segunda-feira, 29 de junho de 2020

STF versus liberdade de expressão


Ministros devem ser guardiões das normas constitucionais, e não ativistas judiciais, alerta o professor Carlos Alberto Di Franco em artigo publicado pelo Estadão:

Por 10 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no passado dia 18 pela legalidade do inquérito das fake news, que apura suposta disseminação de notícias falsas, ofensas e ameaças a integrantes da Corte. Ao se manifestar de forma oposta aos demais magistrados, o ministro Marco Aurélio Mello fez críticas ao modo como o inquérito foi instaurado.

O ministro também considerou “seriíssima” a forma de escolha do relator, o ministro Alexandre de Moraes, que se deu por decisão do presidente do STF, e não por distribuição eletrônica (sorteio), como normalmente é feito. Mello considerou o inquérito “natimorto” por ter sido aberto por iniciativa do próprio STF, à revelia da Procuradoria-Geral da República. “No Direito, o meio justifica o fim, jamais o fim justifica o meio. O Judiciário é um órgão inerte, há de ser provocado para poder atuar. Toda concentração de poder é perniciosa”, afirmou.

A decisão terá importantes consequências políticas. Neste artigo, no entanto, enfocarei seu impacto no campo da liberdade de expressão. Governos passam, mas fissuras na liberdade de expressão ficam para sempre. Nesta hora de radicalização, preocupante e crescente, a única coisa que me resta são os princípios de sempre. Apoio-me nos valores e ideias que alimentam minhas convicções. A liberdade de expressão é um porto seguro da democracia. Dela não me afasto.
O respeito devido ao Supremo Tribunal e aos demais Poderes da República não pode ser encarado como uma blindagem para abusos praticados por aqueles que, momentaneamente, integram a Corte. O STF não é dono do Brasil. Seus ministros são servidores públicos. Devem ser guardiões das normas constitucionais, e não ativistas judiciais em defesa de interesses pessoais, políticos ou ideológicos.

Há exatos 15 meses o ministro Dias Toffoli deu o pontapé inicial para um jogo disfuncional que aos poucos foi transformando o STF num Poder absoluto. Monocraticamente, e na contramão da Constituição, censurou a revista Crusoé por expor seus supostos desvios éticos. Note bem, amigo leitor: censurou a revista. Mas nunca a processou. 

De lá para cá, qualquer ofensa, real ou imaginária, passa a ser resolvida em clima de rito sumário. O ministro “ofendido”, como se não fizesse parte de um Poder democrático, assume o papel de polícia, promotor e juiz da própria causa. É exatamente isso que, atônitos, estamos vendo no chamado inquérito das fake news. 

Aberto pelo presidente Dias Toffoli, com relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o inquérito tem por objetivo alegado investigar a existência de fake news, ameaças e denúncias caluniosas, difamantes e injuriantes, que, pretensamente, atingem a honra e a segurança dos ministros e seus familiares. Desde o seu início vem servindo para quase tudo. Fundamentou atos de censura à imprensa, a busca e apreensão na residência de pessoas que levantaram hashtags contrárias ao trabalho do Supremo, o bloqueio de contas nas redes sociais de deputados, etc.

A rigor, o Inquérito 4.781 não poderia ter sido sequer instaurado, pois tem como base o artigo 43 do Regimento Interno do STF, que estabelece: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”. Uma vez que as alegadas infrações à lei penal teriam consistido - não se sabe ao certo - em críticas, insultos e deboches sistemáticos dirigidos aos ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes no ambiente das redes sociais, não há cabimento para a instauração desse inquérito.

As condutas não podem ser juridicamente qualificadas como fake news, que não é um tipo penal existente (princípio da reserva legal: Constituição, artigo 5.º, XXXIX: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação penal”).

A continuação do inquérito - que ocorrerá, pois já ganhou a aprovação dos ministros - é uma violação atual e potencial da democracia, de vez que constitui uma ameaça presente e futura à liberdade de expressão. 

A gravidade dos vícios de origem do inquérito tem sido unanimemente apontada por vários juristas, procuradores e estudiosos do Direito. A relativização disso em face de um problema que se procura combater significa, neste caso, o abandono completo do princípio de que os fins não justificam os meios. 

Se apenas porque o pretenso “inimigo” é alguém cuja conduta se considera muito reprovável nos damos ao luxo de abandonar não meras regras processuais, mas princípios basilares da Justiça, impomos não uma vitória contra o erro, mas uma derrota ao Estado Democrático de Direito. 

Não se combatem fake news com censura ou tutela do Estado, porque isso pode atingir diretamente a liberdade de expressão. Quem vai dizer o que podemos ou não consumir? Quem vai definir o que é ou não fake news? O Estado? Transferir para o Estado a tutela da liberdade é muito perigoso. Fake news se combatem não com menos informação, mas com mais informação, e informação mais qualificada. A liberdade de expressão é o oxigênio da democracia.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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