segunda-feira, 29 de junho de 2020

"Progressismo": privilégios, hegemonia e tensão social.


A corrupção da linguagem pela ideologia gradativamente nos torna incapazes de compreender e acessar a realidade, que passamos a negar com fanatismo. Artigo de Catarina Rocha Monte, publicado pelo Instituto Liberal:

1 – Lei pervertida e progressismo

O liberalismo clássico, que é aquele que se vincula às origens da tradição política ocidental, prega a isonomia, a igualdade de todos perante a lei, a justiça nas regras do jogo, as normas formais, a ausência de privilégios legais, a equidade. Sua exigência de liberdade se expressa como restrição dos poderes coercitivos do Estado, como remoção dos obstáculos que se interpõem ao esforço individual, como correção de injustiças e de cerceamentos indevidos. A reinterpretação, porém, da noção de liberdade pela tradição iluminista francesa passa a relacioná-la a exigências de provisão por parte do Estado, à demanda por benefícios, abrindo espaço para que a própria legislação torne-se potencialmente destruidora da liberdade. É o que Frédéric Bastiat, na obra La Loi (1850) denuncia como a lei pervertida, transformada em instrumento de ambição em vez de funcionar como um freio para reprimi-la.

O indefinido alargamento, denunciado por Bastiat, do domínio da lei, a transição do seu caráter negativo (impedir que o direito ou a liberdade de um usurpe o direito ou liberdade de outro) para o positivo (organização da fraternidade e da solidariedade – coisas incompatíveis com a coerção), torna a legislação alvo de reivindicações categoriais constantes, abrindo largo espaço para queixas, conflitos, ódios, distúrbios, revoltas e revoluções.

A hipertrofia do princípio de igualdade em detrimento do princípio de liberdade fez com que o liberalismo francês se distanciasse dos princípios liberais clássicos e se deslocasse para um democratismo e para a esfera de influência do socialismo, tomando hoje a denominação de progressismo. O progressismo se caracteriza pela violência. Seja pela violência psicológica contra aqueles que não aderem à sua visão de mundo, seja pela violência de tentar impor sua visão de mundo à força de lei, seja pela violência tout court.

O progressismo insere-se, ainda, em uma perspectiva comunitarista, que tende a colocar o indivíduo em segundo plano, considerando-o como constituído pela comunidade em termos psicológicos e sociológicos, sendo esta uma das correntes mais exitosas no objetivo de capturar e pautar o debate político, uma vez que seu discurso foge a formalismos técnicos e capta o emocional.

A exploração econômica seria apenas uma das inúmeras modalidades de opressão; a opressão precisaria ser combativa também no âmbito simbólico e cultural. Opressão passa a ser uma categoria fundamental e as democracias liberais passam a ser confrontadas pelas demandas das minorias sexuais, religiosas, étnicas e culturais – todas elas pautadas, instrumentalizadas, conceitualmente forjadas e discursivamente manipuladas pelo espectro político mais à esquerda e mais radical.

2 – Política do reconhecimento

Nos últimos vinte anos, as instituições políticas e jurídicas das democracias liberais passaram a ser reféns dessa visão de mundo. Analise-se, por exemplo, aqui no Brasil, a atuação do STF, cujo ativismo de viés progressista é difícil de ser negado.

Chamemos – para fazer referência a uma obra de Charles Taylor – “política do reconhecimento” a essa política com ênfase nas demandas de grupos e indivíduos que se organizam em movimentos sociais em torno de uma identidade particular em busca de reconhecimento e de direitos diferenciados.

Pois bem, tal política pode ser ainda mais radical se considerarmos a leitura do conceito de reconhecimento fornecida por Axel Honneth, para quem a autonomia do indivíduo não depende apenas de si mesmo, só podendo ser exercida se o sujeito que age tiver respeito próprio, estando este respeito próprio, porém, na dependência do reconhecimento do valor do sujeito pelo outro através do respeito, da estima e do amor.

A consequência para as lutas sociais dessa interpretação do reconhecimento é que estas não se limitarão mais à retificação de injustiças como a exploração econômica ou a exclusão política, mas se estenderão à luta pelo reconhecimento e pela valorização do outro, passando-se de um discurso contra a desigualdade material para um discurso contra a desigualdade simbólica e da exigência legítima de um tratamento igual perante a lei para a exigência de leis que concedam privilégios a determinados grupos que, além dos privilégios concedidos, querem se sentir respeitados pela força da lei.

3 – Os efeitos colaterais das políticas afirmativas

Os princípios da liberdade e da igualdade são os fundamentos primeiros da democracia. Os fundadores da democracia antiga trataram de constituir um Estado sob o império das leis justamente como garantia contra a arbitrariedade de algum tirano ou grupo de poder. Assegurada, em tese, a igualdade perante a lei, a democracia moderna tomou como missão ir além da igualdade legal em direção à correção de alguma desigualdade material e, tendo em vista segmentos sociais tidos por historicamente marginalizados, tornou-se comum a adoção de instrumentos de políticas públicas voltadas para esses grupos.

Esse tipo de programa que atua com segmentos e grupos preferenciais por meio da concessão de cotas é chamado hoje em dia de ação afirmativa nos Estados Unidos ou discriminação positiva no Reino Unido. Porém, é interessante notar que, conforme expõe Thomas Sowell no livro Ação afirmativa ao redor do mundo: um estudo empírico sobre cotas e grupos preferenciais, a expressão “ação afirmativa” surgiu nos Estados Unidos em um decreto do presidente Jonh F. Kennedy no qual se expressava “uma preocupação especial para garantir que aqueles que tinham sido discriminados no passado não mais o fossem no futuro – e que passos concretos fossem dados para que tudo e todos ficassem alertas quanto a isso.[1]” Nas palavras do próprio Kennedy, em seu decreto presidencial, exigia-se que a “a ação afirmativa assegurasse que os candidatos fossem empregados e que trabalhassem sem consideração de raça, credo ou origem nacional[2]

Como a concessão de privilégios a membros de grupos particulares fere os princípios das sociedades comprometidas com a igualdade dos indivíduos perante a lei, costuma-se atribuir a essas ações e programas um caráter temporário. Como se estabelece, porém, na maioria dos casos, o objetivo utópico de eliminar a desigualdade econômica e social, os programas se estendem e se complexificam cada vez mais. Conforme esclarece Sowell: “a igualdade de oportunidades pode ser obtida dentro de um período plausível de tempo, mas isso é totalmente diferente da eliminação da igualdade de resultados.[3]

A igualdade de representação dos diferentes grupos em uma determinada instituição “tem sido um fenômeno bastante raro – ou inexistente – exceto quando tais resultados numéricos são impostos artificialmente por cotas.[4]” É normal que haja uma tendência de determinados grupos se engajarem em determinadas ocupações e isso não é necessariamente um aspecto negativo; pessoas são diferentes, com tendências diferentes e se fazem representar naturalmente no âmbito que melhor se adeque às suas propensões, tradições e interesses: “A representação equilibrada de grupos, considerada norma, é difícil ou impossível de ser encontrada em qualquer lugar, enquanto a desigual, que é vista como desvio a ser corrigido, permeia as mais distintas sociedades[5]”.

Outro aspecto a ser considerado é o impacto psicológico de tais medidas, tanto em relação aos grupos contemplados pelas cotas quanto em relação aos grupos que não usufruem de tais vantagens:

Nem os grupos dos preferenciais, nem o dos não preferenciais são blocos inertes que podem ser movidos de lá para cá ao bel prazer do grande projeto de um terceiro. Ambos se confrontam com leis e políticas de incentivos e condicionantes, não como predestinações, e reagem à sua maneira. Tais reações incluem reclassificação de si próprio, alterações nos esforços e nas atitudes em função das conquistas e mudanças de postura em relação aos membros de outros grupos[6]

Dentre as reações dos integrantes dos grupos não preferenciais, destaca-se a tentativa de reclassificação dentro desses grupos e, dentre aqueles que são contemplados pelas cotas, não é incomum a perda de ênfase no desenvolvimento das habilidades necessárias para o exercício ou conquista da função obtida por meio do referido privilégio, ou seja, há um desestímulo para o desenvolvimento de habilidades específicas, já que se obterão facilidades de acesso ou permanência por aspectos outros que não aqueles relacionados especificamente àquela função.

Outro aspecto extremamente prejudicial é a estigmatização daqueles que logram êxito por meio de cotas, ou seja, as políticas de cotas estigmatizam ainda mais as categorias já estigmatizadas que as políticas afirmativas deveriam proteger, sendo, pois, um empecilho para o fim do preconceito. Há ainda enormes perdas sociais decorrentes de ressentimentos intergrupos, sendo lamentável que a sociedade que avançava no sentido de tratamento igual para todos os indivíduos, independentemente de cor, credo, gênero, raça, opção sexual, etc., esteja agora passando ao tratamento desigual com base nesses mesmos critérios com base nos quais não se deveria julgar.

4 – A instrumentalização política da mulher pelo feminismo

Em meio às mudanças que trouxe o capitalismo liberal ao mundo, sob o influxo das novas condições sociais, políticas e econômicas dele derivadas, as mulheres passaram a expressar com toda força as legítimas e necessárias reivindicações por direito de participação política, acesso à educação, independência econômica, etc. Na obra Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792), Mary Wollstonecraft centra a sua argumentação na igualdade de inteligência entre homens e mulheres, fundamentando com isso a exigência pelo direito das mulheres à educação. Em 1869, um homem, liberal, John Stuart Mill leva adiante essa valorosa luta e publica a obra A sujeição da mulher, na qual denuncia a desigualdade perante a lei entre homens e mulheres.

Se nessa primeira onda, de caráter liberal, também conhecida como sufragista, o feminismo caracterizou-se fundamentalmente pelo acento colocado na igualdade perante a lei, na reivindicação de direitos cívicos e políticos, tendo sido, por isso mesmo, um grande passo em favor da justiça, dali em diante o feminismo se reinventará por caminhos tortuosos, como bem apontou o economista austríaco Ludwig von Mises:
“Enquanto o movimento feminista se limitar a igualar os direitos jurídicos da mulher com os do homem, a dar-lhe segurança sobre as possibilidades legais e econômicas de desenvolver suas faculdades e de manifestá-las mediante atos que correspondam a seus gostos, a seus desejos e à sua situação financeira, só é um ramo do grande movimento liberal que encarna a ideia de uma evolução livre e tranquila. Mas se, ao ir além dessas reivindicações, o movimento feminista crê que deve combater instituições da vida social com a esperança de remover, por este meio, certas limitações que a natureza impôs ao destino humano, então já é um filho espiritual do socialismo. Porque é característica própria do socialismo buscar nas instituições sociais as raízes das condições dadas pela natureza e pretender, ao reformá-las, reformar a própria natureza[7]
A análise de Mises foi certeira: as subsequentes ondas do feminismo não apenas despojaram-se do discurso liberal, mas passaram a combatê-lo, sob o influxo das lentes ideológicas do marxismo. Se o discurso classista ainda operava na segunda onda do feminismo, a terceira onda inseriu-se no contexto do neomarxismo de viés culturalista e progressista, caracterizado, como vimos, por uma política que quer atuar no nível simbólico, comportamental e que, com arrogância autoritária, pretende moldar os aspectos culturais de uma sociedade à base da força, na forma de leis.

Simone de Beauvoir em O segundo sexo (1949) defende que “mulher” seria um conceito socialmente construído, carente de essência, artificial e sempre definido pelo homem, seu opressor; por conseguinte, a tarefa da mulher que pretende emancipar-se é romper com essa simbologia contida no conceito cultural de mulher.

Betty Friedan, por sua vez, expõe no livro A mística da feminilidade (1963) que a liberação da mulher não teria sido lograda com as vitórias no terreno dos direitos civis e políticos, já que os aspectos culturais e as regras informais, como a de ser esposa e mãe, que se associavam à mulher continuariam a oprimi-la. Ou seja, a luta política já está distante do âmbito de uma reivindicação legítima de reverter situações nas quais a mulher estaria em situação de tratamento desigual perante a lei: doravante a legislação passa a ser usada para impor a forma “adequada” de reconhecimento, de “representatividade”, de “empoderamento” feminino.

A proposta de cotas para mulheres na política é um exemplo de concessão de vantagens especiais que fere os dispositivos constitucionais a fim de obter a forma supostamente adequada de representatividade e empoderamento.

Sabemos que, nos termos da constituição, “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações[8]”, restando claro que não há espaço para o requerido privilégio feminino. É evidente que tanto mulheres e homens têm o direito de disputarem em igualdade de condições o pleito eleitoral quanto os cidadãos têm o direito de votarem em quem quiserem, independentemente de sexo, cor, raça, orientação sexual, etc.

Além disso, a proposta de cotas de gênero na política traz consigo vícios de discriminação negativa: a proposta não inclui, por exemplo, cotas para deficientes, negros ou índios, nem para os sem-terra ou quilombolas, nem para transgêneros e travestis. Por que não lhes garantir a cota de representatividade, uma vez que esta garantia está sendo requerida para as mulheres?

Aceitar as cotas de gênero que dão privilégio à mulher na disputa política é fazer a mulher entrar na política já pautada pela visão de mundo progressista que quer impor de cima para baixo leis que, em vez de limitar o poder político — o que nós liberais, libertários ou conservadores defendemos —, tende a ampliá-lo, fazendo-o incidir sobre os costumes e as reações interpessoais e quotidianas.

5 – Progressismo: o lobo em pele de cordeiro

A obra “El Libro Negro de la Nueva Izquierda – Ideología de género o subversión cultural”, de Nicolás Márquez e Agustín Laje, expõe as sucessivas reformulações do marxismo a partir da análise do conceito de hegemonia que, de Lenin a Ernesto Laclau, passando por Antonio Gramsci, nos ajuda a entender a passagem de teorias inicialmente focadas na tomada violenta do poder pela classe proletária revolucionária para teorias que pressupõem a construção estratégica de discursos ideológicos homogêneos por meio dos quais as minorias são instrumentalizadas, hegemonizadas e seus conflitos potencializados contra um inimigo comum, que é o capitalismo (ou a ordem espontânea do mercado) e os valores judaico-cristãos que sustentam a civilização ocidental.

Essa nova esquerda se disfarça em pele de cordeiro protegida pelo termo “democracia”, embora a radicalização do componente igualitário da democracia para o qual ela tende represente o distanciamento dos princípios liberais e, consequentemente, a destruição do tipo de regime que ela falsamente diz defender.

Desde antes de Marx que o socialismo é bastante variado; no início do século XX, porém, o socialismo marxista prevaleceu sobre todas as outras correntes, inclusive sobre o então vigoroso anarquismo bakuninista, que é também uma espécie de socialismo. Quando se apresentou ao mundo através do panfleto O Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels, o jovem lobo de dentes afiados expôs sua voracidade e, para se diferenciar dos socialismos tímidos ou utópicos, adotou o termo “comunismo” como designação.

Por algumas décadas, os marxistas assim se proclamaram com grande orgulho; e proclamaram com pompa e estardalhaço o comunismo como sendo o caminho radioso da humanidade. Após devorar muitos milhões de cordeiros e ovelhas, o comuno-marxismo naufragou e a grande maioria dos seus remanescentes procurou se esconder debaixo de novas peles.

Primeiro, o termo “comunismo” foi aposentado, dando-se preferência ao termo mais genérico e brando de socialismo. Os marxistas brasileiros usaram e abusaram do termo “socialista”, até que este também se desgastou. Então resolveram abandoná-lo e abraçar com entusiasmo o “progressismo”. Hoje noventa por cento da esquerda brasileira tornou-se “progressista”.

Não se pode negar inteligência e astúcia na apropriação do termo. Com efeito, “progresso” é palavra de significado positivo. Difundido pelo Iluminismo, adquiriu a conotação de mudança para melhor. Na formulação Kantiana otimista, “a humanidade caminha do bem para o melhor” e esse caminhar positivo é, propriamente, o progresso. Neste sentido, não conheço ninguém que seja contra. Os conservadores, abominando as violências e o terror revolucionários, não renegam o progresso, apenas têm prudência no modo como se busca progredir.

Uma das características que unem o velho marxismo e a nova esquerda progressista é o esforço de controle das mentes por manipulação da linguagem. George Orwell tratou disso magistralmente no livro 1984, onde descreve a distopia, o horror do totalitarismo comunista, que se poderia prever (o livro foi publicado em 1949) em sociedades futuras. Na distopia orwelliana, o instrumento por excelência do “Partido Interno” (o seleto grupo de fato dirigente) para a escravização das mentes é a “novilíngua”, que se constrói, dentre outros pérfidos manejos, pela apropriação dos termos mais elevados no sentido de facilitar a promoção das vilanias totalitárias.

Infelizmente muitos meios de comunicação nos dão testemunho diário, no seu consenso comunicacional, de uma depauperação linguística advinda do uso abusivo de uma linguagem já corrompida e degradada por uma ideologia. A corrupção da linguagem pela ideologia gradativamente nos torna incapazes de compreender e acessar a realidade, que passamos a negar com fanatismo.

Tudo isso é assunto bastante complexo e tão antigo que poderíamos remetê-lo – como já o fizemos em algumas ocasiões – ao célebre debate entre Platão e os Sofistas, que também pode ser compreendido como o debate entre dois modos de vida, entre dois modos antagônicos de estar no mundo e de compreendê-lo: um tem por objetivo o poder, o prazer, a violência e fundamenta-se na imanência, nas relações sociais, no discurso retórico vazio; o outro tem por objetivo a verdade, o belo, o bom, o justo e fundamenta-se na transcendência, no cosmos, em Deus.

[1] SOWELL, Thomas. Ação afirmativa ao redor do mundo: um estudo empírico sobre cotas e grupos preferenciais. São Paulo: É realizações, 2016. p. 17
[2] Decreto n.10.925 Apud SOWELL, Thomas. Ação afirmativa ao redor do mundo
[3] SOWELL, Thomas. Ação afirmativa ao redor do mundo. p.19
[4] SOWELL, Thomas. Ação afirmativa ao redor do mundo. p.19
[5] Idem. p.21
[6] Idem. p.21
[7] Von Mises, Ludwig. Socialismo. Análisis económico y sociológico. Madrid, Unión Editorial, 2007, pp. 107-108.
[8] Artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

Catarina Rochamonte é Doutora em Filosofia, vice-presidente do Instituto Liberal do Nordeste e autora do livro "Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais".
 
 
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