Genuínos defensores da democracia praticam com naturalidade o convívio
dos contrários e não tratam como inimigos quem tem opiniões divergentes.
Augusto Nunes, em sua coluna na revista Oeste:
Há menos de um mês, no meio do debate sobre o governo do presidente
Jair Bolsonaro, chegou aos participantes uma sopa de porcentagens do
Datafolha saída do forno. Segundo a pesquisa, 43% dos brasileiros
achavam o desempenho do presidente da República “ruim” ou “péssimo”.
Outros 33% o consideravam “bom” ou “ótimo”. Para 22%, a performance era
“regular”. Os 2% restantes preferiram não opinar. “Está claro que 33%
não se convence, se vence”, comentou um espectador. A observação
incendiou a imaginação de Eduardo Moreira, uma sumidade polivalente que
já vinha animando a conversa com o seu inesgotável repertório de
soluções para tudo que nada resolvem. O currículo resumido informa que
Moreira é economista, empresário, engenheiro, palestrante, escritor,
apresentador, roteirista, ex-banqueiro e especialista num tipo de
adestramento de cavalos que trata com brandura os animais. Ele garante
que foi condecorado por Elizabeth II pela façanha zoológica. Não é pouca
coisa.
“É verdade, a gente nunca fala dos 70%!”, começou a sequência de
exclamações. “Setenta por cento no Brasil é gente pra caramba! Os 70%
estão com medo! Eles nunca conseguem se perceber como 70%! Os 30% se
acham 70% e os 70% se acham 30%!” Para chegar a esse índice redondo,
Moreira submeteu a uma selvagem sessão de tortura a lógica e a sensatez —
e assassinou a estatística com requintes de perversidade. Primeiro, ele
somou aos insatisfeitos ou indignados com o governo (43%) os 22% que o
consideram regular — palavra que no mundo das pesquisas significa algo
como “mais ou menos” — e chegou a 65%. Depois, anexou os 2% que não têm
opinião formada. O índice subiu para 67%. Em seguida, fez a margem de
erro (2% para mais ou para menos) oscilar inteira para o lado dos
inimigos de Bolsonaro. O índice pulou para 69%. De onde veio o ponto
porcentual que faltava para chegar aos cabalísticos 70%, isso ninguém
sabe. Parece pouco. Mas, como diria Moreira, mais de 1 milhão de
eleitores é gente pra caramba.
A vigarice estatística apressou o parto do “Somos70PorCentro”, uma
fantasia que enxerga o Brasil dividido em duas partes. Os democratas
irretocáveis são 70%. O resto é um ajuntamento formado por fascistas,
neofascistas, criptofascistas, simpatizantes do fascismo e inocentes
úteis. Entusiasmado com o próprio falatório, Moreira anunciou o
nascimento da frente ampla que impedirá a implantação de uma ditadura
liderada por um Mussolini-2020 aqui fabricado. No dia seguinte,
descobriu que chegou tarde. Os gerentes de um movimento igual mas
diferente, batizado de Estamos Juntos, já colhia assinaturas para um
manifesto que prometeria defender a qualquer preço a democracia ameaçada
pelo presidente eleito em outubro de 2018. A publicação do documento
numa página inteira de jornal confirmou que todos os subscritores
estavam incluídos nos 70% de Eduardo Moreira. Por que não fundir os dois
movimentos numa única frente ampla? Talvez porque no “Somos70porcento”
entra quem quiser. No Estamos Juntos, amplitude tem limite.
O que não tem limite é a ambição dos donos do manifesto. Assim que os
signatários ultrapassaram a marca dos 10 mil, o alto-comando decidiu
que estava na fase final dos trabalhos de parto uma reedição da campanha
das Diretas-Já, o maior movimento da massas da história do Brasil, que
entre o início de 1983 e meados de 1984 exigiu em comícios monumentais a
volta da escolha nas urnas do presidente da República. Talvez tenha
sido por isso que duas tribos da mesma etnia dos 70% acamparam em
territórios próprios. Os filiados à OAB, cujo presidente é escolhido por
um colégio eleitoral, agruparam-se no “Basta”. Foi o que fizeram os
líderes das torcidas organizadas do futebol paulista, sustentadas por
cartolas que chegam ao poder e lá permanecem percorrendo atalhos que
passam ao largo da opinião das arquibancadas. Coerentemente, os
torcedores organizados só se juntaram aos demais democratas num ato de
protesto cujos participantes caberiam em meia dúzia de camarotes do
Itaquerão.
Como numa casa noturna que está bombando, são os donos do Estamos
Juntos que decidem quem entra e quem fica fora. Alguns oficiais
graduados são órfãos do Partido Comunista Brasileiro, o que garante vaga
em qualquer manifesto aos veteranos de guerra que sobreviveram à morte
do Partidão. Todos passaram boa parte da vida venerando a ditadura do
proletariado, que jamais rimou com democracia, e celebrando com a
arrogância de ministro do Supremo os encantos e vantagens do regime de
partido único, uma obscenidade que só pode vicejar nos escombros do
Estado de Direito. Agora juram que foram democratas desde sempre, só que
em segredo. Derramaram lágrimas (furtivas) pelo camarada Leon Trotsky e
por outros milhões de mortos por ordem de Josef Stalin. Repudiaram (sem
gente por perto) o pacto de não agressão que selou a aliança obscena
entre o Guia Genial dos Povos e Adolf Hitler. Lamentaram (em silêncio) a
invasão da antiga Tchecoslováquia por tropas do Exército Vermelho. E
derramaram lágrimas de esguicho (trancados num quarto) por todas as
incontáveis contribuições da União Soviética à História Universal da
Infâmia.
A coragem que lhes faltou em tempos sombrios parece agora sobrar aos
sinuelos dos democratas de manifesto. É preciso muita ousadia para
enxergar no Brasil uma ditadura em gestação e uma democracia popular em
Cuba, que sepultou a eleição direta dos governantes em 1º de janeiro de
1959. É preciso muita audácia para abrir as portas do Estamos Juntos a
bandidos juramentados, casos de polícia ambulantes, dinossauros do
PCdoB, estupradores do direito de propriedade, saqueadores de estatais,
estupradores da Constituição e, ao mesmo tempo, proibir a entrada de
figuras que não gozam da simpatia de cabeças estacionadas em séculos
passados. José Dirceu, Boulos, Stédile, Manuela? Isso pode. Sergio Moro?
Esse não pode de jeito nenhum. Embora não tenha solicitado ingresso,
Moro foi publicamente vetado. Não por ter sido ministro de Bolsonaro: se
fosse por isso, Luiz Henrique Mandetta não encontraria espaço no
desfile de assinaturas. Moro foi barrado por ser o símbolo da Lava Jato,
operação que desmontou o maior esquema corrupto de todos os tempos. E,
sobretudo, porque sempre será o juiz que mandou Lula para a cadeia por
lavagem de dinheiro e corrupção.
Talvez por ter esquecido que não pode andar com as próprias pernas,
até porque poste não tem membros, Fernando Haddad não pediu a bênção do
fabricante antes de aderir ao Estamos Juntos. Tanto Haddad quanto os
demais devotos da seita foram prontamente enquadrados por seu único
deus. Lula avisou que não é maria vai com as outras e que não rabisca um
X em manifestos assinados por Fernando Henrique Cardoso. (No faroeste à
brasileira, é o bandido solto da gaiola pelo juiz amigo quem recusa a
companhia de gente sem contas a acertar com a Justiça.) Mas o show de
sabujice não pode parar: “Queira ou não queira, Lula faz parte dos 70%”,
miou Eduardo Moreira, no momento disposto a tudo para fundir seu “Somos
70porcento” com o Estamos Juntos.
Os movimentos recém-nascidos começam a morrer de velhice. Democratas
genuínos fazem o contrário do que andam fazendo os pastores da
intolerância disfarçados de democratas de manifesto. Praticam com
naturalidade o convívio dos contrários. Sabem que não existe frente
ampla formada por um rebanho só. Não tratam como inimigo quem tem
opiniões divergentes. Compreendem que nenhum regime é democrático se
existirem presos políticos, e que oposicionistas não devem ser
encarcerados, mas vencidos em eleições limpas. Admitem que todos são
iguais perante a lei, e que ninguém é mais igual que os outros.
Constatada a derrota eleitoral, preparam-se para a próxima disputa.
Entendem que extremistas de esquerda ou de direita são gêmeos com
defeitos de fabricação. E aprendem ainda no berçário que não há valor
maior que a liberdade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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