cristo. Os romanos tinham um sistema tão perfeito para
a época (segundo a Enciclopédia Britânica) que uma mensagem
transportada pelos cursus publicus chegava a viajar 270 quilômetros num
único dia por meio de um sistema de carruagens leves puxadas a cavalo.
No século 17, os monarcas ingleses e franceses criaram o monopólio
estatal dos correios. Em 1840, os correios britânicos introduziram o
conceito do selo pré-pago (e barato) colado num envelope. Logo os
serviços postais deram um salto de velocidade e eficiência com a
expansão das ferrovias. Em 1875, a União Postal Universal uniu os
serviços nacionais no primeiro sistema global de comunicação e
transferência de riquezas. No meio do século 19, a invenção do telégrafo
tornou as distâncias quase irrelevantes.
No Brasil, a história começou em 1663, quando foi criado o
Correio-Mor no Rio de Janeiro — já um monopólio estatal. Com o correr
dos séculos, desenvolvemos uma relação sentimental com o serviço postal.
O carteiro se tornou o profissional que conectava pessoas distantes
enfrentando sol, chuva e cães bravios para que a mensagem fosse entregue
ao destinatário. Os Correios eram fundamentais; o carteiro, aguardado
com ansiedade e simpatia.
Getúlio Vargas criou, em 1931, o Departamento de Correios e
Telégrafos, depois transformado pelo regime militar, em 1969, na Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Com algumas modernizações
(como o Sedex), os Correios cresceram para se tornar um gigante de 109
mil empregados (em 2008), presente em todos os municípios do país.
Seria uma bela história de conquista e orgulho nacional. Mas o e-mail
foi inventado em 1971. Com a expansão e a popularização da internet,
cartas e telegramas foram se tornando peças de museu. E isso só se
acelerou com as redes sociais e serviços de comunicação instantânea como
o WattsApp. Empresas começaram a trocar seus extratos e boletos de
papel por versões eletrônicas.
A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos poderia ter enfrentado
essas novidades com adaptações inteligentes aos novos tempos. Poderia
ter compreendido que seu sistema de administração estava parado no tempo
num momento de mudanças radicais. Mas tomou o pior caminho.
A situação dos Correios no século 21 é trágica. Segundo uma
reportagem da revista Época Negócios (2018), a empresa fechou quatro
anos seguidos com prejuízos milionários (entre 2013 e 2016) e perdeu um
volume expressivo de encomendas de 2010 a 2016 por causa de “anos de
má-gestão, corrupção e uso político da companhia”.
O primeiro sinal do escândalo do mensalão aconteceu naquele célebre
vídeo que mostrava um dos diretores dos Correios ligado ao PTB recebendo
propina em maços de notas. Em 2012, reportagem de O Estado de S. Paulo
denunciava: “Uma das fontes do escândalo do mensalão, o aparelhamento
político na estatal Correios continua, sete anos depois. Após passar
pelas mãos do PTB e do PMDB, desalojados do comando em meio a denúncias
de corrupção, a empresa virou feudo do PT, cujos líderes indicaram nomes
para os principais cargos de direção”.
O panorama já seria triste se fosse limitado aos Correios. Mas existe
também o Postalis. O Postalis é o gigantesco fundo de aposentadoria dos
funcionários dos Correios, criado em 1981. Lá, a conta nunca fecha. Em
2015 (segundo a Folha de S.Paulo), a Polícia Federal apurou desvios de
até R$ 180 milhões no Postalis. Em 2017, o Tribunal de Contas da União
identificou operações suspeitas com fundos de investimentos que causaram
R$ 1 bilhão de prejuízo ao fundo.
Trezentas agências dos Correios foram fechadas entre 2017 e 2018. O
prejuízo acumulado entre 2016 e 2017 foi de US$ 4 bilhões. A pergunta
está no ar: por que ainda não se privatizou essa empresa em frangalhos?
Por que esse ralo de recursos continua com o monopólio dos serviços
postais do país?
Martha Seillier, secretária especial do Programa de Parceria de
Investimentos, divulgou na última terça, dia 18, que o governo federal
pretende encaminhar ao Congresso “nas próximas semanas” um projeto de
lei que regulamenta a atuação do setor privado na prestação de serviços
postais. É o primeiro passo para iniciar a batalha contra o monopólio.
O governo Jair Bolsonaro vai até o fim nesse processo? Como reagirá o
Congresso? Vai optar pela eficiência de um serviço vital para a
população? Ou vai preservar negociatas, cargos ocupados por políticos,
incompetência, prejuízos abissais e corrupção sistêmica?
A Federação dos Trabalhadores da Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos (da CUT) fez o que costuma fazer sempre que um monopólio
estatal é ameaçado. Declarou greve geral, mantendo a população
brasileira refém da “categoria” numa época de pandemia e profunda crise
econômica. Os partidos de esquerda — PT, Psol, PCdoB — apoiaram
imediatamente a greve, repetindo os velhos clichês contra a
“privatização de um patrimônio nacional” e na defesa da “conquista de
décadas dos trabalhadores e trabalhadoras dos Correios”.
Os sindicalistas listaram sem o menor pudor os “direitos” ameaçados
que serviram como pretexto para a greve. E ficamos sabendo que os quase
100 mil funcionários dos Correios têm direito a licença-maternidade de
180 dias, adicional noturno, auxílio-creche para dependentes até 7 anos,
subsídio de 70% em planos de saúde, vale-cultura, anuênios, adicionais
em atividades como distribuição de cartas e guichê, pagamento de 100% da
hora extra, pagamento de 70% das férias, garantia de pagamento durante
afastamento pelo INSS, garantias para o empregado estudante, adicional
de 200% para trabalho em dia de repouso, estabilidade de emprego para
delegados sindicais, licença-adoção, jornada de 40 horas, bônus de R$ 1
mil no Natal (o “vale-peru”) e vale-refeição durante as férias.
Essa lista de “direitos” não deve existir nem na Amazon, que vale US$
415 bilhões e só dá lucro. Pois os Correios oferecem o paraíso a seus
funcionários, mesmo emplacando prejuízos abissais, e um serviço tão ruim
que já provocou revoltas abertas da população em cidades do interior de
São Paulo.
Matéria do jornal O Globo mostrou que foi aberto um processo pelo
Procon do Rio de Janeiro diante do “aumento de 374% das reclamações
sobre os serviços da empresa, entre 27 de fevereiro e 4 de agosto deste
ano, frente ao mesmo período de 2019. […] Não entrega de produto,
descumprimento de prazo, falta de um canal para tratamento dessas
reclamações assim como falta de informação do prazo de devolução do
dinheiro no caso de produto extraviado estão entre as principais queixas
feitas ao Procon”. Os Correios estão em segundo lugar na lista das
“piores empresas dos últimos 30 dias” do site Reclame Aqui.
Os direitos oferecidos por uma estatal como a ECT a seus funcionários
são um deboche para trabalhadores informais, que já representam 40% no
mercado e não têm NENHUM direito. Ganham o dinheiro que trocam por
trabalho ou prestação de serviço, dia e noite, sete dias por semana. E
pagam cinco meses por ano de impostos que sustentam empresas como os
Correios.
“Os problemas estruturais [dos Correios] vêm de longe e se agravaram muito na gestão Dilma Rousseff”,
escreveu a consultora Zeina Latif para o jornal O Estado de S. Paulo.
“Má gestão, controle de tarifas e repasses excessivos de dividendos ao Tesouro
comprometeram seu patrimônio e investimentos, além dos prejuízos
obtidos entre 2013 e 2016. A experiência ilustra a vulnerabilidade das
empresas controladas pelo governo.”
Zeina, doutora em Economia pela USP, acha que a privatização pura e
simples pode ser um caminho difícil. E o saneamento financeiro,
limitado. “Vale mencionar que, para o Supremo Tribunal Federal,
as estatais precisam apresentar motivação para demitir, pois os
empregados são concursados.” Ela acha mais viável a quebra do monopólio
no segmento de correspondência e malotes. Dá como exemplo a Correos de
Chile: “A empresa estatal é autônoma, não conta com recursos
governamentais, tem auditoria independente e avaliação de crédito feita
pelas agências de rating. Não há monopólio estatal, mas sim a regulação
do setor”.
Até quando a população será prejudicada por essa greve? Em qual das
próximas semanas a secretária Martha Seillier vai encaminhar o projeto
de lei que regulamenta a atuação do setor privado na prestação de
serviços postais? Como reagirão os senhores congressistas ao projeto? O
Supremo Tribunal Federal vai interferir para proibir qualquer mudança na
atual situação?
O serviço postal brasileiro vai evoluir, se tornar mais eficiente,
mais transparente? Ou continuaremos trabalhando cinco meses por ano para
pagar os impostos que sustentam o vale-peru e serviços inferiores aos
dos cursus publicus do Império Romano?
Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e
jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50
Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from
U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo.
Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direitos dos
animais e tecnologia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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