sexta-feira, 31 de julho de 2020

Applebaum mostra como a nova direita precisa de intelectuais públicos


Anne Applebaum autografa a mudança tectônica na linguagem ideológica do século XXI. João Pereira Coutinho, via FSP:


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Ainda me lembro quando Anne Applebaum era uma respeitada intelectual conservadora. De inclinação liberal, sem dúvida, mas conservadora. Foi assim que a conheci, uns 15 anos atrás, quando esteve em Lisboa para o lançamento de "Gulag", o notável estudo sobre o sistema prisional soviético que valeu um Pulitzer.

Mas o mundo mudou e Applebaum é hoje "persona non grata" para a direita conservadora de 2020. O que aconteceu?

Com Applebaum, talvez nada. Mas, como a própria afirma no seu "Twilight of Democracy: The Failure of Politics and the Parting of Friends" (crepúsculo da democracia: o fracasso da política e a separação dos amigos), o significado da palavra "direita" mudou bastante nos últimos 20 anos.

Na virada do milênio, ser de direita significava acreditar na democracia liberal, no mercado livre, no sistema de freios e contrapesos, no Estado de direito, na Otan, na União Europeia. Significava festejar o "fim da história", talvez com uma ingenuidade excessiva.

Hoje, olhando para as direitas que tomaram conta do pedaço, significa o contrário de tudo aquilo. Ser de direita é defender a democracia iliberal, o nacionalismo econômico, o controle do Judiciário, o isolacionismo internacional e o fim da União Europeia. Se essa é a direita de 2020, Applebaum não faz mais parte dela.

Eis o primeiro mérito do livro: cartografar essa mudança tectônica na linguagem ideológica do século 21. O fato de Applebaum viver na Polônia, onde o partido Lei e Justiça simboliza muitos dos vícios da nova direita, ajudou no diagnóstico.

Mas Applebaum não se limita à Polônia. Ela viaja pela Hungria, pelo Reino Unido, pelos Estados Unidos, pela Espanha, pela Itália e identifica essa mudança radical: o naufrágio da direita liberal e a emergência da direita autoritária.

Mas existe um segundo mérito no livro de Applebaum: ela procura mostrar como a nova direita precisa de intelectuais públicos para prosperar. Alguns desses intelectuais eram seus amigos, visitas lá de casa. Hoje, são "cheerleaders" de Viktor Orbán ou de Donald Trump. Que se passou?

Sim, era possível detectar em muitos deles uma "predisposição autoritária", um gosto pela homogeneidade e pela ordem, uma inclinação por narrativas simples e simplórias.

Mas o poder, esse velho afrodisíaco, falou mais alto: de que vale ter princípios quando esses princípios nos condenam à solidão e ao empobrecimento?

Melhor participar no "espírito do tempo" e ter um lugar na mesa de quem manda.

O que se passou com os amigos de Applebaum foi descrito por Julien Benda no seu "Les Trahison des Clercs", de 1927, que Applebaum cita em abundância: se a função do intelectual é manter a razão e defender a decência contra os poderes instalados, os intelectuais de Benda (e de Applebaum) atraiçoaram o seu papel e emprestaram o seu talento e o seu prestígio ao autoritarismo mais boçal.

Uma das melhores passagens do livro descreve uma visita que a autora fez a uma velha amiga húngara que abandonou o liberalismo da década de 1990 para marchar com o partido Fidesz de Viktor Orbán.

Nas palavras da mulher, era necessário romper com a imitação vulgar da democracia liberal e optar por uma forma mais autêntica de política nacional.

Que essa forma autêntica seja também uma imitação vulgar do nacionalismo que é possível ver nos quatro cantos do mundo, Brasil incluso, eis uma ironia que escapou a essa mente vanguardista.

Críticas ao livro?

Tenho algumas. Para começar, não aceito que Applebaum junte na mesma sacola o fenômeno Orbán com o brexit de Boris Johnson. Como escrevi repetidas vezes, os argumentos sérios a favor do brexit –a defesa do Parlamento inglês como instrumento central da vida política do país, por exemplo– estão mais próximos da democracia liberal do que Applebaum imagina.

Por outro lado, concordo com todos aqueles que acusam Applebaum de não ter feito um maior esforço para compreender as razões profundas da opção populista. Se a autora pensa que o povo elegeu líderes populistas simplesmente por influência dos intelectuais, ela está dramaticamente enganada.

Mas não está enganada no essencial: a primeira tarefa de um conservador é recusar os apelos da política radical. Não interessa se os apelos são revolucionários ou reacionários. São apelos utópicos em qualquer dos casos, ou seja, inimigos do presente.

Como lembrava David Frum, um dos poucos amigos da autora que não desertou, o conservadorismo do século 21 deve conservar a herança liberal que triunfou no século 20 sobre todas as alternativas totalitárias.

Se o livro sombrio de Anne Applebaum ajudar nessa causa, nem tudo estará perdido.

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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