Ministros devem ser guardiões das normas constitucionais, e não
ativistas judiciais, alerta o professor Carlos Alberto Di Franco em
artigo publicado pelo Estadão:
Por 10 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no passado
dia 18 pela legalidade do inquérito das fake news, que apura suposta
disseminação de notícias falsas, ofensas e ameaças a integrantes da
Corte. Ao se manifestar de forma oposta aos demais magistrados, o
ministro Marco Aurélio Mello fez críticas ao modo como o inquérito foi
instaurado.
O ministro também considerou “seriíssima” a forma de escolha do
relator, o ministro Alexandre de Moraes, que se deu por decisão do
presidente do STF, e não por distribuição eletrônica (sorteio), como
normalmente é feito. Mello considerou o inquérito “natimorto” por ter
sido aberto por iniciativa do próprio STF, à revelia da
Procuradoria-Geral da República. “No Direito, o meio justifica o fim,
jamais o fim justifica o meio. O Judiciário é um órgão inerte, há de ser
provocado para poder atuar. Toda concentração de poder é perniciosa”,
afirmou.
A decisão terá importantes consequências políticas. Neste artigo, no
entanto, enfocarei seu impacto no campo da liberdade de expressão.
Governos passam, mas fissuras na liberdade de expressão ficam para
sempre. Nesta hora de radicalização, preocupante e crescente, a única
coisa que me resta são os princípios de sempre. Apoio-me nos valores e
ideias que alimentam minhas convicções. A liberdade de expressão é um
porto seguro da democracia. Dela não me afasto.
O respeito devido ao Supremo Tribunal e aos demais Poderes da
República não pode ser encarado como uma blindagem para abusos
praticados por aqueles que, momentaneamente, integram a Corte. O STF não
é dono do Brasil. Seus ministros são servidores públicos. Devem ser
guardiões das normas constitucionais, e não ativistas judiciais em
defesa de interesses pessoais, políticos ou ideológicos.
Há exatos 15 meses o ministro Dias Toffoli deu o pontapé inicial para
um jogo disfuncional que aos poucos foi transformando o STF num Poder
absoluto. Monocraticamente, e na contramão da Constituição, censurou a
revista Crusoé por expor seus supostos desvios éticos. Note bem, amigo
leitor: censurou a revista. Mas nunca a processou.
De lá para cá, qualquer ofensa, real ou imaginária, passa a ser
resolvida em clima de rito sumário. O ministro “ofendido”, como se não
fizesse parte de um Poder democrático, assume o papel de polícia,
promotor e juiz da própria causa. É exatamente isso que, atônitos,
estamos vendo no chamado inquérito das fake news.
Aberto pelo presidente Dias Toffoli, com relatoria do ministro
Alexandre de Moraes, o inquérito tem por objetivo alegado investigar a
existência de fake news, ameaças e denúncias caluniosas, difamantes e
injuriantes, que, pretensamente, atingem a honra e a segurança dos
ministros e seus familiares. Desde o seu início vem servindo para quase
tudo. Fundamentou atos de censura à imprensa, a busca e apreensão na
residência de pessoas que levantaram hashtags contrárias ao trabalho do
Supremo, o bloqueio de contas nas redes sociais de deputados, etc.
A rigor, o Inquérito 4.781 não poderia ter sido sequer instaurado,
pois tem como base o artigo 43 do Regimento Interno do STF, que
estabelece: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do
Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou
pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro
ministro”. Uma vez que as alegadas infrações à lei penal teriam
consistido - não se sabe ao certo - em críticas, insultos e deboches
sistemáticos dirigidos aos ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes
no ambiente das redes sociais, não há cabimento para a instauração desse
inquérito.
As condutas não podem ser juridicamente qualificadas como fake news,
que não é um tipo penal existente (princípio da reserva legal:
Constituição, artigo 5.º, XXXIX: “Não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação penal”).
A continuação do inquérito - que ocorrerá, pois já ganhou a aprovação
dos ministros - é uma violação atual e potencial da democracia, de vez
que constitui uma ameaça presente e futura à liberdade de expressão.
A gravidade dos vícios de origem do inquérito tem sido unanimemente
apontada por vários juristas, procuradores e estudiosos do Direito. A
relativização disso em face de um problema que se procura combater
significa, neste caso, o abandono completo do princípio de que os fins
não justificam os meios.
Se apenas porque o pretenso “inimigo” é alguém cuja conduta se
considera muito reprovável nos damos ao luxo de abandonar não meras
regras processuais, mas princípios basilares da Justiça, impomos não uma
vitória contra o erro, mas uma derrota ao Estado Democrático de
Direito.
Não se combatem fake news com censura ou tutela do Estado, porque
isso pode atingir diretamente a liberdade de expressão. Quem vai dizer o
que podemos ou não consumir? Quem vai definir o que é ou não fake news?
O Estado? Transferir para o Estado a tutela da liberdade é muito
perigoso. Fake news se combatem não com menos informação, mas com mais
informação, e informação mais qualificada. A liberdade de expressão é o
oxigênio da democracia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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